A bomba atómica que veio do Tribunal
Por Ana Sá Lopes
publicado em 20 Dez 2013 in (jornal) i online
Ao invocar o princípio da confiança, o TC chumba
rotundamente o governo
Um governo que é contra a Constituição pode governar? Pode,
mas dá imenso trabalho a toda a gente. Foi o que voltou a acontecer ontem com o
previsível chumbo da lei das pensões que o tribunal "político" da Rua
do Século acabou por decidir por unanimidade. Ao invocar o "princípio de
confiança" - que tem sido desmanchado a torto e a direito no espaço
público desde a entrada da troika -, o
Tribunal, esse sim, mostra que apesar de tudo há linhas
vermelhas. Assaltar velhinhas com uma lei armadilhada não é um programa.
Esta decisão deu imenso trabalho a muita gente, muito para
além das horas de trabalho dos juízes do Tribunal (e dos assessores jurídicos
da Presidência da República). Nas vésperas da decisão foi montado um duro
trabalho de cerco ao Tribunal realizado pelo governo em coligação com as
"instâncias internacionais", vulgo "os nossos credores".
Não houve ave rara que não se tivesse pronunciado sobre o cataclismo que se
seguiria a uma decisão negativa do Tribunal Constitucional. Perante a dimensão
homérica do cerco, as declarações dos responsáveis do PSD e do CDS feitas ontem
à noite depois de conhecida a decisão do TC quase pareceram moderadas.
O problema do princípio da confiança - agora invocado pelo
Tribunal Constitucional - é que tem sido violado sistematicamente pelas
instituições desde que passámos a ser, como diz o vice-primeiro-ministro,
"um protectorado". O próprio Tribunal Constitucional não deixou de
violar esse princípio da confiança quando chegou a viabilizar o Orçamento que
retirou os subsídios da função pública em nome das difíceis condições que o
país vivia. Foi um momento que o governo sonhou que o tribunal repetisse: o
Tribunal Constitucional aceitaria coisas inconstitucionais em nome dos
"nossos credores" ou do défice, da troika ou da nossa permanência no
euro. O TC decidiu não repetir o erro e não violar o princípio na sua própria
"confiança" à luz da Constituição. Mas - mesmo não se sendo contra a
Constituição, como o é a maioria dos governantes - há aqui um problema. A nossa
Constituição é compatível com as alucinadas exigências dos "nossos
credores"? A nossa Constituição é compatível com a transferência de
decisões nacionais para o eixo Bruxelas-Berlim? A nossa Constituição é
compatível com a reformulação dos tratados feita na clandestinidade nas
instâncias europeias depois da crise? Infelizmente, Passos Coelho tem razão
numa coisa: não é compatível. E agora, que fazer?
"Mas ainda não compreendeu que o problema não é a Constituição." |
388 milhões de euros, uma Constituição
Mais do que o chumbo, foi a
forma do chumbo que representou uma derrota inapelável para o Governo
Quando o Tribunal Constitucional (TC) aprovou, por uma
diferença mínima, a lei das 40 horas de trabalho na função pública, a esquerda
por momentos esqueceu-se das juras mil vezes repetidas ao tribunal como
baluarte último da democracia e declarou sem demoras que lá por uns quantos
juízes os terem contrariado iam continuar a combater o diploma do Governo. No
território político, a Constituição, já se vê, é como os árbitros, tem as
costas largas. Mas ao deixar passar a lei das 40 horas, contrariando as
pressões da esquerda (que também existem, embora sob a forma de “fogo amigo”),
o TC provou, se necessário fosse, a independência das suas decisões face aos
actores políticos. E a independência é indispensável à legitimidade de um
Tribunal Constitucional, por mais discutidas que as suas decisões possam (e
devam) ser. A força política que ganhou na batalha anterior deste contínuo
quiproquó que vem mantendo com o Governo, o TC aplicou-a de forma brutal no
acórdão em que chumbou o regime de convergência das pensões da Segurança Social
e da Caixa Geral de Aposentações. Isso porque mais importante do que o chumbo,
previsível e antecipado por todos, a começar pelo Governo, foi a forma do
chumbo: por unanimidade, por violar o princípio da protecção de confiança. E de
uma forma que dá muito pouca margem de manobra ao Governo. O presidente do
tribunal, Sousa Ribeiro, considerou-a “uma medida avulsa”. E rejeitou que
estivéssemos perante “uma reforma estrutural abrangente”, sugerindo,
indirectamente, que os juízes olhariam de outro modo para uma reforma, mas não
para um expediente orçamental disfarçado de reforma. O TC respondeu reafirmando
a sua soberania e independência à cascata de pressões que o vinham atingindo há
meses. O Governo voltou à estaca zero e perdeu, pelo caminho, o secretário de
Estado Hélder Rosalino. Mas ainda não compreendeu que o problema não é a
Constituição.
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