terça-feira, 24 de dezembro de 2013

“Porque não vêm até cá?”

Bucareste é uma cidade cada vez mais cosmopolita

A resposta da Bulgária e Roménia à “histeria” de uma certa Europa: “Porque não vêm até cá?”
AFP 23/12/2013 – in Público

Cada vez mais estrangeiros escolhem estes dois países do Leste para viver as suas vidas e realizar os seus sonhos. E não percebem porque há europeus que temem uma “invasão” de romenos e búlgaros a partir do próximo ano.
Empurrados pela crise, seduzidos pelos preços baixos das terras ou por pura paixão, milhares de europeus instalaram-se na Bulgária e na Roménia, aproveitando as oportunidades da Europa emergente.

Numa altura em que países como o Reino Unido temem uma “invasão” de romenos e búlgaros depois da abertura do seu mercado de trabalho no dia 1 de Janeiro – um debate “histérico”, segundo o comissário europeu Lazlo Andor –, a Roménia e a Bulgária acolhem também cada vez mais estrangeiros.

São 145 mil, dos quais pelo menos 52 mil são cidadãos da União Europeia, segundo os dados do Eurostat e das estatísticas nacionais.

Depois de terem trabalhado em Bruxelas e no Brasil, os espanhóis Rafaela e Ricardo Alcaine criaram uma sociedade de consultoria em Bucareste e ajudam os seus compatriotas a instalar-se.

Enquanto a Espanha está timidamente a sair de dois anos de recessão, a Roménia registou um crescimento de 2,7% nos primeiros nove meses do ano e a economia deverá crescer 2,2% em 2014 (na zona euro prevê-se um crescimento de 1,1%).

“Depois do início da crise, o número de espanhóis que se instalaram na Roménia não parou de aumentar”, explica Rafaela Alcaine, evocando milhares de recém-chegados, “talvez tantos como os franceses”. Segundo ela, os espanhóis “trabalham em tudo: infra-estruturas, engenharia, energias renováveis, imobiliário”, numa país que beneficia de fundos europeus para combater o seu atraso de desenvolvimento.

“Transportes fáceis para Espanha, a tradição industrial e mão-de-obra qualificada”, bem como uma língua de origem latina são também vantagens, diz Alcaine. O fluxo faz-se me dois sentidos, já que Espanha acolheu há vários anos cerca de um milhão de romenos “que estão muito bem integrados”.

Instalado em Bucareste depois da queda do regime comunista no final de 1989, o advogado britânico Nicholas Hammond tem uma mensagem clara para os seus compatriotas: “Se têm ideias, venham para a Roménia, é um país onde as podem concretizar, aqui há imensas oportunidades.”

Matthew Willis, também britânico, licenciado em Literatura, escolheu Sófia, na Bulgária, para realizar um sonho impossível no seu país: abrir uma livraria de livros em segunda mão. “Em Inglaterra, nunca poderia ter feito isto, porque a Amazon matou o comércio de livros usados e as livrarias independentes”, explica.

A Roménia, quinto país da União Europeia em superfícies agrícolas, também seduziu muitos agricultores franceses, holandeses ou italianos. “Eles vêm por causa do preço baixo das terras, da sua qualidade e do preço baixo da mão-de-obra”, explica Tudor Dorobantu, secretário-geral do sindicato Agrostar.

O preço das terras oscila entre 2000 a 4000 euros/hectare, dez vezes menos que na Holanda ou na Dinamarca, segundo a associação EcoRuralis.

Seduzidos pela “beleza” de um país onde muitas terras ainda não foram contaminadas por pesticidas, o escocês Doug McFarlane e a sua mulher, Sara Meaker, antigos professores, optaram pela agricultura biológica desde 2006, perto de Cluj, na Transilvânia.

Nesta região, onde o príncipe Carlos de Inglaterra transformou uma casa numa pousada, “cada vez mais europeus querem fazer agroturismo”, nota a Fundação Adept, que promove o respeito pelo ambiente e as tradições.

São nove os países da União Europeia que se preparam para levantar no dia 1 de Janeiro as últimas restrições relativas ao acesso de romenos e búlgaros aos seus mercados de trabalho. Mas Nicholas Hammond não teme um êxodo como foi o caso para os polacos em 2007. “Aqueles que queriam partir já partiram”, diz.

“Por mim, se búlgaros e romenos quiseram ir trabalhar para Londres, eles seriam bem-vindos”, diz Richard Fox, um britânico que abriu uma loja de vinhos em Bucareste.

Empenhado em acabar com as ideias feitas, o jornal digital Gandul lançou uma campanha convidando os britânicos a instalarem-se na Roménia. No site Why don’t You Come over? (Porque não vêm até cá?), o jornal propõe-lhes empregos de bancários, informáticos ou engenheiros.

Terra queimada



OPINIÃO
Terra queimada
OCTÁVIO DOS SANTOS 24/12/2013 – in Público

Portugal, que foi pioneiro na abolição da pena de morte, algo de que sem dúvida se deve orgulhar, caiu no outro extremo, o da excessiva permissividade.
Após o terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755, uma das primeiras ordens dadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal, foi a de que todos os que fossem apanhados em flagrante a saquear cadáveres e ruínas fossem executados sumariamente, e em forcas montadas o mais alto possível, para servirem de exemplos bem visíveis em toda a cidade. Estima-se que cerca de 200 ladrões terão ficado pendurados pelo pescoço nas semanas que se seguiram ao cataclismo.

Saliente-se o que é óbvio: aqueles lúgubres larápios não causaram a catástrofe nem, tanto quanto é possível saber, a morte das pessoas que assaltavam. Porém, pagaram com as suas vidas as profanações que fizeram. Agora, avancemos no tempo mais de 250 anos, até 2013, em que os incêndios florestais atingiram mais de 121 mil hectares e causaram a morte de nove pessoas, das quais oito bombeiros – fazendo com que sejam já cerca de 200 os “soldados da paz” a morrerem nas florestas nos últimos 30 anos; a Polícia Judiciária efectuou 73 detenções pelo crime de fogo posto. Estes incendiários não terão causado todos os incêndios e todas as mortes… mas são culpados, mesmo, da destruição de algumas (demasiadas) terras e da perda de algumas (demasiadas) vidas humanas. E que lhes vai acontecer? Serão enforcados? Ou lançados nas chamas que atearam para “provarem do seu próprio remédio”? Não. Se forem julgados e condenados, incorrem numa pena máxima de apenas 12 anos de prisão – porque o fogo posto é considerado um crime simples, e não qualificado. No entanto, nem isso é certo: por exemplo, entre 2007 e 2011 foram proferidas 280 condenações, mas dessas só 14 implicaram uma sentença de prisão efectiva. Aliás, antes disso, ser apanhado em flagrante não significa necessariamente ficar em prisão preventiva…

Portugal tem terra queimada no sentido literal, mas também no sentido figurado: aumentam no interior as áreas que são abandonadas, desabitadas, desertificadas – e que desse modo ficam “queimadas” para o desenvolvimento e para a modernização. Todavia, todo o país, tanto em meio urbano como em meio rural, está a tornar-se uma enorme terra “queimada” pelo desemprego e pela emigração, factores que sem dúvida contribuem para explicar as consecutivas falhas na prevenção e na detecção de fogos… mas que não as desculpabilizam. Décadas de discussão e de planificação das chamadas “épocas de incêndios” não têm impedido que aqueles se tenham tornado uma trágica e triste “normalidade” – tal como a criminalidade, a incompetência não tem sido devidamente punida. E assim como acontece em relação a outros tipos de delitos, não há qualquer dúvida de que a ausência de penalizações (mais) pesadas neste campo é um incentivo aos infractores para (re)incidirem nos seus comportamentos. Um pirómano pode causar – e costuma causar – uma enorme devastação, extensa na quantidade e na qualidade do que se destruiu. Pelo que se justificaria que a justiça o castigasse, se não com a morte, então com a prisão perpétua.

