Jaime Nogueira Pinto em entrevista ao i. “Foi-se longe
de mais na diabolização do Estado Novo”
Por Luís Rosa
publicado em 21 Dez 2013 in (jornal) i online
Académico defende que o 25 de Abril promoveu uma ruptura
mais forte que a passagem da monarquia para a República
Sendo o nacionalismo um pensamento político em vias de
extinção em Portugal desde o 25 de Abril, Jaime Nogueira Pinto é uma espécie de
ave rara entre os nossos intelectuais. Autor de uma vasta obra, regressa aos
temas históricos depois de se ter estreado nas lides literárias com o seu
primeiro romance e de ter publicado o assombroso "Ideologia e Razão de
Estado - Uma História do Poder". O novo livro, intitulado "Portugal -
Ascensão e Queda" (Ed. D. Quixote), em que Nogueira Pinto faz um resumo
das ideias políticas que marcaram a história de Portugal, foi o ponto de
partida da conversa com o i. Homem de direita e conhecido apoiante do Estado
Novo, o que o levou ao exílio a seguir ao 25 de Abril, o académico tem uma
visão politicamente incorrecta da história - que se acentua à medida que se
aproxima dos temas e acontecimentos contemporâneos.
Se a ascensão do país começa com as descobertas, a queda
inicia-se quando?
Não se pode dizer que há só uma ascensão e só uma queda.
Tivemos de facto um ciclo de ascensão, que começa com a guerra da
independência, com o infante D. Henrique, a dinastia de Avis toda, e depois as
navegações: primeiro a costa ocidental africana, depois o dobrar do cabo da Boa
Esperança e a viagem de Vasco da Gama. De seguida vêm as conquistas. Afonso de
Albuquerque, a figura mais simbólica desse império, morre em 1515 depois de
conquistar os pontos principais do Índico. Aguentámos no século xvi - ganhámos aqui,
perdemos acolá. Não há dúvida de que tivemos grandes progressos na colonização
do Brasil, mas em contrapartida tivemos altos e baixos na Índia. E depois com a
expedição de Alcácer Quibir e o seu mau sucesso perdemos a independência e
voltámos ao zero político. E isso passa a ter consequências, até porque os
inimigos de Espanha passam a ser nossos também, o que até aí não acontecia, uma
vez que Portugal nasceu contra Espanha e portanto os seus inimigos costumavam
ser os nossos aliados. Passámos a ter os ingleses, os franceses e os holandeses
contra nós e os espanhóis, tendo de escolher os seus próprios territórios ou os
de Portugal - mesmo sendo nessa altura deles -, protegiam os deles. Perdemos o
Brasil, Angola e uma parte substancial da Índia e do Oriente. Destes últimos
praticamente não recuperámos nenhum, o Brasil e Angola recuperámos já depois da
Restauração. Mas é muito interessante que quem recupera Angola são os
portugueses do Brasil. A partir da Restauração temos uma nova subida, que se
intensificou com a vitória da guerra da independência. Há uma figura
notabilíssima que é uma espécie de resumo disto tudo: o padre António Vieira. É
um continuador, uma figura com um relevo grande, um homem de sete instrumentos,
que vive quase 90 anos. É um homem que, após ser missionário no Brasil, corre a
Europa toda com ideias fantásticas e tem a ideia de criar em Portugal uma
companhia majestática para explorar o comércio marítimo e negociar com os
judeus portugueses e com os cristãos- -novos fugidos para a Holanda o regresso
dos capitais a troco da liberdade religiosa.
O que a Holanda estava a fazer...
Sim, era isso que a Holanda estava a fazer com as suas
companhias. Temos depois disso uns períodos complicados e no século xviii - já
tínhamos tido a grande fortuna da pimenta da Índia e a grande fortuna do açúcar
do Brasil - vem o ouro e os diamantes do Brasil, que curiosamente não deixam
muito por cá, porque se gasta muito dessa fortuna a defender os territórios. Os
nossos principais autores do século xix, como o Oliveira Martins, criticavam
muito o facto de não termos imperialismo como os outros. Não explorávamos
economicamente as coisas ou se explorávamos não conseguíamos tirar vantagens.
Diz-se que não tínhamos meios humanos nem capital para o
fazer.
