quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
“Porque não vêm até cá?”
Terra queimada
OPINIÃO
Terra queimada
OCTÁVIO DOS SANTOS 24/12/2013 – in Público
Portugal, que foi pioneiro na abolição da pena de morte,
algo de que sem dúvida se deve orgulhar, caiu no outro extremo, o da excessiva
permissividade.
Após o terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755, uma das
primeiras ordens dadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de
Oeiras e marquês de Pombal, foi a de que todos os que fossem apanhados em
flagrante a saquear cadáveres e ruínas fossem executados sumariamente, e em
forcas montadas o mais alto possível, para servirem de exemplos bem visíveis em
toda a cidade. Estima-se que cerca de 200 ladrões terão ficado pendurados pelo
pescoço nas semanas que se seguiram ao cataclismo.
Saliente-se o que é óbvio: aqueles lúgubres larápios não
causaram a catástrofe nem, tanto quanto é possível saber, a morte das pessoas
que assaltavam. Porém, pagaram com as suas vidas as profanações que fizeram.
Agora, avancemos no tempo mais de 250 anos, até 2013, em que os incêndios florestais
atingiram mais de 121 mil hectares e causaram a morte de nove pessoas, das
quais oito bombeiros – fazendo com que sejam já cerca de 200 os “soldados da
paz” a morrerem nas florestas nos últimos 30 anos; a Polícia Judiciária
efectuou 73 detenções pelo crime de fogo posto. Estes incendiários não terão
causado todos os incêndios e todas as mortes… mas são culpados, mesmo, da
destruição de algumas (demasiadas) terras e da perda de algumas (demasiadas)
vidas humanas. E que lhes vai acontecer? Serão enforcados? Ou lançados nas
chamas que atearam para “provarem do seu próprio remédio”? Não. Se forem
julgados e condenados, incorrem numa pena máxima de apenas 12 anos de prisão –
porque o fogo posto é considerado um crime simples, e não qualificado. No
entanto, nem isso é certo: por exemplo, entre 2007 e 2011 foram proferidas 280
condenações, mas dessas só 14 implicaram uma sentença de prisão efectiva.
Aliás, antes disso, ser apanhado em flagrante não significa necessariamente
ficar em prisão preventiva…
Portugal tem terra queimada no sentido literal, mas também
no sentido figurado: aumentam no interior as áreas que são abandonadas,
desabitadas, desertificadas – e que desse modo ficam “queimadas” para o
desenvolvimento e para a modernização. Todavia, todo o país, tanto em meio
urbano como em meio rural, está a tornar-se uma enorme terra “queimada” pelo
desemprego e pela emigração, factores que sem dúvida contribuem para explicar
as consecutivas falhas na prevenção e na detecção de fogos… mas que não as
desculpabilizam. Décadas de discussão e de planificação das chamadas “épocas de
incêndios” não têm impedido que aqueles se tenham tornado uma trágica e triste
“normalidade” – tal como a criminalidade, a incompetência não tem sido
devidamente punida. E assim como acontece em relação a outros tipos de delitos,
não há qualquer dúvida de que a ausência de penalizações (mais) pesadas neste
campo é um incentivo aos infractores para (re)incidirem nos seus
comportamentos. Um pirómano pode causar – e costuma causar – uma enorme
devastação, extensa na quantidade e na qualidade do que se destruiu. Pelo que
se justificaria que a justiça o castigasse, se não com a morte, então com a
prisão perpétua.
Esta deveria estar em vigor em Portugal e aplicada a todos
os que cometem crimes muito graves. Porém, este país, que foi pioneiro na
abolição da pena de morte, algo de que sem dúvida se deve orgulhar, caiu no
outro extremo, o da excessiva – e vergonhosa – contemporização e
permissividade. E já se percebeu que neste regime, nesta terceira república,
tal situação não será alterada. Recorde-se o que aconteceu em 2001, em que se
colocou a questão da adesão (ou não) do nosso país ao Tribunal Penal
Internacional e as consequentes alteração e revisão (extraordinárias) da
Constituição: uma das mais inacreditáveis, indescritíveis e patéticas polémicas
que alguma vez aconteceram neste país. Havendo a hipótese, com a ratificação do
tratado que instituiu o TPI, de Portugal ter de extraditar pessoas para países
onde vigora(va) a prisão perpétua, apareceu um alargado e indignado coro de
“defensores do humanismo” que, clamando contra o que seria um alegado
“recuo/retrocesso civilizacional”, reiterava a preferência nacional pelo
princípio da “ressocialização” e a manutenção da nossa “posição humanista e avançada”.
Na verdade, essa posição tornou-se tão “humanista” e tão “avançada” que,
actualmente, até vítimas de um assalto – uma das quais foi atingida a tiro! –
são levadas a tribunal pelo respectivo assaltante, com o apoio do Ministério
Público, devido à “violência” que sofreu às mãos daquelas na sequência de uma
(re)acção de legítima defesa! As demonstrações de laxismo e de leviandade,
tanto na definição de penas como na respectiva aplicação, de que existem
numerosos exemplos nos últimos anos, constituem autênticos “convites” para que
mais criminosos “queimem” não só pessoas mas também patrimónios nacionais,
naturais, económicos...
E também culturais e arquitectónicos: neste âmbito, é tão
condenável deixar-se decair edifícios de valor histórico como permitir – não
perseguindo e não castigando os culpados – que todos os imóveis,
independentemente da sua antiguidade e utilização, sejam desfeados,
vandalizados, enfim, “queimados”… por tinta: os denominados tags inundam todo
este país e, em especial, a sua capital. Há um ano, a Câmara Municipal de
Lisboa, através do vereador José Sá Fernandes, anunciou um “combate radical aos
graffiti”, uma “mega-operação de limpeza” que se iniciaria em Janeiro ou
Fevereiro de 2013, e que orçaria em quase um milhão de euros. Foi mais uma
promessa que ficou por cumprir, e que constituiria, só por si, um motivo –
outros existiram – para que António Costa não merecesse ser reeleito presidente
da autarquia. Sabendo que nem sequer bases de estátuas estes “artistas” poupam,
regressemos novamente ao passado e imaginemos o que aconteceria se, logo depois
de ser inaugurado, em 1775, na (então nova) Praça do Comércio, o monumento a D.
José fosse danificado por um “pretendente a pintor”. Se capturado, o energúmeno
não escaparia a, pelo menos, ser açoitado, ou chicoteado, em público, e, a
seguir, enviado em degredo para África. Não se exige que aos actuais
“grafiteiros” seja aplicado um correctivo semelhante, mas lá que precisam de
apanhar um valente susto, lá isso precisam. Sujar uma parede é, tal como atear
um fogo, destruir propriedade alheia. E a distância que vai entre cometer um
acto e o outro pode não ser muito grande nem muito demorada de percorrer.
Jornalista e escritor
French culture Bleak chic. / The Economist.
French culture
Bleak chic
Dec 21st 2013 | PARIS | in The Economist / http://www.economist.com/news/christmas-specials/21591749-bleak-chic
ONE of the most perplexing questions of the early 21st
century is this: how can the French, who invented joie de vivre, the three-tier
cheese trolley and Dior’s jaunty New Look, be so resolutely miserable? To
outsiders, the world’s favourite tourist destination embodies the triumph of
pleasure over desk-slavery, slow food over fast, the life of the flâneur over
that of the frenetic. Yet polls suggest that the French are more depressed than
Ugandans or Uzbekistanis, and more pessimistic about their country’s future
than Albanians or Iraqis. A global barometer of hope and happiness puts the
French second to bottom of a 54-country world ranking, behind
austerity-battered Italians, Greeks and Spaniards, and ahead only of Portugal.
Happiness is of course a slippery concept. Asked if they are
happy, people everywhere are more than likely to say yes; far fewer say that
they laugh much. Gallup, a pollster, has devised a global “positive experience
index”, based on whether respondents report that they laughed and smiled a lot
or did something enjoyable the previous day. By such measures, France does
better than the world average. But take out war-torn or poor countries, and
measure the French against fellow rich nations, and they still turn out to be
unhappier than their peers. The French report fewer “happy experiences” than
those in America, Britain, Germany, Switzerland, Sweden, Canada, Norway, the
Netherlands, Austria and Belgium. The land of the bon vivant is an unhappy
outlier.
Claudia Senik, a French economist at the Paris School of
Economics, calls this the “French unhappiness puzzle”. In a 2013 study, she
found that the French were not only unhappier than their level of wealth and
unemployment would suggest, but also more discontented than French-speaking
people in Belgium and Canada (so language is not the reason), and more
miserable when they emigrated compared with non-French expatriates in the same
place (so they take their gloom with them). “Unhappiness seems to be more than
about life in France,” Ms Senik concluded. “It is something about being
French.”
Naturally, Ms Senik’s findings caused a stir in France,
prompting Maureen Dowd, a New York Times writer who was visiting Paris at the
time, to report that “joie de vivre has given way to gaze de navel”. Le Monde
ran three pages under the title “Liberté, Égalité, Morosité”, in a bid to
decode its fellow countrymen’s “persistent melancholy”. France, it turns out,
has the highest suicide rate in western Europe after Belgium and Switzerland.
An American psychiatric study showed that, among ten rich countries, the French
were the most likely to have a “major depressive episode” at some point in
their life. Even the French language seems to be particularly well
stocked—morosité, tristesse, malheur, chagrin, malaise, ennui, mélancolie,
anomie, désespoir—with negativity. Can there really be something about being
French that makes for so much gloom?
Fifty shades of noir
Two periods in France’s recent history have contributed most
to the rich seam of misery in its culture—one after the revolution, the other
after the second world war. In the quarter-century from the fall of the ancien
régime in 1789 to 1814, France overthrew a monarchy, endured the Terror, and
lost an empire. After this period the Romantic movement, from Baudelaire to
Chopin, expressed a melancholy infused with nostalgia and ambivalence towards a
society dominated by rationalist thought and bourgeois values.