Esta deveria estar em vigor em Portugal e aplicada a todos os que cometem crimes muito graves. Porém, este país, que foi pioneiro na abolição da pena de morte, algo de que sem dúvida se deve orgulhar, caiu no outro extremo, o da excessiva – e vergonhosa – contemporização e permissividade. E já se percebeu que neste regime, nesta terceira república, tal situação não será alterada. Recorde-se o que aconteceu em 2001, em que se colocou a questão da adesão (ou não) do nosso país ao Tribunal Penal Internacional e as consequentes alteração e revisão (extraordinárias) da Constituição: uma das mais inacreditáveis, indescritíveis e patéticas polémicas que alguma vez aconteceram neste país. Havendo a hipótese, com a ratificação do tratado que instituiu o TPI, de Portugal ter de extraditar pessoas para países onde vigora(va) a prisão perpétua, apareceu um alargado e indignado coro de “defensores do humanismo” que, clamando contra o que seria um alegado “recuo/retrocesso civilizacional”, reiterava a preferência nacional pelo princípio da “ressocialização” e a manutenção da nossa “posição humanista e avançada”. Na verdade, essa posição tornou-se tão “humanista” e tão “avançada” que, actualmente, até vítimas de um assalto – uma das quais foi atingida a tiro! – são levadas a tribunal pelo respectivo assaltante, com o apoio do Ministério Público, devido à “violência” que sofreu às mãos daquelas na sequência de uma (re)acção de legítima defesa! As demonstrações de laxismo e de leviandade, tanto na definição de penas como na respectiva aplicação, de que existem numerosos exemplos nos últimos anos, constituem autênticos “convites” para que mais criminosos “queimem” não só pessoas mas também patrimónios nacionais, naturais, económicos...

E também culturais e arquitectónicos: neste âmbito, é tão condenável deixar-se decair edifícios de valor histórico como permitir – não perseguindo e não castigando os culpados – que todos os imóveis, independentemente da sua antiguidade e utilização, sejam desfeados, vandalizados, enfim, “queimados”… por tinta: os denominados tags inundam todo este país e, em especial, a sua capital. Há um ano, a Câmara Municipal de Lisboa, através do vereador José Sá Fernandes, anunciou um “combate radical aos graffiti”, uma “mega-operação de limpeza” que se iniciaria em Janeiro ou Fevereiro de 2013, e que orçaria em quase um milhão de euros. Foi mais uma promessa que ficou por cumprir, e que constituiria, só por si, um motivo – outros existiram – para que António Costa não merecesse ser reeleito presidente da autarquia. Sabendo que nem sequer bases de estátuas estes “artistas” poupam, regressemos novamente ao passado e imaginemos o que aconteceria se, logo depois de ser inaugurado, em 1775, na (então nova) Praça do Comércio, o monumento a D. José fosse danificado por um “pretendente a pintor”. Se capturado, o energúmeno não escaparia a, pelo menos, ser açoitado, ou chicoteado, em público, e, a seguir, enviado em degredo para África. Não se exige que aos actuais “grafiteiros” seja aplicado um correctivo semelhante, mas lá que precisam de apanhar um valente susto, lá isso precisam. Sujar uma parede é, tal como atear um fogo, destruir propriedade alheia. E a distância que vai entre cometer um acto e o outro pode não ser muito grande nem muito demorada de percorrer.


Jornalista e escritor

French culture Bleak chic. / The Economist.



French culture
Bleak chic


ONE of the most perplexing questions of the early 21st century is this: how can the French, who invented joie de vivre, the three-tier cheese trolley and Dior’s jaunty New Look, be so resolutely miserable? To outsiders, the world’s favourite tourist destination embodies the triumph of pleasure over desk-slavery, slow food over fast, the life of the flâneur over that of the frenetic. Yet polls suggest that the French are more depressed than Ugandans or Uzbekistanis, and more pessimistic about their country’s future than Albanians or Iraqis. A global barometer of hope and happiness puts the French second to bottom of a 54-country world ranking, behind austerity-battered Italians, Greeks and Spaniards, and ahead only of Portugal.

Happiness is of course a slippery concept. Asked if they are happy, people everywhere are more than likely to say yes; far fewer say that they laugh much. Gallup, a pollster, has devised a global “positive experience index”, based on whether respondents report that they laughed and smiled a lot or did something enjoyable the previous day. By such measures, France does better than the world average. But take out war-torn or poor countries, and measure the French against fellow rich nations, and they still turn out to be unhappier than their peers. The French report fewer “happy experiences” than those in America, Britain, Germany, Switzerland, Sweden, Canada, Norway, the Netherlands, Austria and Belgium. The land of the bon vivant is an unhappy outlier.
Claudia Senik, a French economist at the Paris School of Economics, calls this the “French unhappiness puzzle”. In a 2013 study, she found that the French were not only unhappier than their level of wealth and unemployment would suggest, but also more discontented than French-speaking people in Belgium and Canada (so language is not the reason), and more miserable when they emigrated compared with non-French expatriates in the same place (so they take their gloom with them). “Unhappiness seems to be more than about life in France,” Ms Senik concluded. “It is something about being French.”

Naturally, Ms Senik’s findings caused a stir in France, prompting Maureen Dowd, a New York Times writer who was visiting Paris at the time, to report that “joie de vivre has given way to gaze de navel”. Le Monde ran three pages under the title “Liberté, Égalité, Morosité”, in a bid to decode its fellow countrymen’s “persistent melancholy”. France, it turns out, has the highest suicide rate in western Europe after Belgium and Switzerland. An American psychiatric study showed that, among ten rich countries, the French were the most likely to have a “major depressive episode” at some point in their life. Even the French language seems to be particularly well stocked—morosité, tristesse, malheur, chagrin, malaise, ennui, mélancolie, anomie, désespoir—with negativity. Can there really be something about being French that makes for so much gloom?

Fifty shades of noir
Two periods in France’s recent history have contributed most to the rich seam of misery in its culture—one after the revolution, the other after the second world war. In the quarter-century from the fall of the ancien régime in 1789 to 1814, France overthrew a monarchy, endured the Terror, and lost an empire. After this period the Romantic movement, from Baudelaire to Chopin, expressed a melancholy infused with nostalgia and ambivalence towards a society dominated by rationalist thought and bourgeois values.