É um problema de números. No século xvi, a população
portuguesa era cerca de um milhão, enquanto os espanhóis já são 7 milhões e os
ingleses talvez 3,5 milhões. Temos uma população proporcionalmente pequena, se
formos ver a nossa área de expansão nesse século: do Nordeste do Brasil ao Rio
de Janeiro e do Rio ao Maranhão. A Bahia já havia sido fundada; tínhamos em
África muita gente, em Marrocos havia praças guarnecidas com guerras de
fronteira continuadas. Havia ainda as feitorias em Luanda, Benguela, depois na costa
oriental, a costa de Moçambique até quase à Somália, e depois a Índia. A
carreira da Índia tinha uma média de cinco barcos anuais - devem ter ido para a
Índia entre 60 e 70 mil homens durante o século xvi. É uma aventura
desproporcional face aos recursos e por isso é que é tão impressionante. Essa
história esmaga-nos agora: metade do país revê-se nela numa espécie de
nostalgia que dá para a tristeza e a outra metade que, por estar longe, quase a
odeia. Temos, como os espanhóis, um problema de convivência com esta fase da
história que não é fácil.
Sentimo-nos um país pequeno, mas, se olharmos para os
números da União Europeia a 28, somos um país de dimensão média. Esse
sentimento de inferioridade tem a ver com a ideia de que já fomos grandes?
Sim. Fomos os primeiros europeus a conseguir chegar e os
últimos a sair, uma espécie de império tardio. E isso marca--nos. Na Idade
Média Portugal era um país paupérrimo do ponto de vista agrícola devido a uma
questão geográfica: dois terços do território são paus e pedras, pinhais,
montanhas, e não temos muitos rios navegáveis. Tínhamos as lezírias do Tejo, o
Sado, um bocadinho do vale do Mondego. Terra pobre, difícil de trabalhar, e por
isso tinha-se de viver do mar. Nessa altura começa por isso um comércio intenso
não só para sul, mas também muito para norte - com a Flandres e a Inglaterra -
muita exploração de pesca na costa. Mas a questão dos portos também não era
famosa. Olhando para essas condições, há uma grande visão do infante D.
Henrique na promoção das Descobertas ao trazer os cosmógrafos, os pilotos, e
criar um sistema de incentivos para a vinda dos que viviam nos melhores sítios
da Europa, nomeadamente em Itália. Os líderes dessa época tiveram ambição,
audácia e uma grande visão - usando a história podemos aprender. O infante
tinha a decisão, os fundos e as condições necessárias para lançar as
expedições. Mas não foi uma questão pacífica na sociedade da época. Se lermos
os autores do tempo, como Gil Vicente e Camões, percebemos que discutem os prós
e os contras da aposta do infante. Camões, por exemplo, vai buscar o Velho do
Restelo porque havia muita gente que se opunha às descobertas - e ele dá voz a
isso. "Os Lusíadas", que infelizmente nos metem pela frente quando
somos pequenos com o objectivo de analisar questões chatíssimas de gramática,
são uma obra simbólica desse ambiente e revelam uma sociedade portuguesa muito
viva. Estamos a falar do século xvi.
A figura de D. Sebastião tem um lado heróico porque o rei
morreu em combate, mas também fica ligado à tragédia porque ficámos sem
descendentes. A queda de Portugal parece que se inicia aí.
Claro. O império estava exausto. Se formos a analisar a
geopolítica da época, a ida de D. Sebastião a Marrocos fazia um certo sentido:
servia para impedir a vinda dos turcos para esta zona, apoiando o pretendente
ao trono marroquino que defendia a mesma ideia, e afirmar Portugal como uma
potência regional. Ora trazer os turcos para esta zona era de facto um salto
complicado e perigoso do ponto de vista geopolítico. Os turcos tinham nos
meados do século xv conquistado Constantinopla e em 1571 tinham sido derrotados
pelos cristãos em Lepanto. É claro que a expedição foi mal conduzida e conduziu
à derrota. Mas nessa queda há também uma grande força. O português é também um
grande resistente. Os portugueses não vivem bem na mediania. Quando são
chamados para as conquistas lá se desenrascam e lá vão eles. E quando caem têm
capacidade de resistir, como demonstraram ao longo de várias ocupações em que
nunca foram cobardes.
Estamos à espera de salvadores desde D. Sebastião: D. João
IV, D. Pedro (ou D. Miguel) ou até mesmo Salazar.
O Salazar aparece aí, de facto, como um Messias. A Primeira
República estava completamente desacreditada e toda a gente estava contra o Partido
Democrático. Por exemplo, as tropas do golpe de 1926 vieram para Lisboa todas
de comboio; não houve uma única sabotagem, mesmo daqueles sindicatos muito
esquerdistas para a época. Estava tudo farto do Afonso Costa e das suas
aldrabices. A tragédia foi que a oposição antifascista - que no 25 de Abril
veio a receber o poder da mão dos militares sem, na verdade, ter feito nada por
isso - ficou obcecada com fazer tudo ao contrário do que o Salazar tinha feito.
Admito até que houve um ressentimento muito grande, pois o regime durou 48
anos. Mas talvez se tenha ido longe de mais.
Verificou-se uma diabolização do Estado Novo?