In “René”, a novel published in 1802, Chateaubriand
introduced to the world the tortured French youth, whose “wretched, barren, and
disenchanted” existence embodied what the writer called the mal du siècle. In
his memoirs, Chateaubriand recognised that he had set more of a trend than he
had bargained for:
If René did not exist, I would not write it again…all we
hear nowadays are pitiful and disjointed phrases; the only subject is gales and
storms, and unknown ills moaned out to the clouds and to the night. There’s not
a fop who has just left college who hasn’t dreamt he was the most unfortunate
of men; there’s not a milksop who hasn’t exhausted all life has to offer by the
age of sixteen; who hasn’t believed himself tormented by his own genius; who,
in the abyss of his thoughts, hasn’t given himself over to the “wave of
passions”; who hasn’t struck his pale and dishevelled brow and astonished
mankind with a sorrow whose name neither he, nor it, knows.
Romantic miserabilism was experienced as a form of pleasure.
“Melancholy”, wrote Victor Hugo, “is the happiness of being sad.” It was
treated as a noble state, a higher aesthetic condition. “I do not pretend that
joy cannot be allied with beauty,” wrote Baudelaire in his diary. “But I do say
that joy is one of its most vulgar ornaments; whereas melancholy is, as it
were, its illustrious companion.” Much of this tradition is firmly fixed in
today’s French mind. Hugo’s poem “Melancholia” is required reading for French
lycée students, as is Alfred de Musset’s “La Nuit de Mai”, whose narrator
laments that “Nothing makes us so great as great sorrow.”
The strange beauty of melancholy finds some echo in
mid-20th-century France, which produced a second wave of miserabilism.
Françoise Sagan’s “Bonjour Tristesse”, published in 1954, for instance, opens
with the 17-year-old Cécile’s lament:
A strange melancholy pervades me to which I hesitate to give
the grave and beautiful name of sorrow. The idea of sorrow has always appealed
to me, but now I am almost ashamed of its complete egoism. I have known
boredom, regret, and occasionally remorse, but never sorrow. Today it envelops
me like a silken web, enervating and soft, and sets me apart from everybody
else.
Yet the ennui that marked this second period had less to do
with nostalgia than nausea. In “L’Etranger”, Albert Camus’s protagonist,
Mersault, is perhaps the world’s best-known embodiment of anguish in the face
of the unknowable meaning of existence, or the absurd. Post-war French theatre
developed the absurd, through the plays of Camus, Jean Anouilh and the
Franco-Romanian Eugène Ionescu. Samuel Beckett, an Irishman, wrote “Waiting for
Godot” in French. On a chilly winter’s evening in 1953 on Paris’s left bank,
two years before the play went on to unsettle English-speaking audiences, it
was first staged at the 75-seat Théâtre de Babylone, and struck a chord with
post-war Paris.
The left-bank literary clique led by Sartre…adopted ennui as a way of life as well as a philosophy |
Neither Camus nor his contemporary, Jean-Paul Sartre, was
ultimately a pessimist. But it is the torment of existentialism, rather than
its conclusions, that captured the imagination. Indeed, the left-bank literary
clique led by Sartre and Simone de Beauvoir, which gravitated to the cafés of
Saint-Germain-des-Près, adopted ennui as a way of life as well as a philosophy.
When Sartre handed the original manuscript of “Nausea” to Gallimard, his
publisher, he entitled his novel “Melancholia”.
Perhaps the best exemplar of miserabilism among contemporary
French fiction writers is Michel Houellebecq, the controversial
Goncourt-prize-winning novelist, in such nihilist works as “Whatever” or
“Atomised”. His characters invariably lead empty, often sordid, always
disillusioned lives. “In the end,” writes Mr Houellebecq in “The Elementary
Particles”, “there’s just the cold, the silence and the loneliness. In the end,
there’s only death.”
There have, of course, been periods during which the gloom
lifted. It was after the double shock of the Franco-Prussian war of 1870-71 and
the bloody Paris Commune, after all, that the Impressionists took their tubes
of paint and brushes outdoors, delighting in light and colour. Despite a
measure of fin-de-siècle anxiety, the belle époque was a moment of breezy
certainty. Gustave Eiffel unveiled his wrought-iron tower in 1889. By 1900 the
City of Lights drew 51m visitors to its universal exhibition, under the theme
of “Paris, capital of the civilised world”, and Matisse, Derain and other
fauves had started to capture exuberant colour and warmth on canvas. Yet
miserabilism seems to have a greater hold on the French mind today.
I doubt, therefore I am
One reason could be the French appetite for brutal
self-criticism. From Descartes onwards, doubt is the first philosophical
reflex. “The rationalist tradition makes us sceptical; we exist through
criticism,” argues Monique Canto-Sperber, a philosopher and director of Paris
Sciences et Lettres, an elite university. “We treat those too full of hope as
naive.” In “Candide, or The Optimist”, published in 1759, Voltaire mocks the
folly of looking on the bright side in the face of unimaginable horrors.
“Optimism”, says a disabused Candide in the novel, “is the madness of insisting
that all is well when we are miserable.” When a French magazine recently tried
to decode today’s national pessimism, it concluded: “It’s Voltaire’s fault”.
“We find it more chic and more spiritual to doubt everything.”
Up to a point, this is an affectation of the elite. “It is
in a certain Parisian milieu that there are intellectuals who are grumpy by
trade,” argues Jack Lang, the Socialist former culture minister: “There is a
gap with the rest of French society.” Yet France cherishes public
intellectuals, so their influence spreads wide. It is a talking, thinking
culture. Its films value dialogue over plot; its talk-shows are interminable.
The French, wrote a helpful official guide for British servicemen heading to
France for the 1944 liberation offensive, “enjoy an intellectual argument more
than we do. You will often think that two Frenchmen are having a violent
quarrel when they are simply arguing some abstract point.”
The country treats its philosophers like national treasures,
even celebrities, splashing photographs of them across the pages of glossy
magazines. And it ensures that the canon of French thought is fed to the whole
country. All pupils taking the school-leaving baccalauréat exam must study
philosophy, and teenagers are examined on such cheery essay questions as “Is
man condemned to self-delusion?” or “Do we have an obligation to seek truth?”.
So if French intellectuals are predominantly critical pessimists, miserabilism
may in part be the consequence of holding them in such esteem. Were Americans to
pay more attention to the writings of Noam Chomsky and Jared Diamond, perhaps
they would be gloomy too.
This critical reflex reaches right into the classroom,
generating a further source of negativity. In French schools, for example, the
tradition is for teachers to grade harshly, and praise with excessive
moderation. Under a nationwide system that awards marks out of 20, a pupil doing a dictée
has points (or even half-points) deducted for every error; so a child swiftly
ends up with zero. The idea is that all children can always do better. The
result is a lack of what the French, borrowing English syntax, call “la
positive attitude”.
Fully 75% of French pupils worry that they will get bad
grades in maths tests, according to an OECD study, nudging stressed-out South
Korean levels (78%). A recent government-commissioned report on a small pilot
experiment in some French secondary schools, where Cartesian grading had been
shelved in favour of a more encouraging system, noted with some surprise that
weaker pupils were absent from school less often, more confident in the
classroom, and “less stressed when faced with failure”.
If the French are life’s critics, they are at the same time
idealists, and these two make unhappy bedfellows. Thanks to the philosophers of
the Enlightenment and the 1789 revolution, the concept of progress towards an
ideal society has, despite periodic turmoil and bloodshed, been a powerful
narrative in the French mind. The best embodiment of this is the French
declaration of human rights. Unlike the American declaration of independence in
1776, which guaranteed the rights of all Americans, the French version 13 years
later guaranteed the rights of all mankind.
To this day, the ambition to inspire the world with a
secular republican ideal, backed by the spread of French culture and language,
stirs political leaders. “France is only itself when in pursuit of an ideal,”
wrote Dominique de Villepin, a former prime minister, in a deliberate echo of
Charles de Gaulle’s reference to the country’s “exceptional destiny”. It is
great stuff for myth-making, as De Gaulle demonstrated so masterfully after
liberation from Nazi occupation. But when reality does not quite match up to
ideals, self-criticism kicks in and misery results.
Left-wing French intellectuals never quite got over the
failed revolutionary promise of the May ’68 student uprising, nor their
disillusion at the declining influence of French thought from the 1980s
onwards. Others struggled to reconcile French values with the country’s darker
moments, notably under occupation. Today, “belief in a better tomorrow has come
to an end,” says Christophe Prochasson, a French historian. “There is a crisis
of progress.”
Put simply, the French know that they have enjoyed a
fabulous way of life, and are depressed by the thought that neither the French
model, nor Europe, seems able to provide the prosperity or the national
grandeur it once did. The upshot is that “we are collectively animated by a
sense of doom and decline,” says Dominique Moïsi, of the French Institute of
International Relations. “We have in mind this great nation of ours: the major
power in Europe under Louis XIV and Napoleon I, the biggest allied standing army
in the first world war. Now there’s a sense of ‘What happened to us?’.”
The pleasure of pouting
France is not alone in contemplating its diminished status.
Britain had a grand past too. But the post-colonial, post-industrial British do
not share the French sense of national depression, partly because they never
considered their empire to be part of an effort to export a culture or a model
society. And, having accidentally given the world the English language, Britain
feels relaxed about its global cultural influence. The contrasting decline of
French, once the language of European diplomacy, high culture and polite
conversation, is felt as a national wound.
Idealistic France’s painful reckoning with decline is
therefore quite different to the British approach of resigned muddling-through,
argues Jean-Philippe Mathy, of the University of Illinois, in “Melancholy
Politics”. It is almost, says Mr Prochasson, the historian, a form of
bereavement. “There is a very profound pessimism today due to the realisation
that France is becoming a country like any other, and this is difficult.”
Does it matter? Certainly, France’s high suicide rate is a
serious cause for concern. Dissatisfaction also makes the French a particularly
fractious people to govern, ready as they are to contest, and protest, at the
slightest excuse. Confidence too is elusive in a country given to pessimism,
making it harder still for politicians to persuade the French to try new ways
of doing things.
Yet pessimism has not stopped France from enjoying itself.
French hedonism has survived miserabilism—or perhaps provided a refuge from it.