In “René”, a novel published in 1802, Chateaubriand introduced to the world the tortured French youth, whose “wretched, barren, and disenchanted” existence embodied what the writer called the mal du siècle. In his memoirs, Chateaubriand recognised that he had set more of a trend than he had bargained for:

If René did not exist, I would not write it again…all we hear nowadays are pitiful and disjointed phrases; the only subject is gales and storms, and unknown ills moaned out to the clouds and to the night. There’s not a fop who has just left college who hasn’t dreamt he was the most unfortunate of men; there’s not a milksop who hasn’t exhausted all life has to offer by the age of sixteen; who hasn’t believed himself tormented by his own genius; who, in the abyss of his thoughts, hasn’t given himself over to the “wave of passions”; who hasn’t struck his pale and dishevelled brow and astonished mankind with a sorrow whose name neither he, nor it, knows.
Romantic miserabilism was experienced as a form of pleasure. “Melancholy”, wrote Victor Hugo, “is the happiness of being sad.” It was treated as a noble state, a higher aesthetic condition. “I do not pretend that joy cannot be allied with beauty,” wrote Baudelaire in his diary. “But I do say that joy is one of its most vulgar ornaments; whereas melancholy is, as it were, its illustrious companion.” Much of this tradition is firmly fixed in today’s French mind. Hugo’s poem “Melancholia” is required reading for French lycée students, as is Alfred de Musset’s “La Nuit de Mai”, whose narrator laments that “Nothing makes us so great as great sorrow.”

The strange beauty of melancholy finds some echo in mid-20th-century France, which produced a second wave of miserabilism. Françoise Sagan’s “Bonjour Tristesse”, published in 1954, for instance, opens with the 17-year-old Cécile’s lament:

A strange melancholy pervades me to which I hesitate to give the grave and beautiful name of sorrow. The idea of sorrow has always appealed to me, but now I am almost ashamed of its complete egoism. I have known boredom, regret, and occasionally remorse, but never sorrow. Today it envelops me like a silken web, enervating and soft, and sets me apart from everybody else.
Yet the ennui that marked this second period had less to do with nostalgia than nausea. In “L’Etranger”, Albert Camus’s protagonist, Mersault, is perhaps the world’s best-known embodiment of anguish in the face of the unknowable meaning of existence, or the absurd. Post-war French theatre developed the absurd, through the plays of Camus, Jean Anouilh and the Franco-Romanian Eugène Ionescu. Samuel Beckett, an Irishman, wrote “Waiting for Godot” in French. On a chilly winter’s evening in 1953 on Paris’s left bank, two years before the play went on to unsettle English-speaking audiences, it was first staged at the 75-seat Théâtre de Babylone, and struck a chord with post-war Paris.

The left-bank literary clique led by Sartre…adopted ennui as a way of life as well as a philosophy

Neither Camus nor his contemporary, Jean-Paul Sartre, was ultimately a pessimist. But it is the torment of existentialism, rather than its conclusions, that captured the imagination. Indeed, the left-bank literary clique led by Sartre and Simone de Beauvoir, which gravitated to the cafés of Saint-Germain-des-Près, adopted ennui as a way of life as well as a philosophy. When Sartre handed the original manuscript of “Nausea” to Gallimard, his publisher, he entitled his novel “Melancholia”.

Perhaps the best exemplar of miserabilism among contemporary French fiction writers is Michel Houellebecq, the controversial Goncourt-prize-winning novelist, in such nihilist works as “Whatever” or “Atomised”. His characters invariably lead empty, often sordid, always disillusioned lives. “In the end,” writes Mr Houellebecq in “The Elementary Particles”, “there’s just the cold, the silence and the loneliness. In the end, there’s only death.”
There have, of course, been periods during which the gloom lifted. It was after the double shock of the Franco-Prussian war of 1870-71 and the bloody Paris Commune, after all, that the Impressionists took their tubes of paint and brushes outdoors, delighting in light and colour. Despite a measure of fin-de-siècle anxiety, the belle époque was a moment of breezy certainty. Gustave Eiffel unveiled his wrought-iron tower in 1889. By 1900 the City of Lights drew 51m visitors to its universal exhibition, under the theme of “Paris, capital of the civilised world”, and Matisse, Derain and other fauves had started to capture exuberant colour and warmth on canvas. Yet miserabilism seems to have a greater hold on the French mind today.

I doubt, therefore I am
One reason could be the French appetite for brutal self-criticism. From Descartes onwards, doubt is the first philosophical reflex. “The rationalist tradition makes us sceptical; we exist through criticism,” argues Monique Canto-Sperber, a philosopher and director of Paris Sciences et Lettres, an elite university. “We treat those too full of hope as naive.” In “Candide, or The Optimist”, published in 1759, Voltaire mocks the folly of looking on the bright side in the face of unimaginable horrors. “Optimism”, says a disabused Candide in the novel, “is the madness of insisting that all is well when we are miserable.” When a French magazine recently tried to decode today’s national pessimism, it concluded: “It’s Voltaire’s fault”. “We find it more chic and more spiritual to doubt everything.”

Up to a point, this is an affectation of the elite. “It is in a certain Parisian milieu that there are intellectuals who are grumpy by trade,” argues Jack Lang, the Socialist former culture minister: “There is a gap with the rest of French society.” Yet France cherishes public intellectuals, so their influence spreads wide. It is a talking, thinking culture. Its films value dialogue over plot; its talk-shows are interminable. The French, wrote a helpful official guide for British servicemen heading to France for the 1944 liberation offensive, “enjoy an intellectual argument more than we do. You will often think that two Frenchmen are having a violent quarrel when they are simply arguing some abstract point.”

The country treats its philosophers like national treasures, even celebrities, splashing photographs of them across the pages of glossy magazines. And it ensures that the canon of French thought is fed to the whole country. All pupils taking the school-leaving baccalauréat exam must study philosophy, and teenagers are examined on such cheery essay questions as “Is man condemned to self-delusion?” or “Do we have an obligation to seek truth?”. So if French intellectuals are predominantly critical pessimists, miserabilism may in part be the consequence of holding them in such esteem. Were Americans to pay more attention to the writings of Noam Chomsky and Jared Diamond, perhaps they would be gloomy too.

This critical reflex reaches right into the classroom, generating a further source of negativity. In French schools, for example, the tradition is for teachers to grade harshly, and praise with excessive moderation. Under a nationwide system that awards marks out of 20, a pupil doing a dictée has points (or even half-points) deducted for every error; so a child swiftly ends up with zero. The idea is that all children can always do better. The result is a lack of what the French, borrowing English syntax, call “la positive attitude”.

Fully 75% of French pupils worry that they will get bad grades in maths tests, according to an OECD study, nudging stressed-out South Korean levels (78%). A recent government-commissioned report on a small pilot experiment in some French secondary schools, where Cartesian grading had been shelved in favour of a more encouraging system, noted with some surprise that weaker pupils were absent from school less often, more confident in the classroom, and “less stressed when faced with failure”.

If the French are life’s critics, they are at the same time idealists, and these two make unhappy bedfellows. Thanks to the philosophers of the Enlightenment and the 1789 revolution, the concept of progress towards an ideal society has, despite periodic turmoil and bloodshed, been a powerful narrative in the French mind. The best embodiment of this is the French declaration of human rights. Unlike the American declaration of independence in 1776, which guaranteed the rights of all Americans, the French version 13 years later guaranteed the rights of all mankind.

To this day, the ambition to inspire the world with a secular republican ideal, backed by the spread of French culture and language, stirs political leaders. “France is only itself when in pursuit of an ideal,” wrote Dominique de Villepin, a former prime minister, in a deliberate echo of Charles de Gaulle’s reference to the country’s “exceptional destiny”. It is great stuff for myth-making, as De Gaulle demonstrated so masterfully after liberation from Nazi occupation. But when reality does not quite match up to ideals, self-criticism kicks in and misery results.