Sim, há essa diabolização. É curioso, porque nas anteriores
revoluções isso não tinha acontecido. Por exemplo, na passagem da monarquia
para a República não se mexeu na questão de África. Porquê? O pessoal que a
República pôs a governar o Ultramar, quer em Moçambique quer no resto de
África, quase todos eles tinham estado com o Mouzinho da Albuquerque, com o
Paiva Couceiro, com toda essa gente. Havia pois uma continuidade com os
"africanos". Uma das razões para os republicanos tomarem o poder era
acusarem a monarquia de não defender bem as colónias. Até foram para a guerra
por causa disso. Dá-se uma mudança a partir dos anos 60 e dá-se com o Partido
Comunista, primeiro, e depois também com o Mário Soares. Foi na eleição de
1965, salvo erro, que pela primeira vez essa oposição tomou uma posição sobre o
assunto diferente daquela da oposição tradicional.
A grande falha do Estado Novo foi ter impedido uma maior
autonomia das colónias a seguir à independência da Índia em 1947?
Sabe, tenho pensado muito sobre o assunto... Era complicado.
O Salazar não podia. Em 61/63 o mundo estava todo contra nós. Mesmo os
americanos e a Igreja - que após o Concílio Vaticano II começa a deixar de
apoiar regimes politicamente conservadores. Além disso, a Academia Militar, que
fora apoiante incondicional da mudança de regime em 1926, já não dava essa
garantia - os jovens que iam estagiar nas academias norte-americanas voltavam
para conspirar. Depois, ao contrário do que o Salazar e o Franco Nogueira
pensavam, as nossas colónias não eram assim tão importantes como nós pensávamos
que eram.
A França e o Reino Unido souberam sair, mas mantendo a
ligação cultural e comercial.
Sim, é verdade. Mas, em segundo lugar, esses países tinham
uma grande dimensão metropolitana, com grande massa crítica, com grande poder
na Europa - coisa que nós não tínhamos. Foi esse o nosso equívoco. O problema
do Salazar também era a sua maneira de ser: muito frio e racional. Aquilo tinha
de ter tido outro rasgo. Marcelo Caetano podia ter mudado isso, mas quando
chega, em 68, a
guerra em Angola está relativamente controlada.
A história oficial ensina-nos que a guerra estava perdida
Mas não estava, isso está estudadíssimo. Em 1973 houve 50
mortos em Angola, com quase 100 mil homens em armas. O que se pode dizer é que
o país não estava preparado - com o serviço militar obrigatório era muito
complicado fazer isto. Primeiro porque começava a haver dinheiro, depois
começaram a dar-se os fenómenos que se deram nos Estados Unidos com o Vietname.
Grande parte das coisas acabaram no Vietname quando terminou o serviço militar
obrigatório. As gerações estavam a apanhar com a riqueza económica, as classes
médias não queriam ir. Uns tinham medo, outros não estavam para isso. Muitas
vezes não eram eles mas as próprias famílias, as mãezinhas. Fez-se um esforço
para a profissionalização do Exército, mas Salazar nunca quis isso.
Sempre foi muito crítico de Marcelo Caetano,
responsabilizando-o pelo fim do regime.
Sim, mas revi algumas das minhas posições. O que Marcelo
Caetano tentou fazer foi o salazarismo sem Salazar. Ora aquilo não funcionava
assim. O Franco pôde fazer isso mas não tinha uma guerra de África. Essa é a
grande questão. E Franco tinha uma visão muito dinâmica da sociedade espanhola.
Salazar tinha horror à violência, tinha aquela ideia muito ordeira. Franco não,
tinha passado a vida dele na violência. Salazar era muito dado às coisas
católicas, muito ordeiro. Tem aquela frase fantástica: "O Estado tem de
ser forte para não ser violento." Salazar acabou por criar um sistema que
não tinha saídas.
Ao não conseguir fazer uma transição para a democracia, o
Estado Novo não foi responsável pelos danos políticos, económicos e sociais do
PREC?
Não se podia fazer a guerra com a democracia aqui. E nunca
ninguém pensou que a instituição militar estivesse assim. Um Exército onde há
uma revolta de capitães já não é um exército. Quem comanda as unidades são os
coronéis e os tenentes-coronéis - é uma classe leal ao regime, até por razões
funcionais, políticas e institucionais. E isso foi um prognóstico em que me
enganei. Não percebi que as unidades militares estavam na guerra - cá estavam
uma espécie de depósitos para formar o pessoal para África. O que de deu no 25
de Abril foi precisamente isso. Uns capitães fizeram as coisas, nuns sítios
prenderam, noutros nem tiveram de prender coisa nenhuma. Fez--se como na
Primeira República: quem não aderiu também não obstruiu. E o próprio Marcelo
Caetano também desarticula qualquer espécie de defesa. O sistema está de tal
modo minado que Marcelo Caetano acha que aquilo é uma revolta, não contra ele,
mas para tirar Américo Tomaz e deixá-lo ficar a ele. Ele acha que o Spínola
está a comandar e Spínola não está a comandar coisa nenhuma. Todos são usados,
mesmo uma série de oficiais conservadores. É uma espécie de comédia de enganos.
