Numa época de tablets e consolas, os soldadinhos de
chumbo ainda têm o seu lugar
ANDRÉ VASCONCELOS E SÁ ((texto)) e DANIEL ROCHA ((fotos))
21/12/2013 in Público
É uma loja de brinquedos onde convive o antigo e o moderno.
Nesta viagem no tempo, ruma-se à infância dos nossos pais, avós ou mesmo à
nossa.
A cave não cheira a cave. O aroma é diferente. É bom, macio,
doce. Para os clientes mais antigos é sinónimo de tempo bem passado, em boa
companhia, no meio de todos aqueles brinquedos. Os primeiros passos fazem-se
por um estreito corredor com estantes dos dois lados, ao fundo do qual se
avista a secretária de Carlos Cutileiro, o dono da Casa do Cavaleiro à Porta,
em Lisboa.
E o cavaleiro estava mesmo lá, à porta, na entrada do prédio
de uma rua movimentada do bairro de Benfica. Mas já não está. Segundo Carlos
Cutileiro, o sinal foi retirado por duas razões: pelo seu estado deteriorado e
porque o valor do seguro e da licença subiu em flecha há um ano.
Era um dos símbolos do estabelecimento, especializado nos
emblemáticos soldadinhos de chumbo. No inventário também se podem encontrar
combóios eléctricos, modelos de tanques ou de aviões para montar, revistas da
especialidade e todo o tipo de brinquedos antigos. O cartão de visita dissipa
todas as dúvidas: tem “tudo para modelismo e maquetismo”. Dentro da loja ainda
existe um atelier para reparação e restauro.
A porta de entrada da loja foi apelidada de “Porta Magna”,
pelo pai de Carlos Cutileiro, Alberto Cutileiro. É uma porta comum de madeira,
ornamentada dos dois lados. Do lado de fora, o que recebe os visitantes, está
uma figura em relevo de um cavaleiro medieval que convive, um tanto inesperada
e anacronicamente, com inúmeros autocolantes de marcas de brinquedos.
Abrir a porta é como entrar na Terra do Nunca ou no País das
Maravilhas. Vêem-se vitrinas repletas de figuras militares, minúsculas pessoas
armadas até aos dentes, prontas a alistarem-se no nosso exército particular.
Pelo tecto voam modelos de aviões, imóveis. Nas paredes vislumbram-se uniformes
militares e outras gravuras. Nas estantes e prateleiras estão as caixas com os
aviões, helicópteros, tanques de guerra, carros de colecção ou de corrida,
divididos em centenas de peças, à espera de serem montados para se
transformarem numa réplica perfeita.
Frederico da Prússia e Napoleão
Algumas dessas caixas já estão abertas para facilitar o
contacto directo a quem queira sentir nas próprias mãos a magia daqueles
brinquedos. Normalmente são os filhos dos clientes, a quem os pais querem
mostrar com o que brincavam na sua infância. Alguns apaixonam-se, outros nem
tanto.
Os jogos de estratégia, assentes nas figuras militares,
surgiram em meados do século XVIII. Foi Frederico da Prússia o pioneiro da
temática, quando começou a usar pequenas figuras de soldadinhos de chumbo para
simular estratégias de guerra.
Um pouco mais tarde, também Napoleão se tornou um
aficionado, um dos maiores até. Era detentor de um exército enorme de figuras
feitas em estanho, que foi leiloado algum tempo após a sua morte. Para oferecer
ao filho, mandou fundir a um dos melhores gravadores franceses da altura, um
regimento inteiro com milhares de peças, em prata. Diz-se que a colecção se
perdeu com o passar do tempo. Winston Churchill e Abraham Lincoln também estão
entre os notáveis aficcionados destas figuras.
Hoje em dia já não é entre políticos e militares que se
encontram os coleccionadores mais famosos. Curiosamente eles estão no cinema
(os cineastas Steven Spielberg e Peter Jackson, e os actores Russel Crowe e
Mike Myers), na música (Phil Collins e Rod Stewart) e no mundo da finança
(Malcolm Forbes, o filho do fundador da revista Forbes).