Left-wing French intellectuals never quite got over the failed revolutionary promise of the May ’68 student uprising, nor their disillusion at the declining influence of French thought from the 1980s onwards. Others struggled to reconcile French values with the country’s darker moments, notably under occupation. Today, “belief in a better tomorrow has come to an end,” says Christophe Prochasson, a French historian. “There is a crisis of progress.”

Put simply, the French know that they have enjoyed a fabulous way of life, and are depressed by the thought that neither the French model, nor Europe, seems able to provide the prosperity or the national grandeur it once did. The upshot is that “we are collectively animated by a sense of doom and decline,” says Dominique Moïsi, of the French Institute of International Relations. “We have in mind this great nation of ours: the major power in Europe under Louis XIV and Napoleon I, the biggest allied standing army in the first world war. Now there’s a sense of ‘What happened to us?’.”

The pleasure of pouting
France is not alone in contemplating its diminished status. Britain had a grand past too. But the post-colonial, post-industrial British do not share the French sense of national depression, partly because they never considered their empire to be part of an effort to export a culture or a model society. And, having accidentally given the world the English language, Britain feels relaxed about its global cultural influence. The contrasting decline of French, once the language of European diplomacy, high culture and polite conversation, is felt as a national wound.

Idealistic France’s painful reckoning with decline is therefore quite different to the British approach of resigned muddling-through, argues Jean-Philippe Mathy, of the University of Illinois, in “Melancholy Politics”. It is almost, says Mr Prochasson, the historian, a form of bereavement. “There is a very profound pessimism today due to the realisation that France is becoming a country like any other, and this is difficult.”

Does it matter? Certainly, France’s high suicide rate is a serious cause for concern. Dissatisfaction also makes the French a particularly fractious people to govern, ready as they are to contest, and protest, at the slightest excuse. Confidence too is elusive in a country given to pessimism, making it harder still for politicians to persuade the French to try new ways of doing things.
Yet pessimism has not stopped France from enjoying itself. French hedonism has survived miserabilism—or perhaps provided a refuge from it. Even in the immediate aftermath of the 1789 revolution, the country exhibited a “thirst for pleasure”, as one contemporary newspaper report put it: “The stream of fashion, a succession of dinners, the luxury of their splendid furniture and their mistresses, are the objects that chiefly employ the thoughts of the young men of Paris.” With firework displays, extravagant fashion, circuses and carousels, Paris at the time, for the rich at least, was all about enjoyment. During les années folles, upper-class American tourists took the steamer to Normandy and then the railway to Paris, drawn to France, writes Harvey Levenstein, a historian, as “a land that was free from American puritanism, where the pursuit of pleasure reigned supreme”.

Nor has miserabilism discouraged the French preoccupation with beauty and taste. France does not wear its gloom like a dreary accessory. On the contrary, its culture delights in elegance, sensuality, quality and form: the exquisite hand-stitching on the haute-couture dress; the immaculately glazed tartes aux framboises lined up in the pâtisserie window. The aesthetics of daily life, the art de vivre, remains a source of both grand gestures and small stolen pleasures. It is no coincidence that the two biggest luxury-goods groups in the world are French.

Modern French culture may not have supplied great writers to rival Hugo or Molière, and Paris may lack the buzz of New York or London. But it is hard to argue that negativity has stifled French creativity. Would France have brought the world existentialism had Sartre been a cheerful fellow?

The critical impulse has promoted cultural innovation. Both cinema’s New Wave and French literary theory were born of critical reconstruction of what came before. Some of France’s most creative periods have followed bleak times: the flowering of painting, literature and science after its defeat in the Franco-Prussian war, or of the avant-garde in art and fashion after the horrors of the first world war. Christian Lacroix, a French designer, points out that war and revolution in France have been times of “creative reinventions, the moment new forms of luxury come into play”.


Perhaps the French need dissatisfaction and thrive on doubt. “There is a certain pleasure taken in being unhappy: it’s part of an intellectualism of French culture,” says Ms Senik. “Malaise and ennui are to France what can-do is to America: a badge of honour,” wrote Roger Cohen in the New York Times recently. Pessimism does not preclude pleasure. All that sitting around at pavement cafés, looking fashionably discontented, can be fun. Optimism is for fools; sophisticates know better. Bleak is chic—especially when opening another bottle of Saint-Emilion and reaching for the three-tier cheese trolley.

domingo, 22 de dezembro de 2013

A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril




"O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi desde o primeiro momento presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o meu pai, ao contrário dos irmãos Espírito Santo, apresentava-se como industrial. Mas houve sempre um grande entrosamento entre eles"
Pedro Queiroz Pereira

"Saiba Vossa Exa. que empreendimentos desta grandeza [Sacor] não se fazem com meninos de coro"
António Oliveira Salazar

"O meu pai acreditava na minha capacidade de empreender e de desenvolver e financiou-me um negócio de café que comecei com 20 mil pés e que chegou aos anos 90 com mais de três milhões"
PQP

"O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente…"
PQP

2000 milhões de euros foi o volume de negócios da Semapa em 2012 (1,5 mil milhões de pasta e papel). O Grupo Queiroz Pereira tornou-se líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado

377 milhões de euros foi a quantia que o Grupo Queiroz Pereira encaixou no final de 2005 com a venda da Enersis ao fundo australiano Babcock&Brown, que acabou por colapsar com a crise de 2008

"O problema não é os ricos terem muito dinheiro, o problema está na utilização que dão aos recursos ao seu alcance. Uns usam o dinheiro para produzir mais desenvolvimento, mais postos de trabalho e arriscam; outros dizem: já tenho o meu, quero lá saber."
Manuel Queiroz Pereira

"Não tem que ver com os automóveis, é da minha natureza, da capacidade de formar equipas, de ter sócios, da vontade de empreender. Nunca pus em risco os activos do grupo, o que seria extremamente arriscado era não ter feito nada"
PQP




A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril
CRISTINA FERREIRA in Público

As batalhas entre accionistas são o terror de qualquer grupo empresarial e as mais mortíferas são as que ocorrem entre irmãos de sangue. E esta foi uma guerra típica familiar. Uma guerra entre “tios”, irmãos e primos Queiroz Pereira. Uma guerra sem diabos nem santos. Uma guerra de interesses e onde o combustível, como quase sempre, foi o dinheiro. Mas os conflitos à volta do Grupo Queiroz Pereira têm vários anos e reflectem um outro dado: a ascensão e a perda de influência do Grupo Espírito Santo. Um núcleo importante do poder económico privado com posições em grandes empresas e que a dada altura acreditou (diz-se) que poderia controlar a Semapa, hoje o maior grupo industrial português.

Quando os problemas financeiros, as polémicas — algumas associadas a investigações policiais — e as lutas pelo poder dentro do Grupo Espírito Santo se tornaram evidentes, Ricardo Salgado deixou de ter condições para se manter no Grupo Queiroz Pereira (dono da Semapa, que agrupa a Secil, Portucel, Soporcel e Inapa). E assinou um pacto de separação de águas com Pedro Queiroz Pereira (PQP), pondo fim a uma parceria empresarial de oito décadas. Ricardo Salgado, em processo de sucessão, já não se podia dar ao luxo de ter um corpo estranho (o próprio PQP) na cúpula do Grupo Espírito Santo, com 7% do capital (e ainda muita informação, poder arbitral e capacidade de influenciar). A Revista 2 revela agora os detalhes dos bastidores desta disputa que se travou entre os dois grupos — uma história cheia de incidentes e omissões.