Even in the immediate aftermath of the 1789 revolution, the country exhibited a
“thirst for pleasure”, as one contemporary newspaper report put it: “The stream
of fashion, a succession of dinners, the luxury of their splendid furniture and
their mistresses, are the objects that chiefly employ the thoughts of the young
men of Paris.” With firework displays, extravagant fashion, circuses and
carousels, Paris at the time, for the rich at least, was all about enjoyment.
During les années folles, upper-class American tourists took the steamer to
Normandy and then the railway to Paris, drawn to France, writes Harvey
Levenstein, a historian, as “a land that was free from American puritanism,
where the pursuit of pleasure reigned supreme”.
Nor has miserabilism discouraged the French preoccupation
with beauty and taste. France does not wear its gloom like a dreary accessory.
On the contrary, its culture delights in elegance, sensuality, quality and
form: the exquisite hand-stitching on the haute-couture dress; the immaculately
glazed tartes aux framboises lined up in the pâtisserie window. The aesthetics
of daily life, the art de vivre, remains a source of both grand gestures and
small stolen pleasures. It is no coincidence that the two biggest luxury-goods
groups in the world are French.
Modern French culture may not have supplied great writers to
rival Hugo or Molière, and Paris may lack the buzz of New York or London. But
it is hard to argue that negativity has stifled French creativity. Would France
have brought the world existentialism had Sartre been a cheerful fellow?
The critical impulse has promoted cultural innovation. Both cinema’s
New Wave and French literary theory were born of critical reconstruction of
what came before. Some of France’s most creative periods have followed bleak
times: the flowering of painting, literature and science after its defeat in
the Franco-Prussian war, or of the avant-garde in art and fashion after the
horrors of the first world war. Christian Lacroix, a French designer, points
out that war and revolution in France have been times of “creative
reinventions, the moment new forms of luxury come into play”.
Perhaps the French need dissatisfaction and thrive on doubt.
“There is a certain pleasure taken in being unhappy: it’s part of an
intellectualism of French culture,” says Ms Senik. “Malaise and ennui are to
France what can-do is to America: a badge of honour,” wrote Roger Cohen in the
New York Times recently. Pessimism does not preclude pleasure. All that sitting
around at pavement cafés, looking fashionably discontented, can be fun.
Optimism is for fools; sophisticates know better. Bleak is chic—especially when
opening another bottle of Saint-Emilion and reaching for the three-tier cheese
trolley.
domingo, 22 de dezembro de 2013
A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril
"O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi
desde o primeiro momento presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o
meu pai, ao contrário dos irmãos Espírito Santo, apresentava-se como
industrial. Mas houve sempre um grande entrosamento entre eles"
Pedro Queiroz Pereira
"Saiba Vossa Exa. que empreendimentos desta grandeza [Sacor]
não se fazem com meninos de coro"
António Oliveira Salazar
"O meu pai acreditava na minha capacidade de empreender e de
desenvolver e financiou-me um negócio de café que comecei com 20 mil pés e que
chegou aos anos 90 com mais de três milhões"
PQP
"O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei
infinitamente…"
PQP
2000 milhões de euros foi o volume de negócios da Semapa em
2012 (1,5 mil milhões de pasta e papel). O Grupo Queiroz Pereira tornou-se
líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado
377 milhões de euros foi a quantia que o Grupo Queiroz
Pereira encaixou no final de 2005 com a venda da Enersis ao fundo australiano
Babcock&Brown, que acabou por colapsar com a crise de 2008
"O problema não é os ricos terem muito dinheiro, o problema
está na utilização que dão aos recursos ao seu alcance. Uns usam o dinheiro
para produzir mais desenvolvimento, mais postos de trabalho e arriscam; outros
dizem: já tenho o meu, quero lá saber."
Manuel Queiroz Pereira
"Não tem que ver com os automóveis, é da minha natureza, da
capacidade de formar equipas, de ter sócios, da vontade de empreender. Nunca
pus em risco os activos do grupo, o que seria extremamente arriscado era não
ter feito nada"
PQP
A história do maior conflito na cúpula do capitalismo
português do pós-25 de Abril
CRISTINA FERREIRA in Público
As batalhas entre accionistas são o terror de qualquer
grupo empresarial e as mais mortíferas são as que ocorrem entre irmãos de
sangue. E esta foi uma guerra típica familiar. Uma guerra entre “tios”, irmãos
e primos Queiroz Pereira. Uma guerra sem diabos nem santos. Uma guerra de
interesses e onde o combustível, como quase sempre, foi o dinheiro. Mas os
conflitos à volta do Grupo Queiroz Pereira têm vários anos e reflectem um outro
dado: a ascensão e a perda de influência do Grupo Espírito Santo. Um núcleo
importante do poder económico privado com posições em grandes empresas e que a
dada altura acreditou (diz-se) que poderia controlar a Semapa, hoje o maior
grupo industrial português.
Quando os problemas financeiros, as polémicas — algumas
associadas a investigações policiais — e as lutas pelo poder dentro do Grupo
Espírito Santo se tornaram evidentes, Ricardo Salgado deixou de ter condições
para se manter no Grupo Queiroz Pereira (dono da Semapa, que agrupa a Secil,
Portucel, Soporcel e Inapa). E assinou um pacto de separação de águas com Pedro
Queiroz Pereira (PQP), pondo fim a uma parceria empresarial de oito décadas.
Ricardo Salgado, em processo de sucessão, já não se podia dar ao luxo de ter um
corpo estranho (o próprio PQP) na cúpula do Grupo Espírito Santo, com 7% do
capital (e ainda muita informação, poder arbitral e capacidade de influenciar).
A Revista 2 revela agora os detalhes dos bastidores desta disputa que se travou
entre os dois grupos — uma história cheia de incidentes e omissões.
Há 12 anos, Pedro Queiroz Pereira, presidente do Grupo
Queiroz Pereira (GQP), interrogou Ricardo Salgado sobre quem eram os
verdadeiros donos da Mediterranean (uma sociedade luxemburguesa que agregou
três offshores, com presença forte na Semapa) e que o BES representava. O
industrial conta que sempre ouviu a explicação: “Pertencem a investidores que
não querem ser conhecidos, são discretos.” Não ficou elucidado.
Dez anos mais tarde, a resposta de Salgado continuava a
mesma. E dois dias depois de PQP ter recusado nomear um delegado da
Mediterranean para os órgãos de gestão das holdings familiares, por desconhecer
a sua verdadeira titularidade, o BES assumiu, finalmente, o controlo. Foi a
gota de água que fez transparecer a discórdia. Se a acção de Salgado foi
táctica ou outra coisa, não se sabe.
Mas na Semapa (com actividade nas áreas do cimento, do papel
e pasta de papel e do ambiente, e a jóia da coroa do Grupo Queiroz Pereira)
estas movimentações accionistas são conhecidas como “o assalto à diligência”.
PQP foi, nos últimos dois anos, o general das tropas anti-“investida” de
Salgado, com um lugar-tenente, Fernando Ulrich (à frente do BPI, que detém 10%
da Semapa e que assessorou PQP) e um oficial, José Maria Ricciardi (presidente
do BES Investimento, BESI, e opositor assumido de Salgado na família Espírito
Santo).
Queiroz Pereira acusa Salgado de o ter “iludido” para
prosseguir um plano paciente e sistemático para dominar a Semapa, que
reconstruiu após a morte do seu pai, Manuel, fundador do Grupo Queiroz Pereira
em 1940.
Já os círculos próximos de Salgado garantem que o banqueiro
nunca quis mandar na Semapa e procurou ainda, por razões de afinidade
histórica, proteger as irmãs Margarida Queiroz Pereira Simões e Maude Queiroz
Pereira Lagos. Estas, por sua vez, não vendo os seus interesses particulares
salvaguardados, recorreram a Salgado, em períodos distintos do tempo, para se
defenderem do irmão.
Há acções judiciais a correr entre todos, mas sem acusações
de ilícitos ou de roubos. Os detractores de PQP não lhe contestam o mérito, mas
o caminho que escolheu para dominar: não ouviu ninguém, atropelou quem quis. O
industrial discorda: nunca adquiriu para si uma única acção do grupo que
herdou. E insiste no argumento central: “O meu pai deixou aos filhos uma
empresa, que eu multipliquei infinitamente…” O Grupo Queiroz Pereira tornou-se
líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado. Em 2012,
o volume de negócios da Semapa foi de cerca de dois mil milhões de euros (1,5
mil milhões de pasta e papel).
A Revista 2 ouviu os círculos próximos dos intervenientes e
personalidades independentes. Apenas PQP, antes de os acordos com o BES e a
família terem sido firmados nas últimas semanas, aceitou comentar aspectos
históricos do grupo. Já os restantes actores (BES, Maude Lagos e os primos
Carrelhas, accionistas minoritários), por intermédio dos seus advogados e
assessores, declinaram abordar o conflito que minou uma relação que remonta às
primeiras décadas do século passado.
Da fundação à revolução
1937. Datam daí os primeiros contactos entre os grupos
Queiroz Pereira e Espírito Santo. Manuel Queiroz Pereira, filho de Carlos
Pereira, accionista do Banco Comercial de Lisboa, cruzou-se com Ricardo
Espírito Santo Silva (avô de Salgado e de José Maria Ricciardi), herdeiro do
proprietário da Casa Bancária Espírito Santo. As duas instituições funcionavam
paredes meias na Rua do Comércio e decidiram avançar para a fusão. “O Banco
Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi desde o primeiro momento
presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o meu pai, ao contrário dos
irmãos Espírito Santo, apresentava-se como industrial. Mas houve sempre um
grande entrosamento entre eles”, sublinha, 73 anos depois, PQP. Era, portanto,
o começo de uma bela amizade… mas com percalços.
Ora, o primeiro desentendimento entre as duas famílias
deu-se, na década de 1930, quando Oliveira Salazar decidiu, por decreto, criar
uma indústria nacional de refinação e se concertou com Ricardo Espírito Santo
numa “parceria-público ou privada”: a Sacor, de capitais públicos e onde o
BESCL tinha uma posição, destinava-se a assegurar 100% da refinação e 50% da
distribuição de crude. Assim que a Sacor estivesse a funcionar, a capacidade de
distribuição da Sonap ia reduzir-se de 40% para 25%. Como a Sonap era detida
por Manuel Queiroz Pereira (em conjunto com Manuel Boullosa), o industrial foi
surpreendido e não gostou de ver o banqueiro desalinhar dos seus interesses
particulares, pois era accionista do BESCL, para além de administrador.