O maquetismo, nomeadamente o das figuras militares, tem
vindo a perder adeptos. A culpa é dos computadores e da Internet. Os jogos de
estratégia militar vieram substituir as maquetes e as figuras. A procura de
publicações relacionadas com estes assuntos também já é bastante facilitada
pela Internet. Outrora, era uma das bandeiras da Casa do Cavaleiro à Porta,
quando Carlos Cutileiro as importava de Londres. A mudança dos tempos está à
vista de todos.
A loja é pequena. Mas não é por acaso. A visão de Carlos
Cutileiro tem desde sempre um propósito maior: a partilha. E o espaço reduzido
da loja potencia a comunicação e a partilha de conhecimentos entre cada um dos
clientes e aficionados. Para ele, só assim estas temáticas fazem sentido. Diz
que aprendeu a partilhar ideias e opiniões sobre maquetismo com os ingleses,
durante a sua estadia em Londres: “No que toca à minúcia e ao debate de ideias
na construção de maquetes ou modelos, os ingleses não guardam segredos. Em
Portugal as pessoas gostam de se isolar, o que impede uma evolução mais rápida
de cada um”.
Tertúlias e encontros
As tertúlias na loja aconteceram naturalmente, desde a sua
inauguração, em 1972, chegando a reunir 20 ou 30 pessoas, principalmente nas
tardes de sábado. Até chegaram a ser estendidas a cafés da cidade, como por
exemplo o Martinho da Arcada, na baixa lisboeta. Devido à crescente adesão,
tiveram que alugar um espaço do outro lado da rua, no centro paroquial. Chegou
até a ser criada uma associação de modelismo, que durou pouco tempo.
Desde essa altura que existem encontros esporádicos, em
Tróia e na Moita, por exemplo. São exposições de modelismo e maquetismo, onde
se pode divulgar, vender, comprar, ou partilhar tudo o que tenha a ver com
aquelas áreas. A adesão é grande, nomeadamente aficionados vindos de Espanha,
país que sempre teve muita tradição nestes assuntos.
Entre os clientes mais emblemáticos da loja, Carlos
Cutileiro destaca o "Panzer Freitas". Era um assíduo frequentador da
casa, obcecado pelo período da 2.ª Guerra Mundial. Coleccionava modelos de
carros blindados e tanques alemães, e conhecia, comprovadamente, as siglas de
cada modelo. Noutra vertente, a do espólio popular, era o poeta Azinhal Abelho,
colaborador do Palácio Foz, que detinha uma impressionante colecção de figuras
de barro. Também o irmão do historiador José Mattoso era um frequentador da
loja e coleccionava figuras militares e dioramas (telas pintadas, que quando
iluminadas, dão a impressão de tridimensionalidade).
De pais para filhos
A Casa do Cavaleiro à Porta deve o seu nome à loja que o avô
de Carlos Cutileiro tinha na baixa de Lisboa, a Papelaria Verol e Companhia,
que era mais conhecida como Casa do Militar à Porta. Tinha um boneco à entrada,
de terracota, e, entre artigos comuns de papelaria, editava e vendia folhas de
soldados de papel, que custavam meio tostão. “Era muito conhecida pela
juventude daquela época”, recorda o neto.
Alberto Cutileiro, pai de Carlos, trabalhou na Verol até o
seu pai morrer. Nessa altura, foi convidado para trabalhar no Museu da Marinha
e ficou sem tempo para a loja. A casa fechou. O espólio foi dividido entre ele
e a irmã. Coube-lhe ficar com a parte que mais dominava, o acervo militar e
histórico, o qual serviu como base para Carlos Cutileiro abrir o Centro de
Coleccionadores – Casa do Cavaleiro à Porta.
Está na hora de sair, a Porta Magna também está enfeitada do
lado de dentro. Foi Alberto Cutileiro quem teve a ideia de fazer conviver
várias figuras políticas relevantes noutros tempos, como Hitler, Mussolini ou
Napoleão, todos ridicularizados naquele rectângulo de madeira. Conta Carlos
Cutileiro que ofereceu o busto do general francês, que lá figurou durante
décadas, ao seu filho. O boneco tinha inscrito a seguinte pergunta: “Porque é
que Napoleão teve sempre a mão escondida?”. A resposta era dada a quem puxasse
um pequeno cordel: levava com um manguito, num gesto bem à portuguesa.
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