Há 12 anos, Pedro Queiroz Pereira, presidente do Grupo Queiroz Pereira (GQP), interrogou Ricardo Salgado sobre quem eram os verdadeiros donos da Mediterranean (uma sociedade luxemburguesa que agregou três offshores, com presença forte na Semapa) e que o BES representava. O industrial conta que sempre ouviu a explicação: “Pertencem a investidores que não querem ser conhecidos, são discretos.” Não ficou elucidado.

Dez anos mais tarde, a resposta de Salgado continuava a mesma. E dois dias depois de PQP ter recusado nomear um delegado da Mediterranean para os órgãos de gestão das holdings familiares, por desconhecer a sua verdadeira titularidade, o BES assumiu, finalmente, o controlo. Foi a gota de água que fez transparecer a discórdia. Se a acção de Salgado foi táctica ou outra coisa, não se sabe.

Mas na Semapa (com actividade nas áreas do cimento, do papel e pasta de papel e do ambiente, e a jóia da coroa do Grupo Queiroz Pereira) estas movimentações accionistas são conhecidas como “o assalto à diligência”. PQP foi, nos últimos dois anos, o general das tropas anti-“investida” de Salgado, com um lugar-tenente, Fernando Ulrich (à frente do BPI, que detém 10% da Semapa e que assessorou PQP) e um oficial, José Maria Ricciardi (presidente do BES Investimento, BESI, e opositor assumido de Salgado na família Espírito Santo).

Queiroz Pereira acusa Salgado de o ter “iludido” para prosseguir um plano paciente e sistemático para dominar a Semapa, que reconstruiu após a morte do seu pai, Manuel, fundador do Grupo Queiroz Pereira em 1940.

Já os círculos próximos de Salgado garantem que o banqueiro nunca quis mandar na Semapa e procurou ainda, por razões de afinidade histórica, proteger as irmãs Margarida Queiroz Pereira Simões e Maude Queiroz Pereira Lagos. Estas, por sua vez, não vendo os seus interesses particulares salvaguardados, recorreram a Salgado, em períodos distintos do tempo, para se defenderem do irmão.

Há acções judiciais a correr entre todos, mas sem acusações de ilícitos ou de roubos. Os detractores de PQP não lhe contestam o mérito, mas o caminho que escolheu para dominar: não ouviu ninguém, atropelou quem quis. O industrial discorda: nunca adquiriu para si uma única acção do grupo que herdou. E insiste no argumento central: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente…” O Grupo Queiroz Pereira tornou-se líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado. Em 2012, o volume de negócios da Semapa foi de cerca de dois mil milhões de euros (1,5 mil milhões de pasta e papel).

A Revista 2 ouviu os círculos próximos dos intervenientes e personalidades independentes. Apenas PQP, antes de os acordos com o BES e a família terem sido firmados nas últimas semanas, aceitou comentar aspectos históricos do grupo. Já os restantes actores (BES, Maude Lagos e os primos Carrelhas, accionistas minoritários), por intermédio dos seus advogados e assessores, declinaram abordar o conflito que minou uma relação que remonta às primeiras décadas do século passado.

Da fundação à revolução

1937. Datam daí os primeiros contactos entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo. Manuel Queiroz Pereira, filho de Carlos Pereira, accionista do Banco Comercial de Lisboa, cruzou-se com Ricardo Espírito Santo Silva (avô de Salgado e de José Maria Ricciardi), herdeiro do proprietário da Casa Bancária Espírito Santo. As duas instituições funcionavam paredes meias na Rua do Comércio e decidiram avançar para a fusão. “O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi desde o primeiro momento presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o meu pai, ao contrário dos irmãos Espírito Santo, apresentava-se como industrial. Mas houve sempre um grande entrosamento entre eles”, sublinha, 73 anos depois, PQP. Era, portanto, o começo de uma bela amizade… mas com percalços.

Ora, o primeiro desentendimento entre as duas famílias deu-se, na década de 1930, quando Oliveira Salazar decidiu, por decreto, criar uma indústria nacional de refinação e se concertou com Ricardo Espírito Santo numa “parceria-público ou privada”: a Sacor, de capitais públicos e onde o BESCL tinha uma posição, destinava-se a assegurar 100% da refinação e 50% da distribuição de crude. Assim que a Sacor estivesse a funcionar, a capacidade de distribuição da Sonap ia reduzir-se de 40% para 25%. Como a Sonap era detida por Manuel Queiroz Pereira (em conjunto com Manuel Boullosa), o industrial foi surpreendido e não gostou de ver o banqueiro desalinhar dos seus interesses particulares, pois era accionista do BESCL, para além de administrador.
Formado em Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa, com 17 valores, Ricardo Espírito Santo era mais do que banqueiro. Era polifacetado, mecenas, amante de Amália, era ainda um homem de poder e de grande influência política — visitava Salazar todos os domingos à tarde. “Era brilhante, uma figura proeminente que marcou uma época”, enquanto “o meu pai, embora muitíssimo respeitado, era discreto”, considera PQP.

1937. 17 de Maio. Sain o quê? A Manuel Queiroz Pereira, o nome Martin Sain nada dizia, mas a dupla Salazar e Ricardo Espírito Santo vão envolver na construção da Sacor este romeno, refugiado em Paris. Nesse ano, o Estado concedeu alvará à Redeventza, de Martin Sain, para construir em Cabo Ruivo uma unidade de refinação e de distribuição de petróleo.

1939. 1 de Setembro, início da Segunda Guerra Mundial. Visitar São Bento era um direito reservado a um núcleo restrito. O pai de PQP foi ter com Salazar: “O custo da refinaria [Sacor] está a ser pesado e a deixar ‘comissões’ em todo o lado, Martin Sain não é pessoa fiável.” De onde vinha o poder de Sain? Com olhar malicioso, o ditador respondeu: “Saiba Vossa Exa. que empreendimentos desta grandeza [Sacor] não se fazem com meninos de coro.”

1949. A 5 de Março, nas vésperas do renascimento da Europa pós-guerra, nasceu, em Lisboa, Pedro Queiroz Pereira, cinco anos depois de Ricardo Salgado (Cascais). Um período que coincidiu com a primeira grande vaga de industrialização do país (obras públicas, barragens, electrificação), a que se seguiram os planos de fomento. A receita é sempre a mesma. Para promover a modernização da economia, Salazar criou o Banco de Fomento Exterior que entrou no capital da Sodim (hoje da família Queiroz Pereira) para construir, em Lisboa, o primeiro hotel de cinco estrelas. E pediu a Ricardo Espírito Santo que juntasse empresários para levar por diante o plano. Após a morte do banqueiro, em 1955, Manuel Queiroz Pereira ficou encarregue de executar a obra.