Formado em Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa, com
17 valores, Ricardo Espírito Santo era mais do que banqueiro. Era polifacetado,
mecenas, amante de Amália, era ainda um homem de poder e de grande influência
política — visitava Salazar todos os domingos à tarde. “Era brilhante, uma
figura proeminente que marcou uma época”, enquanto “o meu pai, embora
muitíssimo respeitado, era discreto”, considera PQP.
1937. 17 de Maio. Sain o quê? A Manuel Queiroz Pereira, o
nome Martin Sain nada dizia, mas a dupla Salazar e Ricardo Espírito Santo vão
envolver na construção da Sacor este romeno, refugiado em Paris. Nesse ano, o
Estado concedeu alvará à Redeventza, de Martin Sain, para construir em Cabo
Ruivo uma unidade de refinação e de distribuição de petróleo.
1939. 1 de Setembro, início da Segunda Guerra Mundial.
Visitar São Bento era um direito reservado a um núcleo restrito. O pai de PQP
foi ter com Salazar: “O custo da refinaria [Sacor] está a ser pesado e a deixar
‘comissões’ em todo o lado, Martin Sain não é pessoa fiável.” De onde vinha o
poder de Sain? Com olhar malicioso, o ditador respondeu: “Saiba Vossa Exa. que
empreendimentos desta grandeza [Sacor] não se fazem com meninos de coro.”
1960. Os dois sócios da Sonap, Manuel Queiroz Pereira e
Boullosa, estão numa encruzilhada porque defendem estratégias diferentes para a
empresa e decidem separar-se. O que, na prática, se traduziu numa grande zanga.
Amigo de Manuel Queiroz Pereira, o novo presidente do BESCL, Manuel Espírito
Santo Silva, aceitou financiar-lhe a compra da posição de Boullosa, pois estava
convencido de que este aceitaria vender a sua parte. Mas com o industrial dos
petróleos não se brincava, era mais esperto do que imaginavam. Boullosa
meteu-se num avião e foi ao estrangeiro levantar os fundos que lhe faltavam.
Acabou por ser Manuel Queiroz Pereira a deixar a Sonap. O volte-face deu sururu
na época.
José Roquette, ex-banqueiro do BES e hoje empresário da
Herdade do Esporão, tinha na altura 23 anos e acabara de chegar ao BESCL para
assessorar tecnicamente o presidente. E ainda se lembra “que era suposto que
fosse o sr. Queiroz Pereira a ficar com as acções, pois tinha mais património
[do que Boullosa] e o BESCL era o grande banco. Era alguém de peso na
administração, muito activo”.
Com a acumulação de capital resultante do negócio da Sonap,
o relacionamento entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo vai
aprofundar-se. A partir daí, o industrial começou a diversificar os negócios
sectorial e geograficamente e investiu não só em África, como no Brasil, o que
era invulgar na época, mas ajudará o grupo a resistir fora de Portugal após a
revolução.
1970. No poder, Marcelo Caetano procurava vias para
liberalizar a economia. “Como havia uma clara intenção de forçar o aparecimento
de um concorrente no sector dos cimentos dominado por Champalimaud [dono da
Siderurgia Nacional], o Rogério Martins [secretário de Estado da Indústria de
Caetano] ficou satisfeitíssimo quando o Queiroz Pereira, com capacidade
financeira, requereu a instalação de duas novas unidades”, evoca agora Torres
Campos, à época director-geral da Indústria. “Ele [Rogério Martins] queria usar
a concorrência para contornar o condicionamento industrial, aprovou com o
argumento de que ia quebrar o monopólio do Champalimaud.” E foi assim que a
família Queiroz Pereira se envolveu na área dos cimentos, que perdeu com a
revolução. Vinte anos depois, PQP voltaria aos sectores da celulose e do
cimento, onde a família já tinha estado, ganhando um pouco dos dois.
1971. “Pêquêpê” era amante de ralis e o curso no Instituto
Superior de Contabilidade e Gestão estava a ficar para trás. Tinha 23 anos
quando foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola, onde se
encontrava no 25 de Abril. Pertencia à elite burguesa da época, que circulava
entre Lisboa e Cascais. “A casa dos Queiroz Pereira era a melhor do Restelo
[vendida à Embaixada do Brasil depois da revolução], sem comparação com nenhuma
das outras e eram todas boas”, recorda um ex-vizinho, hoje no mundo dos
negócios, que ainda se lembra de que “os filhos Queiroz Pereira tinham ‘bombas’
em casa que nunca estacionavam na rua como acontecia com as restantes famílias
ricas”. E acrescentou: “‘Pêquêpê’ era o segundo filho, um enfant terrible, mas
encantador com os amigos, a quem, ainda hoje, gosta de proporcionar boas
coisas.” Onde uns viam um enfant terrible, outros olhavam para um miúdo
determinado. Conta Pedro Roriz, ex-jornalista da área automobilística, que o
conheceu no Colégio Militar, com 12 anos, “quando já era um desportista, um
excelente jogador de futebol”: “Apesar de ter um estatuto que lhe permitiu
começar num plano elevado, agarrou no grupo do pai e tornou-o no maior grupo
industrial que para mim é o importante. Não vendeu, não fechou, expandiu. Que
importância tem ter sido aventureiro se ao chegar a hora da verdade se
superou?”
1973. No final deste ano, se em África o conflito se
agudizava, em Portugal verificava-se uma grande aceleração monopolista. Na
revista Análise Social, o académico Américo Ramos dos Santos refere no artigo
“Desenvolvimento Monopolista em Portugal” que, entre 1968 e 1973, o núcleo do
poder económico era formado por 14 famílias, onde pontuavam os nomes Espírito
Santo, Mendes de Almeida, Queiroz Pereira. Um espaço de cruzamentos. Em 1972,
PQP casou-se “para a vida” com Maria Rita Mendes de Almeida, de quem tem três
filhas [Filipa, Mafalda, Lua].
Nesse ano, em retaliação ao apoio norte-americano a Israel,
os Países Exportadores de Petróleo aumentaram em 300% o preço do petróleo. As
bombas de gasolina, em Portugal, encerravam ao fim-de-semana. Um dos capitães
de Abril, Sousa e Castro [13/3/2000], contou ao PÚBLICO: “Nas vésperas do 25 de
Abril, assisti, no supermercado militar, a uma bulha entre clientes para ver
quem chegava primeiro às prateleiras.” “Um factor que ajudou a acelerar a
Revolução”, explicou.
Relançamento do grupo
1974. 24 de Abril. O que em Janeiro valia uma nota de 100
escudos custava agora 133. Na madrugada de 25, na Escola Prática de Cavalaria
de Santarém, os relatos contam que o capitão de Abril Salgueiro Maia discursou:
“Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados
sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene,
vamos acabar com o estado a que chegámos! […] Quem não quiser sair fica aqui.”
O batalhão marchou para a capital. Manuel Queiroz Pereira assistiu em casa, em
Lisboa, à rendição de Caetano no Largo do Carmo. Manuel Alfredo de Mello, filho
de Jorge de Mello do Grupo CUF, estava, então, na dupla condição de militar e
filho de industrial [PÚBLICO 13/3/2000]: “Pensou-se que a mudança se reflectiria
sobretudo nas saídas de Américo Thomaz e de Caetano. E as declarações de
Spínola indicavam que a descolonização ocorreria progressivamente, não se
prevendo para a economia grandes rupturas.” Puro engano.
22 de Agosto. Eis um papel que o povo não imaginaria um ano
antes: os ricos sofriam. Excluídos do coração do novo poder, os homens do
Estado Novo procuraram refúgio na Confederação da Indústria Portuguesa para se
reorganizarem como força viva. Só que a revolução andava a passo de galope e,
por esses dias, o Copcon foi ao Ritz buscar Manuel Queiroz Pereira, detendo-o
na Polícia Judiciária, até ao dia seguinte. Foi libertado por indicação de
Spínola, de quem era amigo. Pouco depois, partiu para Paris, onde se manteve
até 1982, entregando ao sucessor natural, o filho mais velho, Manuel, a condução
dos negócios em Portugal.
Em Outubro, PQP continuava destacado em Angola, quando
chegou a Luanda Rosa Coutinho, conhecido por “almirante vermelho”, dada a
proximidade ideológica ao PCP. “A ordem era desarmar e nós fazíamos buscas nos
musseques com o objectivo de desarmar os pequenos comerciantes portugueses
brancos”, evoca agora PQP.
1975. 14 Março. Depois de as chefias e de os gestores dos
grupos Mello e Espírito Santo terem sido detidos, a revolução obrigava: foram
decretadas as nacionalizações, abrangendo o Grupo Queiroz Pereira. Na imprensa,
na televisão e na rádio, circulavam notícias de sabotagem económica, de fuga de
capitais para o estrangeiro. PQP que, entretanto, voltara para Lisboa, estava
na sede da Cimianto (hoje Semapa), na Avenida Fontes Pereira de Melo, quando
chegou a 5.ª Divisão das Forças Armadas. “Levaram-me a minha casa com ordem do
Otelo [Saraiva de Carvalho] para abrir o portão, à frente do qual tinham
estacionado três viaturas para impedir a saída dos tanques que diziam estar lá
escondidos”, revive PQP, quase 40 anos depois.
O jovem movimentava-se em terreno inimigo e percebeu o
sentido da metáfora: “As pernas tremem como varas verdes.” Foi o que sentiu ao
subir a rampa do jardim, seguido por um cabo que lhe tocava na espinha com o
cano de uma metralhadora Uzi: “Nem me digas que o teu pai não roubou tudo isto
ao povo, senão é que descarrego mesmo.” Durante três horas, insistiram que “eu
estava a esconder as armas para fazer a contra-revolução”. Quando entraram na
garagem, “viram uns pneus próprios de ralis, parecidos com os usados pela Jeep,
e perguntaram-me: ‘Onde estão os ‘Jeeps’ da contra-revolução?’” Explicou-lhes:
“Eu e o meu irmão participamos em ralis. E identifiquei-me como o ‘Pêquêpê’. O
clima aliviou. Os cabos viraram ‘uns tipos porreiros, epá Pêquêpê...’ e já não
revistaram mais nada.”