Uma Constituição que apagasse os tempos do PREC permitiria
reequilibrar a balança política no país?
Não sei. Vou contar-lhe um história: na véspera de vir para
Lisboa, não sei se da primeira se da segunda vez, Salazar encontrou o Cabral
Moncada na Baixa. Eles não eram da mesma geração, mas eram contemporâneos.
Salazar estava muito preocupado e perguntou-lhe: "O que é que eu vou fazer
para a política? Eu não tenho imaginação nenhuma." Ele, de facto, não
tinha grande imaginação, mas Portugal nessa época - estamos a falar de 1928 -
não precisava de imaginação. Apesar de tudo, o espaço ultramarino colonial era
uma espécie de grande reserva que assegurava as matérias-primas e os excedentes
demográficos. Desde que houvesse ordem financeira e nas ruas, os recursos
existiam e o dinheiro voltou. Hoje em dia é exactamente o contrário. Portugal
precisa de imaginação. Hoje também há muita coisa em comunicações e
transportes. A tecnologia tornou mais fácil muita coisa. E não há dúvida que os
portugueses têm boas condições psicológicas, porque somos miméticos,
cosmopolitas. Alguém me dizia que sai uma nota optimista deste livro, que é a
ideia de que, mesmo em dificuldades, estamos a mostrar resistência. Mas esse é
o nosso lado de resistentes nas Invasões Francesas. Quando chegamos ao limite,
por sermos uma nação muito antiga, temos coisas que não contamos que apareçam
mas aparecem. Depois... é como a indignação. Se ela não for organizada, não
serve de nada em política. É uma boa forma de provarmos que não somos cínicos,
mas isso tem de ter alguma organização. Agora é preciso haver uma identidade
forte. E o poder económico que advém do facto de sermos uma nação também dá
bastante força. Porque os problemas que vêm aí, na Europa, vão ser de violência
e de fragmentação. Vão ser problemas ligados à identidade.
A integração de Portugal na União Europeia (UE) foi um
logro?
Lembro-me que a minha mulher, que na altura trabalhava no
Estado, me dizia sempre que tudo aquilo tinha sido muito mal negociado, à
pressa. Porque a entrada na Europa era uma espécie de seguro de vida do regime.
As pessoas não queriam que houvesse um regresso ao Estado Novo, por um lado, e
também tinham medo da esquerda totalitária. A ideia era: "Vamos entrar
aqui para um clube, mesmo que depois não tenhamos dinheiro para pagar as
quotas. Mas agora entramos, ficamos aliviados, e eles defendem-nos dos males
maiores." A dada altura não se podia dizer mal da adesão à Europa. Havia
uma espécie de unanimismo à volta disso, que nos levou para a situação em que
estamos. Depois, é curioso - e num processo que já vi acontecer diversas vezes
em Portugal -, as pessoas parece que não têm qualquer tipo de memória dos seus
actos. E clamam contra as consequências das coisas que foram concretizadas
quando estiveram no poder.
No seu livro classifica a Europa como um continente em
decadência. Com a crise que atravessa a zona euro e afecta a própria União
Europeia, a Europa tem salvação?
Não sei se tem. Estou convencido de que nas próximas
eleições europeias a UE vai ter uma sacudidela com uma subida forte dos
partidos identitários, sobretudo em França e em Inglaterra. Isso vai levar os
todos os partidos a terem posições muito restritivas, quer quanto à própria
federação europeia, quer quanto à imigração. Mesmo a ideia de um referendo na
Inglaterra sobre a pertença à Europa não me parece muito esquisita. Por outro
lado, há uma coisa de que nos esquecemos, acho até que por falta de informação
histórica. Nas sociedades em decadência da antiguidade vivia-se muito bem. Essa
ideia de decadência está ligada à ideia de perda de poder e de protagonismo na
cena mundial, mas também tem razões de ser. A Europa esteve durante séculos no
centro de tudo e depois teve duas guerras muito sangrentas e destruidoras. O
coração da destruição do século xx foi aqui. Somos um grande museu a céu
aberto. Os outros vêm cá gastar dinheiro. Não há milionário russo, chinês ou
australiano que não tenha um bom apartamento em Londres, no Sul de França, que
não goste de passar 15 dias num bom barco no Mediterrâneo. E os alemães, como
são disciplinados e não ligam muito à qualidade de vida - no sentido latino,
mas também francês e inglês, do requinte -, fizeram as reformas da indústria.
Mais vale que estejam a trabalhar na indústria que a invadir outros sítios à
mão armada.
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