OPINIÃO
Terra queimada
OCTÁVIO DOS SANTOS 24/12/2013 – in Público
Portugal, que foi pioneiro na abolição da pena de morte,
algo de que sem dúvida se deve orgulhar, caiu no outro extremo, o da excessiva
permissividade.
Após o terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755, uma das
primeiras ordens dadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de
Oeiras e marquês de Pombal, foi a de que todos os que fossem apanhados em
flagrante a saquear cadáveres e ruínas fossem executados sumariamente, e em
forcas montadas o mais alto possível, para servirem de exemplos bem visíveis em
toda a cidade. Estima-se que cerca de 200 ladrões terão ficado pendurados pelo
pescoço nas semanas que se seguiram ao cataclismo.
Saliente-se o que é óbvio: aqueles lúgubres larápios não
causaram a catástrofe nem, tanto quanto é possível saber, a morte das pessoas
que assaltavam. Porém, pagaram com as suas vidas as profanações que fizeram.
Agora, avancemos no tempo mais de 250 anos, até 2013, em que os incêndios florestais
atingiram mais de 121 mil hectares e causaram a morte de nove pessoas, das
quais oito bombeiros – fazendo com que sejam já cerca de 200 os “soldados da
paz” a morrerem nas florestas nos últimos 30 anos; a Polícia Judiciária
efectuou 73 detenções pelo crime de fogo posto. Estes incendiários não terão
causado todos os incêndios e todas as mortes… mas são culpados, mesmo, da
destruição de algumas (demasiadas) terras e da perda de algumas (demasiadas)
vidas humanas. E que lhes vai acontecer? Serão enforcados? Ou lançados nas
chamas que atearam para “provarem do seu próprio remédio”? Não. Se forem
julgados e condenados, incorrem numa pena máxima de apenas 12 anos de prisão –
porque o fogo posto é considerado um crime simples, e não qualificado. No
entanto, nem isso é certo: por exemplo, entre 2007 e 2011 foram proferidas 280
condenações, mas dessas só 14 implicaram uma sentença de prisão efectiva.
Aliás, antes disso, ser apanhado em flagrante não significa necessariamente
ficar em prisão preventiva…
Portugal tem terra queimada no sentido literal, mas também
no sentido figurado: aumentam no interior as áreas que são abandonadas,
desabitadas, desertificadas – e que desse modo ficam “queimadas” para o
desenvolvimento e para a modernização. Todavia, todo o país, tanto em meio
urbano como em meio rural, está a tornar-se uma enorme terra “queimada” pelo
desemprego e pela emigração, factores que sem dúvida contribuem para explicar
as consecutivas falhas na prevenção e na detecção de fogos… mas que não as
desculpabilizam. Décadas de discussão e de planificação das chamadas “épocas de
incêndios” não têm impedido que aqueles se tenham tornado uma trágica e triste
“normalidade” – tal como a criminalidade, a incompetência não tem sido
devidamente punida. E assim como acontece em relação a outros tipos de delitos,
não há qualquer dúvida de que a ausência de penalizações (mais) pesadas neste
campo é um incentivo aos infractores para (re)incidirem nos seus
comportamentos. Um pirómano pode causar – e costuma causar – uma enorme
devastação, extensa na quantidade e na qualidade do que se destruiu. Pelo que
se justificaria que a justiça o castigasse, se não com a morte, então com a
prisão perpétua.
Esta deveria estar em vigor em Portugal e aplicada a todos
os que cometem crimes muito graves. Porém, este país, que foi pioneiro na
abolição da pena de morte, algo de que sem dúvida se deve orgulhar, caiu no
outro extremo, o da excessiva – e vergonhosa – contemporização e
permissividade. E já se percebeu que neste regime, nesta terceira república,
tal situação não será alterada. Recorde-se o que aconteceu em 2001, em que se
colocou a questão da adesão (ou não) do nosso país ao Tribunal Penal
Internacional e as consequentes alteração e revisão (extraordinárias) da
Constituição: uma das mais inacreditáveis, indescritíveis e patéticas polémicas
que alguma vez aconteceram neste país. Havendo a hipótese, com a ratificação do
tratado que instituiu o TPI, de Portugal ter de extraditar pessoas para países
onde vigora(va) a prisão perpétua, apareceu um alargado e indignado coro de
“defensores do humanismo” que, clamando contra o que seria um alegado
“recuo/retrocesso civilizacional”, reiterava a preferência nacional pelo
princípio da “ressocialização” e a manutenção da nossa “posição humanista e avançada”.
Na verdade, essa posição tornou-se tão “humanista” e tão “avançada” que,
actualmente, até vítimas de um assalto – uma das quais foi atingida a tiro! –
são levadas a tribunal pelo respectivo assaltante, com o apoio do Ministério
Público, devido à “violência” que sofreu às mãos daquelas na sequência de uma
(re)acção de legítima defesa! As demonstrações de laxismo e de leviandade,
tanto na definição de penas como na respectiva aplicação, de que existem
numerosos exemplos nos últimos anos, constituem autênticos “convites” para que
mais criminosos “queimem” não só pessoas mas também patrimónios nacionais,
naturais, económicos...
E também culturais e arquitectónicos: neste âmbito, é tão
condenável deixar-se decair edifícios de valor histórico como permitir – não
perseguindo e não castigando os culpados – que todos os imóveis,
independentemente da sua antiguidade e utilização, sejam desfeados,
vandalizados, enfim, “queimados”… por tinta: os denominados tags inundam todo
este país e, em especial, a sua capital. Há um ano, a Câmara Municipal de
Lisboa, através do vereador José Sá Fernandes, anunciou um “combate radical aos
graffiti”, uma “mega-operação de limpeza” que se iniciaria em Janeiro ou
Fevereiro de 2013, e que orçaria em quase um milhão de euros. Foi mais uma
promessa que ficou por cumprir, e que constituiria, só por si, um motivo –
outros existiram – para que António Costa não merecesse ser reeleito presidente
da autarquia. Sabendo que nem sequer bases de estátuas estes “artistas” poupam,
regressemos novamente ao passado e imaginemos o que aconteceria se, logo depois
de ser inaugurado, em 1775, na (então nova) Praça do Comércio, o monumento a D.
José fosse danificado por um “pretendente a pintor”. Se capturado, o energúmeno
não escaparia a, pelo menos, ser açoitado, ou chicoteado, em público, e, a
seguir, enviado em degredo para África. Não se exige que aos actuais
“grafiteiros” seja aplicado um correctivo semelhante, mas lá que precisam de
apanhar um valente susto, lá isso precisam. Sujar uma parede é, tal como atear
um fogo, destruir propriedade alheia. E a distância que vai entre cometer um
acto e o outro pode não ser muito grande nem muito demorada de percorrer.
Jornalista e escritor
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