O Brasil adivinhava-se o passo seguinte. “O meu pai
acreditava na minha capacidade de empreender e de desenvolver e financiou-me um
negócio de café que comecei com 20 mil pés e que chegou aos anos 90 com mais de
três milhões.”
Final de 1975. No estrangeiro, a cúpula do GES tentava
reagrupar-se. Manuel Ricardo vai procurar o sogro, Fernando Moniz Galvão, e o
velho aliado Manuel Queiroz Pereira. “Depois do 11 de Março, o sr. MQP já
estava fora e tinha as bases financeiras de suporte para se manter no
estrangeiro, mas também para garantir ao GES, entre 1975 e 1984, resistir fora
de Portugal e manter-se numa posição que lhe permitiu regressar mais tarde”,
sublinha José Roquette.
1976. Manuel Ricardo Espírito Santo perguntou ao industrial
com que percentagem pretendia ficar no capital da ES Control, a “mãe” de todas
as holdings do Grupo Espírito Santo. O industrial respondeu: “Por mim, não
quero nada. Se vos der jeito, posso ficar com o que entenderem.” E ficou nessa
altura com 10,7% da holding, uma posição que vai estar, 37 anos depois, no
epicentro das batalhas entre os dois grupos familiares.
Entretanto, fruto das nacionalizações, o Estado assumira
cerca de 40% da Sodim (dona do Ritz) e, quando os privados recompraram as
acções, Manuel Ricardo Espírito Santo procurou o industrial: “Nós ficámos com a
maioria dos activos financeiros que nos ajudou a recuperar, mas o controlo da
Sodim deve ficar consigo.”
Já se sabe que Manuel Queiroz Pereira era um homem do Estado
Novo. Um dia, um amigo do filho mais velho encontrou-o em Paris e ouviu o
desabafo: “Não vale a pena investir em Portugal, aquilo não tem futuro.” Só que
o exílio não era forçosamente o paraíso e o industrial nunca cortou o cordão
umbilical com Portugal. Já falava no regresso, continuava a ser um capitalista
produtivo.
Cada visita de Manuel Queiroz Pereira a Portugal era sentida
como um calvário. Um dia disse a Frederico da Cunha, casado como uma Espírito
Santo, hoje a trabalhar na Semapa: “‘Venho cá por obrigação, mas não gosto de
cá estar, isto atormenta-me. Não gosto de pensar que existem pessoas
inteligentes a colaborar com tudo isto.’ Era de uma enorme lealdade aos seus
princípios e severo com o incumprimento da ética.” Pertencia a uma geração de
valores muito fixos e, por exemplo, morreu sem perdoar a António Spínola o ter
assumido o marechalato após o 25 de Abril.
1983. Manuel Queiroz Pereira morreu com 77 anos e deixa os
quatro filhos surpreendidos com os activos que herdam, nomeadamente em cash.
Entre os irmãos Manuel e Pedro Queiroz Pereira, havia uma rivalidade expressa
nas corridas de automóveis: “Mêquêpê” era mais veloz do que “Pêquepê”, e mais
charmoso do que o mais novo. E era no mais velho que o pai via o garante da
perenidade do grupo. Quando morreu, a mãe, Maud (sem e), na altura com 61 anos,
entregou-lhe os destinos das empresas. Mas os dois irmãos combinaram repartir
entre si responsabilidades. Manuel (com 36 anos) sugeriu a Pedro (com 34 anos)
que gerisse os activos industriais (Cimianto, que tinha sido em parte
nacionalizada depois do 25 de Abril), enquanto ele se manteria à frente da
Sodim (Ritz e negócios imobiliários). O mais novo aceitou.
Naquela discussão, as mulheres estiveram fora da equação.
Tal como noutros grupos familiares (Mello ou Espírito Santo), o industrial
também não programara as duas filhas Maude e Margarida para serem líderes — o
que pode lançar alguma luz sobre as tensões que mais tarde se vieram a
verificar entre irmãos. Um colaborador do pai recorda uma frase que terá
ouvido: “Dizia que não gostava de ver a Maudezinha e a Margarida, que eram
novas e vistosas, aparecerem na empresa de mini-saia, porque desorientavam o
pessoal.”
As irmãs não ficaram quietas. Depois de um braço-de-ferro,
travado na década seguinte, Margarida vendeu as suas acções na Semapa e foi
lançar empresas. A mais velha, hoje com 63 anos, continuou ao lado de Pedro. Ao
Expresso [12
2013], Joana Lemos, a sua assessora de imprensa, também ela
ligada aos desportos motorizados, esclareceu recentemente, já depois de os dois
irmãos terem firmado o acordo: “Maude trabalhou ao lado do irmão, patrocinou a
sua gestão e contribuiu para a construção do grupo tal como existe hoje.” Em
Londres, onde vive actualmente a herdeira, entretanto separada do empresário
João Lagos, mais do que “mágoa”, os amigos asseguram que o sentimento é de
“injustiça”.
1992. Tal como no Grupo Queiroz Pereira, com a morte do
patriarca, também no Grupo Espírito Santo, com a morte de Manuel Ricardo
Espírito Santo, se abriu um novo ciclo. A família elegeu Ricardo Espírito Santo
Salgado, que será o artífice de uma estratégia sustentada numa rede empresarial
complexa. A partir de holdings sediadas na Suíça e no Luxemburgo, as operações
do grupo invadem zonas nevrálgicas da economia.
Fontes próximas do presidente da Semapa — o activo mais
relevante do Grupo Queiroz Pereira — recordam que nos anos 1990, e apesar da
presença do GQP no GES, “quando o Ricardo Salgado formou a primeira
administração do BES não convidou Pedro Queiroz Pereira, optando por ir buscar
outros empresários”. O que foi lido nos círculos próximos do presidente da
Semapa como uma desconsideração não esquecida.
Construir um grupo industrial estava a tornar-se uma fixação
para PQP, na altura com 43 anos. E quando, em 1993, foi constituída a Semapa,
já tinha em vista participar na privatização da Secil. “Ele [PQP] chegou do
Brasil com ganas de reconstruir o grupo, muito na imagem do pai, a quem citava
como seu inspirador”, observa José Manuel Galvão Teles, o advogado que o apoiou
nesse período. Quando o Governo anunciou a venda da Secil, não hesitou. Numa
primeira fase, o irmão Manuel, mais reservado, levantou questões, mas acabou
por aceitar. E se os irmãos Pedro e Maude queriam dar um passo em frente, a
mais nova, Margarida, não se convencia [Expresso 1995].
1993. O Grupo Queiroz Pereira está prestes a sofrer o seu
segundo rombo que levou a nova mudança de liderança. Um dia, durante uma
reunião de trabalho para preparar as obras de reformulação do Ritz, Manuel, a
quem tinha sido diagnosticada uma leucemia e que estava a ser acompanhado num
hospital em Paris, recebeu um telefonema a informá-lo de que PQP era compatível
para o transplante e que devia partir imediatamente. Mas não vai resistir à
intervenção, e a 4 de Março morreu na capital francesa.
A mãe Maud voltava a estar perante o dilema: a quem entregar
a chefia do grupo cujo controlo o marido quis deixar aos filhos, seus
continuadores? A uma equipa profissional (family office)? Mas como PQP mostrava
empenho, Maude aconselhou a mãe a confiar a gestão ao irmão, o que a deixa hoje
com amargos de boca. A irmã Margarida debatia-se com o problema: tem 20% das
holdings do grupo — Cimipar, Cimigest e Sodim — mas não tinha comprador. Só os
irmãos podiam estar interessados. A família pediu-lhe paciência. Ela deu-lhes
15 dias. Margarida tinha então 40 anos e pressa. O advogado Carlos Adrião
Rodrigues surgiu, pouco depois, com acções das holdings em seu nome, a convocar
assembleias gerais e a gerar burburinho. Quando lhe perguntavam por que não
vendia, resistia: “Estou muito interessado nos cimentos.” Anos depois,
Margarida informou os irmãos de que tinha recomprado a posição a Adrião
Rodrigues.
1994. Com a privatização da Secil a rolar no mercado, o
industrial procurou Eduardo Catroga, ministro das Finanças. E apresentou-se com
o carimbo de garantia de idoneidade, acompanhado de dois colaboradores da
Semapa, Frederico da Cunha e Alberto Falcão, ex-colegas de Catroga no grupo
Mello. O ex-ministro relata à Revista 2 o que ouviu: “[PQP] Veio assegurar-me
que estava a fazer todos os esforços para conseguir uma engenharia financeira
que lhe permitisse disputar a Secil.” Catroga respondeu: “Vejo com bons olhos,
pois a lei das privatizações define que o processo deve contribuir para fortalecer
os grupos portugueses.”
A meio do negócio, a irmã Margarida apareceu a levantar
obstáculos, conforme divulgou então o semanário Expresso. Catroga lembra-se:
“Pedro pediu para voltar a falar comigo para garantir que, apesar do conflito
com a irmã, tinha a engenharia financeira praticamente montada e que não seria
isso que o impediria de adquirir a Secil.”
19 de Abril. Com a privatização concluída, PQP está em
condições de arrancar com a primeira vaga de desenvolvimento do grupo pós-25 de
Abril. Venderá, pouco depois, 49% da Secil à CRH (grupo irlandês de materiais
para construção) para se capitalizar. Mais tarde, vai querer recomprar as
acções, e entrou numa bulha com os irlandeses. Em 2011, para recuperar o
domínio da Secil, por sentença de um tribunal arbitral, PQP teve de pagar 574
milhões de euros à CRH.
O primeiro stress entre Pedro Queiroz Pereira e Ricardo
Salgado remonta a meados da década de 1990. Uma das cláusulas do sindicato
bancário (grupo de 11 bancos que financiaram PQP na compra da Secil, liderado
pela Caixa Geral de Depósitos e pelo BES) impedia os accionistas da Semapa, com
acções hipotecadas aos bancos credores, de as venderem até o empréstimo ser
liquidado.
