segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Demografia: que país sobra para salvar?

"Se nada fizermos, Portugal vai transformar-se num país fantasma. Deixará muito brevemente de ter massa critica para o funcionamento da sua economia e recursos para garantir a sobrevivência física dos inativos. Ou seja, todos os esforços que estamos a fazer, mesmo acreditando no delírio de que têm como objetivo garantir a sustentabilidade da economia e do Estado, serão comidos por esta sangria da população ativa. Se a ideia é salvar o país, não tem de sobrar algum país para ser salvo?" 
Daniel Oliveira / Expresso


Demografia: que país sobra para salvar?
Daniel Oliveira
Segunda feira, 2 de dezembro de 2013 in Exresso online

Há décadas que Portugal assiste a uma tragédia demográfica. Ela resultou, inicialmente, de boas notícias: a chegada lenta à modernidade, com a correspondente liberdade das mulheres e a sua entrada no mercado de trabalho, o planeamento familiar, o fim do trabalho infantil e mais exigência na educação e acompanhamento dos filhos. Mas Portugal viveu, desde o início dos anos 70 até hoje, um curto-circuito, em que essa chegada à modernidade não foi suficiente para mudar alguns elementos fundamentais da sua estrutura social e económica. O que resultou na convivência duma maior liberdade de escolha com condições materiais pouco favoráveis a níveis demográficos aceitáveis.

A permanente tendência de queda demográfica acentuou-se ainda mais a partir de 2010, tendo o índice sintético de fecundidade passado dos 1,35 crianças por mulher, em 2011, para 1,28, em 2012. Seriam necessários 2,1 para garantir o equilíbrio demográfico. Somos o quinto país da Europa com mais baixas taxas de natalidade. Um dos piores do mundo.

A esta crise de natalidade veio juntar-se outra: a da emigração. E quem parte é jovem, o que virá a ter efeitos ainda mais profundos na natalidade. Só em 2012, Portugal perdeu 121 mil portugueses para outros países, números que só conseguimos encontrar nos anos 60. Mais do que os nascimentos, que nem chegaram aos 90 mil, com uma queda de 7,2% em relação ao ano anterior. Tivemos mais 17.771 mortes do que nascimentos, uma diferença três vezes acima do que se tinha verificado em 2011. Ou seja: o saldo natural é mau, o saldo migratório, que até 2010 era positivo, é aterrador. Por fim, para piorar um pouco mais a coisa, tivemos a partida de muitos imigrantes, que eram responsáveis por 10% dos nascimentos.

As razões da emigração conhecemos bem. E elas não parecem preocupar grandemente o nosso governo, que, povoado de idiotas, até aconselha os jovens a saírem da sua "zona de conforto". Já as razões da queda acentuada da natalidade merecem mais atenção. Vale a pena analisar os dados do Inquérito à Fecundidade, realizado este ano por INE e Pordata. A fecundidade realizada era, no momento do inquérito, de 1,03 por pessoa. As pessoas desejariam ter, em média, 2,31 filhos mas esperam conseguir ter apenas 1,77. Não há grandes diferenças de género, idade e grupo social nestes dados. Sendo certo que pessoas de escolaridade superior esperam desejam ter mais filhos do que as de escolaridade mais baixas. Interessa saber quais são as razões para a discrepância entre o que se tem, o que se espera e o que se quer.

A principal razão pela qual a maioria dos homens e mulheres não tem filhos são os custos financeiros (68%) e, logo depois, a dificuldade em conseguir emprego (próximo de 54%). Para os que já têm filhos e pensam vir a ter mais as razões mais importantes para ficar por aí são as mesmas. No primeiro caso 84%, no segundo 52%. Já se ter os filhos que se queria também aparece, claro, neste caso, com destaque.

Segundo o inquérito, medidas que se traduzam no aumento de rendimentos das famílias com filhos são as que mais pessoas esperam do Estado para que se promova a natalidade. Como reação a estes números, o ministro Pedro Mota Soares já veio prometer um tratamento fiscal "amigo da família". O que não deixa de ser curioso, quando sabemos que cerca de meio milhão de crianças perderam o direito ao abono de família só nos últimos três anos. Isto quando o Estado português gasta apenas 1,5% do seu magro PIB no apoio económico às famílias e a média dos países da União Europeia é 2,3%. Cortar aqui é a demonstração duma política que parece apostar no suicídio assistido da nação, na suposta ideia de que a está a salvar.

Logo depois dos rendimentos, surgem, no inquérito, as questões relacionadas com as condições de trabalho. Se olharmos para a França e para a Suécia, que conseguiram inverter uma queda demográfica com políticas públicas, vemos como, para além dos apoios financeiros e serviços de apoio à infância, os períodos alargados de licença de parto paga tiveram um papel central. Acontece que a maioria dos jovens portugueses tem um quadro laboral ou instável ou inexistente. Não é possível ter este tipo de políticas num ambiente de precariedade ou com a permanente ameaça do desemprego. Pelo menos em momentos de crise, só é possível promover a natalidade promovendo a segurança laboral. Não se pode ser "defensor da família" e da desregulação das leis do trabalho, em simultâneo. Não há, muito menos em tempo de crise, crianças a nascer no meio duma completa incerteza e imprevisibilidade. É neste contexto, para além de tantas outras considerações de ordem política e social, que o processo de desregulação laboral ganha contornos de absoluta irresponsabilidade.

Se nada fizermos, Portugal vai transformar-se num país fantasma. Deixará muito brevemente de ter massa critica para o funcionamento da sua economia e recursos para garantir a sobrevivência física dos inativos. Ou seja, todos os esforços que estamos a fazer, mesmo acreditando no delírio de que têm como objetivo garantir a sustentabilidade da economia e do Estado, serão comidos por esta sangria da população ativa. Se a ideia é salvar o país, não tem de sobrar algum país para ser salvo? 

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