"Ao sonho de uma Europa democrática, dos povos e de bem-estar sucedeu o pesadelo de uma Europa alemã, empobrecida e miserável, onde nem sequer falta a teoria da “soberania limitada”, aplicada no Leste europeu, por Moscovo, até ao final dos anos 80 do século passado. Por este caminho, talvez a Europa, um dia, se divida; e, talvez, os sociais-democratas europeus, um dia, se dividam, também."
“Deve ser uma maçada para os nossos banqueiros este empecilho de vivermos num Estado democrático, baseado na soberania popular e na dignidade humana, e o encerramento da segurança social não estar dependente de uma decisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.”
De Berlim nem bom vento, nem bom casamento
Por Tomás Vasques
publicado em 2 Dez 2013 / in (jornal) i online
É no quadro do "colete-de-forças" do euro e das dívidas públicas, com desrespeito pela soberania popular e da Lei que a partir de Berlim se esboçaram teorias totalitárias
Os sociais-democratas alemães assinaram um acordo de governo com a CDU da senhora Merkel e os aliados desta, os bávaros da CSU. A partir de agora, e nos próximos quatro anos, pelo menos, a agonia da Europa, onde já fervilham novos ódios e onde o empobrecimento vertiginoso caminha a mando dos “mercados” e dos interesses financeiros, vai ter a cobertura de um dos mais importantes, senão o mais importante partido social-democrata europeu e da Internacional Socialista. Se esta “grande coligação” governasse só a Alemanha, como já governou no passado, estava no seu direito. O problema para os povos da União Europeia é que este novo governo alemão, agora reforçado, vai seguir as pisadas do anterior: governar a União Europeia e, sobretudo, a Zona Euro, no interesse expansionista da Alemanha, sem mandato democrático dos povos europeus para tal e em total desrespeito pelo Estado de Direito, plasmado nos Tratados da União.
É no quadro desta matriz instituída pelo “colete-de-forças” do Euro e das dívidas públicas, com desrespeito pelos primados da soberania popular e da Lei, pilares da democracia, que a partir de Berlim se esboçaram teorias totalitárias, do género: “não há alternativa à austeridade”; “não há dinheiro” ou “vivemos acima das nossas posses”, com as quais se vai “fundamentando”, nos países do Sul da Europa, o empobrecimento de milhões de pessoas, a destruição de milhões de postos de trabalho, que cria a disponibilidade de uma mão-de-obra barata e desprotegida ou a privatização de funções essenciais do Estado, como a segurança social, a educação e a saúde. Ao sonho de uma Europa democrática, dos povos e de bem-estar sucedeu o pesadelo de uma Europa alemã, empobrecida e miserável, onde nem sequer falta a teoria da “soberania limitada”, aplicada no Leste europeu, por Moscovo, até ao final dos anos 80 do século passado. Por este caminho, talvez a Europa, um dia, se divida; e, talvez, os sociais-democratas europeus, um dia, se dividam, também.
Por cá, nestes dias de chumbo, o poder económico e, sobretudo, o poder financeiro, protegido pelo que se passa na Europa, vai “iluminando o caminho” a um poder político incompetente e subserviente. Fernando Ulrich, o tal do “aguenta, aguenta” mais austeridade, disse que “não existe nenhum mecanismo económico e financeiro para estabelecer uma ligação entre aquilo que os trabalhadores descontam e aquilo que vão receber na reforma”. Essa ligação, obviamente existe. O que o banqueiro quis transmitir foi que o Estado está a pagar valores de pensões de reforma acima do que devia pagar. Não se referiu ao que o Estado está a pagar a mais aos bancos nas PPP, nem nos contratos swap, valores suficientes para sustentar a segurança social durante meio século. Referiu-se às pensões de reforma, naturalmente. E concluiu, para que não ficassem dúvidas: “Se a Segurança Social fosse examinada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e pelo Banco de Portugal como nós (bancos) o somos, fechavam a Segurança Social.”
Ora, acontece que Fernando Ulrich, para além da sua intenção de ver o fim da segurança social, enquanto função do Estado, e a consequente privatização para as mãos dos bancos, imagina o país como se fosse uma empresa privada, uma sociedade anónima, um banco. Na cabeça do banqueiro, os portugueses devem ser os trabalhadores, dependentes e subordinados, debaixo do poder hierárquico de um governo, que age como conselho de administração, empossado para cumprir as instruções dos accionistas – os banqueiros e os donos das grandes fortunas. Mas não é assim, pelo menos até ver, e enquanto vivermos em democracia. Nem o Estado pode ser encarado na lógica trituradora de uma empresa privada, nem os portugueses são empregados do governo. Antes pelo contrário. Deve ser uma maçada para os nossos banqueiros este empecilho de vivermos num Estado democrático, baseado na soberania popular e na dignidade humana, e o encerramento da segurança social não estar dependente de uma decisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
Jurista, escreve à segunda-feira
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