O BES tinha uma posição no grupo. “Três meses depois do
acordo, Ricardo Salgado mandou transferir as acções para os fundos de
investimento geridos pelo banco e que pertencem aos clientes”, conta PQP. “O
sindicato bancário podia ter-nos exigido o pagamento integral do empréstimo,
uma vez que tinha sido violada uma cláusula do contrato”, acrescenta. O que
disse Salgado? “Que se tratava de um movimento sem importância, pois preferia
ter a posição da Semapa em fundos de investimento geridos pelo BES.” Ou seja: o
banco não aplicava fundos directamente e mantinha poder de decisão.
2000. Este foi um ano em que todos gostavam de ter Ricardo
Salgado como amigo. Com os canais de liquidez oleados, o BES estava a
beneficiar de uma época de prosperidade e tornava-se um núcleo importante do
poder económico privado, com influência na sociedade e no Estado. As forças
políticas PS, PSD, PP sempre conviveram bem com o BES, aí recrutando
governantes (três exemplos: os ex-ministros da Economia Manuel Pinho e António
Mexia, e o social-democrata Miguel Frasquilho). Em 2012, ao PÚBLICO, depois de
ter apoiado em simultâneo Sócrates e Passos Coelho, o banqueiro justificou-se:
“O BES relaciona-se com todos os partidos e limita-se a ter um relacionamento
institucional com os governos.”
Assistiu-se nesta fase à construção de posições do banco em
grandes empresas como a PT e a EDP (acções que agora tem estado a alienar).
Tudo isto a par e passo com os negócios em Angola, em áreas estatais, via Escom
(uma holding instrumental do GES, que há dois anos está em processo de venda ao
Estado angolano). Data também desse período a conexão do BES aos donos da
Ongoing — Nuno Vasconcellos e Rafael Mora —, instrumentos de uma estratégia de
poder.
Os jornais falavam, então, em mexidas nos bastidores para
entregar à Teixeira Duarte (TD), que já possuía 18%, o controlo da Cimpor. Mas
PQP não andava distraído e surpreendeu ao aliar-se à suíça Holcim para lançar
uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a cimenteira portuguesa. No dia da
OPA, informou o BES de que seria o espanhol Banco Santander o líder do
sindicato bancário, mas que salvaguardara para o BES a posição de co-líder. E
justificou-se dizendo que os bancos portugueses não tinham balanço para o
financiar. No BES, o acto de “independência” de PQP foi lido como traição.
Quase seis décadas depois da aliança entre Salazar e Ricardo
Espírito Santo, na Sacor, PQP viu a cena repetir-se. O poder isolava-o. Havia
sinais de movimentações partindo do ministro das Finanças Joaquim Pina Moura
para que Ricardo Salgado encabeçasse a resistência à OPA de PQP sobre a Cimpor.
Verdade ou imaginação? O BES surgiu, pouco depois, a apoiar a francesa Lafarge
na compra de 17% da cimenteira nacional, o que contribuiu para a OPA ser travada.
2001, 31 de Dezembro. Foi num quadro de consolidação da
influência do Grupo Espírito Santo na economia portuguesa que se vão dar, daqui
em diante, várias transacções à volta do Grupo Queiroz Pereira. Nesse ano, o
BES elevou o capital em 500 milhões de euros, com as acções a negociarem-se a
14 euros cada. A herdeira mais nova de Manuel Queiroz Pereira não tinha,
evidentemente, digerido o conflito com os irmãos. No restrito mercado da banca
de investimento, falava-se à boca pequena que, por troca das acções das
holdings do Grupo Queiroz Pereira, a irmã mais nova, Margarida, assumira cerca
de 2% do BES. No meio, havia crédito da instituição. Uma operação de 30
milhões. Por enquanto, ainda nada se saberá.
2002. Suspeitas fundadas. Por carta, Margarida comunicou aos
irmãos que vendera as suas acções, sem revelar a identidade do comprador. Daí a
alguns dias, o BES surgiu, em nome de terceiros, a representar a Gaunlet, a
Allord e a Relcove, que tinham adquirido as posições da herdeira mais nova.
Uma das rotinas dos parceiros empresariais são as reuniões
periódicas. Numa delas, logo a seguir, PQP questionou Salgado sobre o
verdadeiro interesse das três offshores na Semapa, ao que foi esclarecido:
“Disse que não estavam nem vendedoras, nem compradoras, nem tão-pouco queriam
tomar posição estratégica no nosso grupo.”
2004. Agora, era a Portucel/Soporcel que aparecia na mira da
Semapa. Pela frente, na privatização de 30% da empresa, PQP tinha Belmiro de
Azevedo, com 29%. Sabendo do passado do engenheiro em matéria de confrontos, o
industrial quer evitar desentendimentos. “O eng. Belmiro de Azevedo disse-me
que não ia à operação e eu pedi-lhe se ele me vendia as acções, o que acabou
por fazer”, conta agora PQP. A compra de 60% da Portucel dará origem ao segundo
salto de crescimento da Semapa após o 25 de Abril.
2005. Bancos, seguradoras, fundos de investimento giravam,
agora, em roda livre. Para o ex-governador do Banco de Portugal Jacinto Nunes,
“o sistema financeiro, em especial o anglo-saxónico, entrou numa coboiada que
permitiu o endividamento que deu a bolha que estourou em 2008” . Foi precisamente a um
fundo australiano artificialmente capitalizado, o Babcock & Brown, que,
antes de o ano terminar, PQP vendeu a Enersis, uma start-up criada em 1998
dentro da Secil. Um negócio que lhe rendeu uma mais-valia de 377 milhões de
euros. Quatro anos depois, o Babcock & Brown faliu e arrastou para o fundo
os pensionistas australianos.
21 de Dezembro. Oito meses depois da eleição como
primeiro-ministro, na agenda de José Sócrates entrou o tema PQP. Circulavam
rumores sobre a possível construção da fábrica da Portucel no estrangeiro, o
que o levou a convidar o industrial para um pequeno-almoço em São Bento. Eram
8h da manhã quando entrou na residência oficial do primeiro-ministro,
acompanhado de um dos seus braços-direitos, José Honório. Tinha à espera um
batalhão de assessores, incluindo o ministro Manuel Pinho, e o presidente do
ICEP, Basílio Horta. O que pode haver de mais convincente?
PQP lembra como Sócrates foi direito ao assunto: “Dizem-me
que quando comprou a Portucel se obrigou a fazer a fábrica em Setúbal.” Ele
contestou: “Se lhe dizem isso, então dizem-lhe mal, sr. primeiro-ministro. Mas
diga-me onde consta, pois quero cumprir com as minhas obrigações.” Em simultâneo,
o industrial confirmou que “a fábrica podia ir ou para a Alemanha ou para o
Brasil”. Sócrates não gostou do que ouviu e esgrimiu o argumento extremo: “Se
não fizer cá a fábrica, eu coloco em causa a privatização.” PQP não resistiu,
lançou a ameaça do tribunal: “Se preferir essa via, daqui a 15 anos
encontramo-nos a ver quem tem razão.”
O industrial questionou a audiência: “Porque hei-de ficar em
Portugal, se posso estar na Alemanha, no coração do consumo?” Quem esteve
presente assistiu à cena. José Honório avançou com uma lista de exigências com
49 pontos. “Para a Auto Europa, o Estado fez um porto e a Portucel, enquanto
exportadora líquida, até é mais importante. A nova fábrica dará origem à saída
diária de 500 camiões de contentores. Mas as estradas de Mitrena são estreitas,
sem condições para escoar a mercadoria.”
Sócrates insistia na unidade em Setúbal. “Se o sr.
primeiro-ministro sentir coragem para dobrar as forças vivas, eu farei aqui a
fábrica.”
Já fora de São Bento, PQP deu indicação ao colaborador para
mudar a agulha do investimento para Portugal. Oito anos depois, diz PQP, “é
verdade que Sócrates não cumpriu os pontos todos, mas o que me motivou foi ver
a grande vontade dele em que a fábrica ficasse cá e em resolver os obstáculos.
Subsídios? Recebia em qualquer dos lados”.
PQP afirma-se como “o industrial” português
2006. Este foi um ano em que os lucros da Semapa recuaram de
164,3 milhões (em 2005, a
venda da start-up Enersis gerou uma mais-valia substancial) para 91,3 milhões.
Mas os sete executivos da Semapa receberam 18,199 milhões de euros, ou seja,
uma média de 2,6 milhões por cabeça. Uma medida que acabou por gerar
controvérsia.
2007. Muito antes de PQP e Maude entrarem em litígio, já os
primos Carrelhas (filhos de uma tia de PQP), minoritários nas holdings
familiares, tinham desencadeado as hostilidades. Carlos Pardal (casado com uma
herdeira Carrelhas) questionou, entre outras coisas, as orientações do
presidente do grupo, nomeadamente devido às elevadas remunerações aos gestores.
Ora, os investidores minoritários vivem o eterno drama: não têm veleidades de
chegar ao poder para impor caminhos favoráveis (dividendos, bónus, nomeações).
E ou vendem ou são bem remunerados. A estratégia de PQP passava por não
distribuir o grosso dos dividendos pelos accionistas, retendo-os nas empresas
(Portucel e Secil). Uma fonte do sector argumentou que “um dos problemas dos
accionistas é quererem garantir dinheiro imediato, o que é legítimo, mas não
olham para as estratégias a longo prazo”. Ainda assim, um operador de bolsa diz
que “quem entrou no início na Semapa tem tido um retorno médio anual de 20%”.
Para quem acompanhou as lutas dentro da Semapa, foi em
meados de 2007 que começou a ser equacionado um novo capítulo de confronto. PQP
voltou a tentar apurar quem se escondia por trás das três sociedades
representadas pelo BES. Porém, chegar à verdadeira titularidade de qualquer
offshore é como procurar uma agulha num palheiro. A sede do BES, na Avenida da
Liberdade, no 15.º piso, onde Salgado tem gabinete, era o ponto de encontro
semestral. Foi aí que PQP lhe transmitiu a vontade do seu grupo em adquirir as
acções detidas pela Gaunlet, a Allord e a Relcove.