1960. Os dois sócios da Sonap, Manuel Queiroz Pereira e Boullosa, estão numa encruzilhada porque defendem estratégias diferentes para a empresa e decidem separar-se. O que, na prática, se traduziu numa grande zanga. Amigo de Manuel Queiroz Pereira, o novo presidente do BESCL, Manuel Espírito Santo Silva, aceitou financiar-lhe a compra da posição de Boullosa, pois estava convencido de que este aceitaria vender a sua parte. Mas com o industrial dos petróleos não se brincava, era mais esperto do que imaginavam. Boullosa meteu-se num avião e foi ao estrangeiro levantar os fundos que lhe faltavam. Acabou por ser Manuel Queiroz Pereira a deixar a Sonap. O volte-face deu sururu na época.

José Roquette, ex-banqueiro do BES e hoje empresário da Herdade do Esporão, tinha na altura 23 anos e acabara de chegar ao BESCL para assessorar tecnicamente o presidente. E ainda se lembra “que era suposto que fosse o sr. Queiroz Pereira a ficar com as acções, pois tinha mais património [do que Boullosa] e o BESCL era o grande banco. Era alguém de peso na administração, muito activo”.

Com a acumulação de capital resultante do negócio da Sonap, o relacionamento entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo vai aprofundar-se. A partir daí, o industrial começou a diversificar os negócios sectorial e geograficamente e investiu não só em África, como no Brasil, o que era invulgar na época, mas ajudará o grupo a resistir fora de Portugal após a revolução.

1970. No poder, Marcelo Caetano procurava vias para liberalizar a economia. “Como havia uma clara intenção de forçar o aparecimento de um concorrente no sector dos cimentos dominado por Champalimaud [dono da Siderurgia Nacional], o Rogério Martins [secretário de Estado da Indústria de Caetano] ficou satisfeitíssimo quando o Queiroz Pereira, com capacidade financeira, requereu a instalação de duas novas unidades”, evoca agora Torres Campos, à época director-geral da Indústria. “Ele [Rogério Martins] queria usar a concorrência para contornar o condicionamento industrial, aprovou com o argumento de que ia quebrar o monopólio do Champalimaud.” E foi assim que a família Queiroz Pereira se envolveu na área dos cimentos, que perdeu com a revolução. Vinte anos depois, PQP voltaria aos sectores da celulose e do cimento, onde a família já tinha estado, ganhando um pouco dos dois.

1971. “Pêquêpê” era amante de ralis e o curso no Instituto Superior de Contabilidade e Gestão estava a ficar para trás. Tinha 23 anos quando foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola, onde se encontrava no 25 de Abril. Pertencia à elite burguesa da época, que circulava entre Lisboa e Cascais. “A casa dos Queiroz Pereira era a melhor do Restelo [vendida à Embaixada do Brasil depois da revolução], sem comparação com nenhuma das outras e eram todas boas”, recorda um ex-vizinho, hoje no mundo dos negócios, que ainda se lembra de que “os filhos Queiroz Pereira tinham ‘bombas’ em casa que nunca estacionavam na rua como acontecia com as restantes famílias ricas”. E acrescentou: “‘Pêquêpê’ era o segundo filho, um enfant terrible, mas encantador com os amigos, a quem, ainda hoje, gosta de proporcionar boas coisas.” Onde uns viam um enfant terrible, outros olhavam para um miúdo determinado. Conta Pedro Roriz, ex-jornalista da área automobilística, que o conheceu no Colégio Militar, com 12 anos, “quando já era um desportista, um excelente jogador de futebol”: “Apesar de ter um estatuto que lhe permitiu começar num plano elevado, agarrou no grupo do pai e tornou-o no maior grupo industrial que para mim é o importante. Não vendeu, não fechou, expandiu. Que importância tem ter sido aventureiro se ao chegar a hora da verdade se superou?”

1973. No final deste ano, se em África o conflito se agudizava, em Portugal verificava-se uma grande aceleração monopolista. Na revista Análise Social, o académico Américo Ramos dos Santos refere no artigo “Desenvolvimento Monopolista em Portugal” que, entre 1968 e 1973, o núcleo do poder económico era formado por 14 famílias, onde pontuavam os nomes Espírito Santo, Mendes de Almeida, Queiroz Pereira. Um espaço de cruzamentos. Em 1972, PQP casou-se “para a vida” com Maria Rita Mendes de Almeida, de quem tem três filhas [Filipa, Mafalda, Lua].

Nesse ano, em retaliação ao apoio norte-americano a Israel, os Países Exportadores de Petróleo aumentaram em 300% o preço do petróleo. As bombas de gasolina, em Portugal, encerravam ao fim-de-semana. Um dos capitães de Abril, Sousa e Castro [13/3/2000], contou ao PÚBLICO: “Nas vésperas do 25 de Abril, assisti, no supermercado militar, a uma bulha entre clientes para ver quem chegava primeiro às prateleiras.” “Um factor que ajudou a acelerar a Revolução”, explicou.

Relançamento do grupo

1974. 24 de Abril. O que em Janeiro valia uma nota de 100 escudos custava agora 133. Na madrugada de 25, na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, os relatos contam que o capitão de Abril Salgueiro Maia discursou: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! […] Quem não quiser sair fica aqui.” O batalhão marchou para a capital. Manuel Queiroz Pereira assistiu em casa, em Lisboa, à rendição de Caetano no Largo do Carmo. Manuel Alfredo de Mello, filho de Jorge de Mello do Grupo CUF, estava, então, na dupla condição de militar e filho de industrial [PÚBLICO 13/3/2000]: “Pensou-se que a mudança se reflectiria sobretudo nas saídas de Américo Thomaz e de Caetano. E as declarações de Spínola indicavam que a descolonização ocorreria progressivamente, não se prevendo para a economia grandes rupturas.” Puro engano.

22 de Agosto. Eis um papel que o povo não imaginaria um ano antes: os ricos sofriam. Excluídos do coração do novo poder, os homens do Estado Novo procuraram refúgio na Confederação da Indústria Portuguesa para se reorganizarem como força viva. Só que a revolução andava a passo de galope e, por esses dias, o Copcon foi ao Ritz buscar Manuel Queiroz Pereira, detendo-o na Polícia Judiciária, até ao dia seguinte. Foi libertado por indicação de Spínola, de quem era amigo. Pouco depois, partiu para Paris, onde se manteve até 1982, entregando ao sucessor natural, o filho mais velho, Manuel, a condução dos negócios em Portugal.

Em Outubro, PQP continuava destacado em Angola, quando chegou a Luanda Rosa Coutinho, conhecido por “almirante vermelho”, dada a proximidade ideológica ao PCP. “A ordem era desarmar e nós fazíamos buscas nos musseques com o objectivo de desarmar os pequenos comerciantes portugueses brancos”, evoca agora PQP.

1975. 14 Março. Depois de as chefias e de os gestores dos grupos Mello e Espírito Santo terem sido detidos, a revolução obrigava: foram decretadas as nacionalizações, abrangendo o Grupo Queiroz Pereira. Na imprensa, na televisão e na rádio, circulavam notícias de sabotagem económica, de fuga de capitais para o estrangeiro. PQP que, entretanto, voltara para Lisboa, estava na sede da Cimianto (hoje Semapa), na Avenida Fontes Pereira de Melo, quando chegou a 5.ª Divisão das Forças Armadas. “Levaram-me a minha casa com ordem do Otelo [Saraiva de Carvalho] para abrir o portão, à frente do qual tinham estacionado três viaturas para impedir a saída dos tanques que diziam estar lá escondidos”, revive PQP, quase 40 anos depois.