Segundo o industrial, o banqueiro disse nada poder fazer,
pois as acções não pertenciam ao BES, que era o mero gestor, e os proprietários
não estavam vendedores, nem queriam ser conhecidos. A partir daqui, há novos
registos de contactos, mas até haver uma clarificação os dois vão continuar a
brincar ao jogo do gato e do rato.
Antes do fecho de 2007, as três offshores juntaram-se na
sociedade luxemburguesa Mediterranean. Salgado não baixava a guarda. PQP invoca
que ele lhe repetiu que “a Mediterranean pertencia a investidores ingleses e
noruegueses”. As evasivas de Salgado deixavam o industrial da Semapa “nervoso”
e vão contribuir para o conflito que vai estourar daí a quatro anos.
2008. Entretanto, os sobrinhos Manuel e Matilde, filhos do
irmão mais velho Manuel, vão afastar-se das três holdings familiares, vendendo
as suas acções e entregando a gestão da fortuna a um family office. Mas
tornam-se accionistas directos da Semapa e da Portucel, onde se fazem
representar por um executivo, Vítor Gonçalves. “O Pedro tem sido bom para os
garotos [os sobrinhos], de quem gosta e a quem procurou proteger os interesses,
mesmo quando, na família, tentaram voltá-los contra ele”, refere um amigo dos
irmãos Queiroz Pereira, que declinou identificar-se, por não querer tomar
partido no diferendo familiar. E lembrou: a 5 de Março de 1993, “dia em que o
irmão Manuel foi enterrado, em Lisboa, é o dia em que o Pedro e o sobrinho
Manuel fazem anos”.
2009. 6 de Novembro é uma data que PQP dificilmente
esquecerá, pois representou a sua consagração pública como “o industrial”
português. Nessa manhã, o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva estava em
Setúbal a participar na inauguração da nova fábrica da Portucel/Soporcel e
preparava-se, também, para condecorar o patrão da Semapa com a Grã-Cruz da
Ordem do Mérito Industrial. Num discurso comovido, perante o Presidente e os
colaboradores, PQP assumiu-se como o vértice da pirâmide: “Sou eu que a recebo [condecoração],
mas ela é oferecida a todos os meus colaboradores, entre eles, o Carlos Alves e
o José Honório.”
Do pai, PQP reteve: “O problema não é os ricos terem muito
dinheiro, o problema está na utilização que dão aos recursos ao seu alcance.
Uns usam o dinheiro para produzir mais desenvolvimento, mais postos de trabalho
e arriscam; outros dizem: já tenho o meu, quero lá saber.” Conclui: “Eu não sou
assim.” “Hoje, se o pai ressuscitasse, tirava o chapéu ao filho mais novo, em
quem nunca acreditara”, refere agora um ex-ministro do pós-25 de Abril que se
cruzou com o industrial. E remata: “Ele reconstruiu o grupo com bom senso,
aproveitando as oportunidades e rodeando-se dos melhores.”
O BES/GES era uma peça importante da engrenagem e, entre
2009 e 2012, no meio de grande confidencialidade, tornou-se um accionista do
Grupo Queiroz Pereira (sustentado num esquema complexo de três holdings,
Cimipar, Cimigest, Sodim, que se cruzam entre si com o mesmo objectivo: a
Semapa geradora lucros) com maior peso do que os irmãos Maude (8%) e Pedro
(8%), mas não da mãe Maud, aliada de PQP. Naquele período, o GES reforçou a sua
presença na Cimigest (de 20% para 40%) e na Sodim (20%), as únicas onde estava
presente, o que lhe permitiu dominar indirectamente cerca de 20% da Semapa. Um
dos “vendedores” foi Joe Berardo, mas o movimento derivou da execução de dívida
ao BES.
2011. Antes de o ano terminar, PQP comunicou aos accionistas
da Cimipar (onde o BES não estava e que era detida em 40% por PQP, 40% por
Maude Lagos e 20% pelos Carrelhas) que ia alienar 10% da Cimigest à Sodim
(posição contabilizada em 36 milhões). A razão? A Cimipar (capital social de um
milhão) estava falida, com dívidas ao BES e a PQP e a Maude de 30 milhões de
euros. Uma transacção que vai mudar a relação cordial entre investidores. Mas
passou um ano até que o BES, Maude e os Carrelhas argumentassem que os
equilíbrios internos tinham mudado.
Estala a discórdia
2012. Em Janeiro, o presidente da Semapa executou a venda
por 17 milhões de euros e pagou dívida ao BES. A transacção foi aprovada por
todos os administradores das holdings e teve luz verde em AG. “O Pedro pensou:
tenho de controlar o meu grupo, que herdei do meu pai e que expandi em mais de
90% e tenho de ‘afastar’ toda a gente”, diz um dos intervenientes do conflito.
“E foi tomando decisões sem ouvir ninguém. Mas sem pagar o prémio de controlo.”
Uma tese que as hostes de PQP contestam: “O industrial tem desde sempre a mesma
posição accionista da irmã, a Cimipar estava falida e a operação foi aprovada
pela Maudezinha.”
Nos primeiros meses do ano, o industrial continuava
determinado em descobrir quem estava por trás da Mediterranean. A irmã Maude
colocava questões e ele temia, agora, ser surpreendido com uma acção hostil dos
seus accionistas (BES, Maude e Carrelhas). Semanas antes de a Cimigest eleger
os novos órgãos sociais (onde a sociedade luxemburguesa estava representada
pelo BES), PQP procurou Salgado: “Pergunto-te uma última vez: quem são esses
senhores da Mediterranean que representas e que nós não conhecemos?” O
banqueiro repetiu o que sempre lhe dissera e PQP pediu-lhe que fizesse chegar
aos “clientes” uma oferta. Ora, o banqueiro é redondo a falar, binário a
actuar: se interessa ao BES, faz, se não interessa, deixa cair. Para mostrar
que a Mediterranean não estava vendedora, explicava: “Eles não querem receber
propostas, nem ser conhecidos, são discretos.” Aos ouvidos do parceiro
industrial, o disco estava riscado.
As palavras de pouco servem sem gestos persuasivos. O
episódio faz parte dos processos judiciais a correr no quadro da guerra
accionista. A meio de 2012, semanas antes da data da reunião magna da Cimigest,
PQP começou a deixar cair sinais de que não reconduziria Rui Silveira, o gestor
do BES, indicado por Salgado para representar a Mediterranean. Antes do
encontro, o BES comunicou o desejo: a Mediterranean queria nomear um delegado
para a gestão. PQP reagiu à patada. “Não conheço os senhores da Mediterranean e
sem os conhecer, não meto ninguém no board.” O recado estava dado.
Junho de 2012. O mistério ia ser esclarecido. Nas vésperas
da AG da Cimigest, o GES comunicou, então, que ia adquirir a Mediterranean. O
industrial propôs-se formalizar uma oferta, em nome do grupo, e dirigiu uma
carta ao líder do GES, António Ricciardi. Pouco depois, Ricciardi notificou o
mercado de que a Espírito Santo Resources (holding para os negócios
financeiros) tinha assumido a Mediterranean.
Hoje, PQP não perdoa a Ricardo Salgado o pecado capital de
lhe ter “escondido”, ao longo de dez anos, que o BES era o verdadeiro
proprietário das sociedades accionistas, o que “se traduziu”, do seu ponto de
vista, “num plano” secreto para dominar a Semapa. Por seu turno, os círculos do
banqueiro alegam que a suposta “ocultação” partiu de um “pedido da Margarida”,
isto, apesar de, em 2003, a
herdeira ter informado os irmãos de que deixara as holdings familiares. Do lado
do BES, “a tese conspirativa de PQP” sobre a eventual tentativa de domínio da
Semapa é contestada: “Se fosse assim, porque é que Manuel Fernando Espírito
Santo lhe vendeu acções da Sodim?” A isto uma fonte da Semapa encolhe os
ombros.
Final de 2012. Depois de ter sido o único grande banco a
dispensar a recapitalização com verbas públicas, o BES começava a dar sinais de
vacilar. O impacto da crise financeira e económica prolongada, as exigências
regulatórias e as orientações seguidas na instituição, com excesso de exposição
ao imobiliário, tiveram consequências: aumento do crédito malparado, maiores
imparidades (perdas potenciais). O cenário impediu Ricardo Salgado de ser
“generoso” com a família e obrigou-o a desacelerar os financiamentos às
empresas do grupo. Tal como o PÚBLICO noticiou a 18 de Setembro, entre 2008 e
2013, em alternativa ao apoio do BES, a gestora de fundos do grupo recorreu aos
clientes da instituição para financiar em larga escala (2,2 mil milhões de
euros) a área não financeira através de dois fundos, o ES Liquidez e o ES
Rendimento. Uma via polémica. Já este mês, a 12 de Dezembro, o The Wall Street
Journal veio dar grande ênfase ao tema na primeira página do seu site.
Há uma certa unanimidade na interpretação: Ricardo Salgado
esteve sempre ao lado das duas irmãs de PQP, alegando uma parceria histórica
entre as duas famílias e uma relação pessoal. A cumplicidade manteve-se quando
Maude Lagos entrou em rota de colisão com o irmão. E no último mês de 2012,
Salgado e Maude assinaram um acordo de tag along (um mecanismo de protecção dos
investidores minoritários), que garantiu a cada uma das partes que, em caso de
venda das suas acções da Cimigest e da Sodim, a outra teria o direito de
acompanhamento ao mesmo preço e em idênticas condições.
A fronteira entre a obsessão e a necessidade de conhecimento
pode parecer, às vezes, um pouco turva. O industrial acreditava numa coisa: que
no seu “gabinete” Ricardo Salgado tinha uma aliada, a sua irmã Maude Lagos.
Dentro da Semapa, à volta de PQP, fala-se no “assalto à diligência”. Sendo
accionista do GES (7%), o industrial sabia das divisões internas e que a
família Espírito Santo sofria o impacto da mudança do ciclo económico. E
preparou-se para um braço-de-ferro. Por essa altura, realizou-se uma reunião no
conselho superior do GES onde PQP participou (apesar de não integrar a
estrutura) e que estabeleceu a normalização do relacionamento entre os dois
grupos.