O jovem movimentava-se em terreno inimigo e percebeu o sentido da metáfora: “As pernas tremem como varas verdes.” Foi o que sentiu ao subir a rampa do jardim, seguido por um cabo que lhe tocava na espinha com o cano de uma metralhadora Uzi: “Nem me digas que o teu pai não roubou tudo isto ao povo, senão é que descarrego mesmo.” Durante três horas, insistiram que “eu estava a esconder as armas para fazer a contra-revolução”. Quando entraram na garagem, “viram uns pneus próprios de ralis, parecidos com os usados pela Jeep, e perguntaram-me: ‘Onde estão os ‘Jeeps’ da contra-revolução?’” Explicou-lhes: “Eu e o meu irmão participamos em ralis. E identifiquei-me como o ‘Pêquêpê’. O clima aliviou. Os cabos viraram ‘uns tipos porreiros, epá Pêquêpê...’ e já não revistaram mais nada.”

O Brasil adivinhava-se o passo seguinte. “O meu pai acreditava na minha capacidade de empreender e de desenvolver e financiou-me um negócio de café que comecei com 20 mil pés e que chegou aos anos 90 com mais de três milhões.”
Final de 1975. No estrangeiro, a cúpula do GES tentava reagrupar-se. Manuel Ricardo vai procurar o sogro, Fernando Moniz Galvão, e o velho aliado Manuel Queiroz Pereira. “Depois do 11 de Março, o sr. MQP já estava fora e tinha as bases financeiras de suporte para se manter no estrangeiro, mas também para garantir ao GES, entre 1975 e 1984, resistir fora de Portugal e manter-se numa posição que lhe permitiu regressar mais tarde”, sublinha José Roquette.

1976. Manuel Ricardo Espírito Santo perguntou ao industrial com que percentagem pretendia ficar no capital da ES Control, a “mãe” de todas as holdings do Grupo Espírito Santo. O industrial respondeu: “Por mim, não quero nada. Se vos der jeito, posso ficar com o que entenderem.” E ficou nessa altura com 10,7% da holding, uma posição que vai estar, 37 anos depois, no epicentro das batalhas entre os dois grupos familiares.

Entretanto, fruto das nacionalizações, o Estado assumira cerca de 40% da Sodim (dona do Ritz) e, quando os privados recompraram as acções, Manuel Ricardo Espírito Santo procurou o industrial: “Nós ficámos com a maioria dos activos financeiros que nos ajudou a recuperar, mas o controlo da Sodim deve ficar consigo.”

Já se sabe que Manuel Queiroz Pereira era um homem do Estado Novo. Um dia, um amigo do filho mais velho encontrou-o em Paris e ouviu o desabafo: “Não vale a pena investir em Portugal, aquilo não tem futuro.” Só que o exílio não era forçosamente o paraíso e o industrial nunca cortou o cordão umbilical com Portugal. Já falava no regresso, continuava a ser um capitalista produtivo.

Cada visita de Manuel Queiroz Pereira a Portugal era sentida como um calvário. Um dia disse a Frederico da Cunha, casado como uma Espírito Santo, hoje a trabalhar na Semapa: “‘Venho cá por obrigação, mas não gosto de cá estar, isto atormenta-me. Não gosto de pensar que existem pessoas inteligentes a colaborar com tudo isto.’ Era de uma enorme lealdade aos seus princípios e severo com o incumprimento da ética.” Pertencia a uma geração de valores muito fixos e, por exemplo, morreu sem perdoar a António Spínola o ter assumido o marechalato após o 25 de Abril.

1980. A época, por enquanto, é ainda de escassez de liquidez para a família Espírito Santo, que não tinha reconstruído o grupo. Uma irmã Espírito Santo procurou Manuel Queiroz Pereira para lhe perguntar se estava interessado em adquirir-lhe as suas acções da Sodim. Ele concordou, mas avisou-a: “O máximo que posso pagar é 3500$00 por acção.” Mais tarde, pediu novo encontro com a parceira de transacção. Em causa estava o seguinte: “O Beirão da Veiga [ligado ao Grupo Espírito Santo] telefonou-me porque também quer vender as acções do Ritz. Mas, em vez de 3500$00, pede mais 500$00. Como há três meses te paguei 3500$00, toma lá o cheque com o diferencial.”

1983. Manuel Queiroz Pereira morreu com 77 anos e deixa os quatro filhos surpreendidos com os activos que herdam, nomeadamente em cash. Entre os irmãos Manuel e Pedro Queiroz Pereira, havia uma rivalidade expressa nas corridas de automóveis: “Mêquêpê” era mais veloz do que “Pêquepê”, e mais charmoso do que o mais novo. E era no mais velho que o pai via o garante da perenidade do grupo. Quando morreu, a mãe, Maud (sem e), na altura com 61 anos, entregou-lhe os destinos das empresas. Mas os dois irmãos combinaram repartir entre si responsabilidades. Manuel (com 36 anos) sugeriu a Pedro (com 34 anos) que gerisse os activos industriais (Cimianto, que tinha sido em parte nacionalizada depois do 25 de Abril), enquanto ele se manteria à frente da Sodim (Ritz e negócios imobiliários). O mais novo aceitou.

Naquela discussão, as mulheres estiveram fora da equação. Tal como noutros grupos familiares (Mello ou Espírito Santo), o industrial também não programara as duas filhas Maude e Margarida para serem líderes — o que pode lançar alguma luz sobre as tensões que mais tarde se vieram a verificar entre irmãos. Um colaborador do pai recorda uma frase que terá ouvido: “Dizia que não gostava de ver a Maudezinha e a Margarida, que eram novas e vistosas, aparecerem na empresa de mini-saia, porque desorientavam o pessoal.”

As irmãs não ficaram quietas. Depois de um braço-de-ferro, travado na década seguinte, Margarida vendeu as suas acções na Semapa e foi lançar empresas. A mais velha, hoje com 63 anos, continuou ao lado de Pedro. Ao Expresso [12
2013], Joana Lemos, a sua assessora de imprensa, também ela ligada aos desportos motorizados, esclareceu recentemente, já depois de os dois irmãos terem firmado o acordo: “Maude trabalhou ao lado do irmão, patrocinou a sua gestão e contribuiu para a construção do grupo tal como existe hoje.” Em Londres, onde vive actualmente a herdeira, entretanto separada do empresário João Lagos, mais do que “mágoa”, os amigos asseguram que o sentimento é de “injustiça”.
1992. Tal como no Grupo Queiroz Pereira, com a morte do patriarca, também no Grupo Espírito Santo, com a morte de Manuel Ricardo Espírito Santo, se abriu um novo ciclo. A família elegeu Ricardo Espírito Santo Salgado, que será o artífice de uma estratégia sustentada numa rede empresarial complexa. A partir de holdings sediadas na Suíça e no Luxemburgo, as operações do grupo invadem zonas nevrálgicas da economia.

Fontes próximas do presidente da Semapa — o activo mais relevante do Grupo Queiroz Pereira — recordam que nos anos 1990, e apesar da presença do GQP no GES, “quando o Ricardo Salgado formou a primeira administração do BES não convidou Pedro Queiroz Pereira, optando por ir buscar outros empresários”. O que foi lido nos círculos próximos do presidente da Semapa como uma desconsideração não esquecida.