2013. Nos primeiros meses do ano, são desencadeadas
negociações. Salgado sugeriu, então, um pacto parassocial, onde reconhecia a
liderança de PQP na Semapa, mas queria ter decisão em matérias estratégicas. O
plano foi chumbado. Em contrapartida, PQP avançou com uma oferta de aquisição
das acções do GES nas holdings familiares, que este recusou. O BES exigiu-lhe
um prémio de controlo.
Mas a capacidade de manobra de Salgado estava diminuída e a
partir daqui PQP vai jogar os trunfos todos. É corredor de automóveis, talvez
não se importe, por vezes, de passar fora da curva, de ir até ao limite do
risco. Uma tese que recusa com irritação: “Não tem que ver com os automóveis, é
da minha natureza, da capacidade de formar equipas, de ter sócios, da vontade
de empreender. Nunca pus em risco os activos do grupo, o que seria extremamente
arriscado era não ter feito nada.” Insiste sempre: “O meu pai deixou aos filhos
uma empresa, que eu multipliquei infinitamente, sem pedir um único euro aos
accionistas, nunca houve um aumento de capital. Fiz tudo com o pêlo do cão [e
dívida], com o que sobrou do 25 de Abril.”
Entretanto, a Cicleleader, sociedade dos primos Carrelhas,
enviou uma carta ao industrial com um conjunto de questões sobre a operação do
ano anterior, de venda, pela Cimipar, de 10% da Cimigest à Sodim. A resposta
foi enviada em 15 dias. Só nessa altura é que os Carrelhas perceberam que a
operação mudara a configuração accionista. Depois disso, formou-se uma
“aliança” de interesses entre o BES, Maude e Carrelhas. A guerra com PQP
tornou-se inevitável. Os momentos que se vão seguir são de grande litigância: a
troika accionista disparou com 14 providências cautelares a pedir a anulação da
venda das acções da Cimigest à Sodim.
Foi num quadro de aceleração que a 24, 28 e 29 de Maio , se
sucederam as AG inflamadas no Grupo Queiroz Pereira e que resultaram na
destituição de Maude Lagos dos órgãos sociais e no seu afastamento da Sodim,
onde geria o Ritz e o Hotel Villa Magna, em Madrid. Em paralelo, continuavam as
negociações que serão acompanhadas até ao final, do lado do BES e de Maude, por
Francisco Cary, do BESI, e pelo advogado Luís Cortes Martins. Maude Lagos foi
também assessorada por Gabriela Martins. Por seu turno, PQP atravessou-se com
Fernando Ulrich (o BPI tem 10% da Semapa), que há quase duas décadas mantém com
Salgado (de quem é, aliás, primo) uma relação distante que resultou de uma
concentração falhada entre os dois bancos. Ricardo Pires e Miguel Ventura,
colaboradores de PQP, acompanharam Ulrich. Já os Carrelhas indicaram o advogado
Tito Arantes Fontes.
Julho. No dia de aceitação do grau de Doutor Honoris Causa,
entregue pelo reitor do ISEG, Ricardo Salgado surgiu a mostrar grande respeito
pela família Queiroz Pereira e pelas tradições “como parte do código genético
do GES”.
Setembro. A comunicação social é por vezes usada como arma.
Os adversários da Semapa, no GES, alegam que à mesa das negociações o
industrial deixou um aviso: “Ou me dão o que eu quero, ou ponho uma equipa a
colocar tudo nos jornais.” Inquirida sobre o tema, a Semapa negou-o. Mas todos
terão sido “cúmplices” em esgrimir o mesmo argumento da comunicação social.
A 31 de Agosto, os conflitos internos no GQP começaram a ser
descarregados no espaço público, depois de as primeiras acções e providências
cautelares terem caído nos tribunais. O Expresso noticiou: “PQP é acusado pela
irmã Maude de controlar ilegalmente o grupo. Este diz que o GES quer ficar com
a Semapa.”
7 de Setembro. Ricardo Salgado estava de visita aos balcões
do BES nos Açores quando mandou testemunhos de boa vontade: “O grupo quer ser
parte da solução e não do problema.” Só que o BES preparava-se para descer à
terra e juntar-se aos outros bancos para divulgar prejuízos (381 milhões de
euros).
Outono. As maratonas negociais são um traço das guerras
familiares. No Verão, o governador Carlos Costa dirigiu avisos a Salgado para
que chegasse a acordo com PQP, de quem recebera mensagens com “muita
informação”. E em Outubro, no pico da tensão accionista, o Mercedes topo de
gama cinzento metalizado do industrial foi visto a estacionar à porta do BdP.
PQP estava acompanhado de um colaborador “carregado” de documentação. Mau
sinal. Os dois reuniram-se com o vice-governador Pedro Neves e o director José
Queiró, com a supervisão prudencial. Uma fonte da instituição garantiu que do
encontro nada transpareceu. Só que, a partir dali, Carlos Costa já não podia
ignorar que tinha os dossiers em cima da mesa. O vice-governador chamou Salgado
ao BdP a quem pediu esclarecimentos, que este terá dado. O BdP queria impedir
que do confronto nascesse uma vulnerabilidade para o sector financeiro. Em
paralelo, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, pediu a Eduardo Catroga que
colaborasse no consenso.
Nesse período, existiu ao mais alto nível uma preocupação
real de que do conflito pudesse resultar uma perturbação muito grave em dois
dos maiores grupos portugueses, GQP e GES, com impacto na economia e, por
arrastamento, na população. Um risco que não foi perceptível para a opinião
pública porque, meses depois, Salgado e PQP assinaram o acordo.
Accionistas celebram a paz
Final de Outubro. Nesta fase, já as hostilidades tinham
ultrapassado a mera dimensão da Semapa. Com a ida do industrial ao BdP, o
núcleo duro dos problemas de Salgado passou a estar no coração do GES, onde se
travava (e trava), em surdina, um combate entre primos direitos. A atitude
desafiante de PQP, accionista do GES, com poder arbitral, contribuía para a
estratégia anti-Salgado do presidente do BESI. Ricciardi e PQP têm, ainda hoje,
uma relação menos infectada e, por vezes, assumem, nos negócios, estilos de
actuação de pit bulls. Num contexto de luta de poder pela liderança do GES/BES,
a acção de Ricciardi culminou (já depois do acordo entre Salgado e PQP) em
declarações públicas de falta de confiança no presidente do banco, isto, horas
depois de o Jornal de Negócios ter publicado um trabalho sobre a sucessão de
Salgado — “O golpe de Estado ao estado de golpe no GES”. A família percebeu
rapidamente que o diferendo, ao ser dirimido à vista de todos, arriscava
tornar-se o folhetim do ano. E 24 horas depois retirou-o do espaço público com
um comunicado assinado pelos dois primos direitos. Mas é evidente que as
movimentações internas continuam e que o BdP está a vigiar o que se lá passa.
Finalmente, o acordo entre Salgado e Queiroz Pereira. O
caminho que estava a ser trilhado já não interessava a nenhuma das partes. E
beneficiou do “dedo” de Ricardo Abecassis Espírito Santo Silva, amigo de PQP, a
viver no Brasil. Dizem que foi o luso-brasileiro que ajudou a desatar o
consenso. Mas que foi José Maria Ricciardi quem apareceu a carimbar a paz.
Parceiros há 80 anos, os grupos Espírito Santo e Queiroz Pereira selaram um
pacto de separação de águas (o BES saiu do GQP e o GQP saiu do GES). Os
Carrelhas aproveitaram e saltaram fora. Mas Maude Lagos só apertou a mão ao
irmão um mês depois.
Há uma pergunta legítima: sem as divisões accionistas, sem
as polémicas (Escom, Submarinos, Sobreiros, Monte Branco, Operação Furacão,
Álvaro Sobrinho, escutas telefónicas, venda de acções da EDP, revisão da
declarações fiscal por parte de Salgado, escutas a Ricciardi) e sem as
contingências financeiras no GES, PQP teria tido margem de manobra para impor a
saída do parceiro? Dificilmente. Se o cenário fosse mais favorável,
presumivelmente, não haveria guerra interna no GES, os escândalos envolvendo
Angola já teriam sido compensados de qualquer maneira. O mais provável é que
Salgado ou não fechasse o acordo tão rapidamente ou forçasse PQP a vender as
acções ou, ainda, que optasse por ficar na Semapa. O fim dos tumultos entre PQP
e o GES, tal como o Expresso já divulgou, implicaram que PQP escrevesse uma
carta ao BdP a garantir que as suas dúvidas sobre a má gestão do Grupo Espírito
Santo estavam sanadas. E o BdP já pediu esclarecimentos ao BES para saber quais
os efeitos patrimoniais do acordo com PQP.
Os mercados financeiros admitem que num futuro não muito
distante se possa abrir outro capítulo, quando os três irmãos e os dois
sobrinhos forem chamados a lidar com a herança da matriarca, Maud Queiroz
Pereira, com 99% da Vertice e 30% da Sodim. De fora do acordo entre os dois
irmãos e tal como defendeu Maude Lagos, ficou a Quinta de Vialongo, no
Ribatejo, avaliada em muitos milhões de euros e onde cada herdeiro de Manuel
Queiroz Pereira detém 25%. A mãe é a usufrutuária. Mas não é provável que o
poder de PQP (que tem tido desde o primeiro momento o apoio da mãe, de quem é,
aliás, muito próximo) seja de novo posto em causa. O industrial é, assim,
aparentemente, o vencedor da guerra.
Problema? Qual problema? O mundo dos negócios é mesmo assim.
O acordo entre PQP e a troika accionista (BES, Maude Lagos, Carrelhas) trouxe
entre 150 e 180 milhões de euros e um compromisso: o silêncio. Hoje, quem ouvir
qualquer uma das partes, em público, não pode deixar de ficar com a sensação de
que a guerra nunca existiu. Oficialmente, a paz chegou, portanto. Nada de mais
enganador.
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