Construir um grupo industrial estava a tornar-se uma fixação para PQP, na altura com 43 anos. E quando, em 1993, foi constituída a Semapa, já tinha em vista participar na privatização da Secil. “Ele [PQP] chegou do Brasil com ganas de reconstruir o grupo, muito na imagem do pai, a quem citava como seu inspirador”, observa José Manuel Galvão Teles, o advogado que o apoiou nesse período. Quando o Governo anunciou a venda da Secil, não hesitou. Numa primeira fase, o irmão Manuel, mais reservado, levantou questões, mas acabou por aceitar. E se os irmãos Pedro e Maude queriam dar um passo em frente, a mais nova, Margarida, não se convencia [Expresso 1995].

1993. O Grupo Queiroz Pereira está prestes a sofrer o seu segundo rombo que levou a nova mudança de liderança. Um dia, durante uma reunião de trabalho para preparar as obras de reformulação do Ritz, Manuel, a quem tinha sido diagnosticada uma leucemia e que estava a ser acompanhado num hospital em Paris, recebeu um telefonema a informá-lo de que PQP era compatível para o transplante e que devia partir imediatamente. Mas não vai resistir à intervenção, e a 4 de Março morreu na capital francesa.

A mãe Maud voltava a estar perante o dilema: a quem entregar a chefia do grupo cujo controlo o marido quis deixar aos filhos, seus continuadores? A uma equipa profissional (family office)? Mas como PQP mostrava empenho, Maude aconselhou a mãe a confiar a gestão ao irmão, o que a deixa hoje com amargos de boca. A irmã Margarida debatia-se com o problema: tem 20% das holdings do grupo — Cimipar, Cimigest e Sodim — mas não tinha comprador. Só os irmãos podiam estar interessados. A família pediu-lhe paciência. Ela deu-lhes 15 dias. Margarida tinha então 40 anos e pressa. O advogado Carlos Adrião Rodrigues surgiu, pouco depois, com acções das holdings em seu nome, a convocar assembleias gerais e a gerar burburinho. Quando lhe perguntavam por que não vendia, resistia: “Estou muito interessado nos cimentos.” Anos depois, Margarida informou os irmãos de que tinha recomprado a posição a Adrião Rodrigues.

1994. Com a privatização da Secil a rolar no mercado, o industrial procurou Eduardo Catroga, ministro das Finanças. E apresentou-se com o carimbo de garantia de idoneidade, acompanhado de dois colaboradores da Semapa, Frederico da Cunha e Alberto Falcão, ex-colegas de Catroga no grupo Mello. O ex-ministro relata à Revista 2 o que ouviu: “[PQP] Veio assegurar-me que estava a fazer todos os esforços para conseguir uma engenharia financeira que lhe permitisse disputar a Secil.” Catroga respondeu: “Vejo com bons olhos, pois a lei das privatizações define que o processo deve contribuir para fortalecer os grupos portugueses.”

A meio do negócio, a irmã Margarida apareceu a levantar obstáculos, conforme divulgou então o semanário Expresso. Catroga lembra-se: “Pedro pediu para voltar a falar comigo para garantir que, apesar do conflito com a irmã, tinha a engenharia financeira praticamente montada e que não seria isso que o impediria de adquirir a Secil.”

19 de Abril. Com a privatização concluída, PQP está em condições de arrancar com a primeira vaga de desenvolvimento do grupo pós-25 de Abril. Venderá, pouco depois, 49% da Secil à CRH (grupo irlandês de materiais para construção) para se capitalizar. Mais tarde, vai querer recomprar as acções, e entrou numa bulha com os irlandeses. Em 2011, para recuperar o domínio da Secil, por sentença de um tribunal arbitral, PQP teve de pagar 574 milhões de euros à CRH.

O primeiro stress entre Pedro Queiroz Pereira e Ricardo Salgado remonta a meados da década de 1990. Uma das cláusulas do sindicato bancário (grupo de 11 bancos que financiaram PQP na compra da Secil, liderado pela Caixa Geral de Depósitos e pelo BES) impedia os accionistas da Semapa, com acções hipotecadas aos bancos credores, de as venderem até o empréstimo ser liquidado.

O BES tinha uma posição no grupo. “Três meses depois do acordo, Ricardo Salgado mandou transferir as acções para os fundos de investimento geridos pelo banco e que pertencem aos clientes”, conta PQP. “O sindicato bancário podia ter-nos exigido o pagamento integral do empréstimo, uma vez que tinha sido violada uma cláusula do contrato”, acrescenta. O que disse Salgado? “Que se tratava de um movimento sem importância, pois preferia ter a posição da Semapa em fundos de investimento geridos pelo BES.” Ou seja: o banco não aplicava fundos directamente e mantinha poder de decisão.

2000. Este foi um ano em que todos gostavam de ter Ricardo Salgado como amigo. Com os canais de liquidez oleados, o BES estava a beneficiar de uma época de prosperidade e tornava-se um núcleo importante do poder económico privado, com influência na sociedade e no Estado. As forças políticas PS, PSD, PP sempre conviveram bem com o BES, aí recrutando governantes (três exemplos: os ex-ministros da Economia Manuel Pinho e António Mexia, e o social-democrata Miguel Frasquilho). Em 2012, ao PÚBLICO, depois de ter apoiado em simultâneo Sócrates e Passos Coelho, o banqueiro justificou-se: “O BES relaciona-se com todos os partidos e limita-se a ter um relacionamento institucional com os governos.”

Assistiu-se nesta fase à construção de posições do banco em grandes empresas como a PT e a EDP (acções que agora tem estado a alienar). Tudo isto a par e passo com os negócios em Angola, em áreas estatais, via Escom (uma holding instrumental do GES, que há dois anos está em processo de venda ao Estado angolano). Data também desse período a conexão do BES aos donos da Ongoing — Nuno Vasconcellos e Rafael Mora —, instrumentos de uma estratégia de poder.
Os jornais falavam, então, em mexidas nos bastidores para entregar à Teixeira Duarte (TD), que já possuía 18%, o controlo da Cimpor. Mas PQP não andava distraído e surpreendeu ao aliar-se à suíça Holcim para lançar uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a cimenteira portuguesa. No dia da OPA, informou o BES de que seria o espanhol Banco Santander o líder do sindicato bancário, mas que salvaguardara para o BES a posição de co-líder. E justificou-se dizendo que os bancos portugueses não tinham balanço para o financiar. No BES, o acto de “independência” de PQP foi lido como traição.

Quase seis décadas depois da aliança entre Salazar e Ricardo Espírito Santo, na Sacor, PQP viu a cena repetir-se. O poder isolava-o. Havia sinais de movimentações partindo do ministro das Finanças Joaquim Pina Moura para que Ricardo Salgado encabeçasse a resistência à OPA de PQP sobre a Cimpor. Verdade ou imaginação? O BES surgiu, pouco depois, a apoiar a francesa Lafarge na compra de 17% da cimenteira nacional, o que contribuiu para a OPA ser travada.

2001, 31 de Dezembro. Foi num quadro de consolidação da influência do Grupo Espírito Santo na economia portuguesa que se vão dar, daqui em diante, várias transacções à volta do Grupo Queiroz Pereira. Nesse ano, o BES elevou o capital em 500 milhões de euros, com as acções a negociarem-se a 14 euros cada. A herdeira mais nova de Manuel Queiroz Pereira não tinha, evidentemente, digerido o conflito com os irmãos. No restrito mercado da banca de investimento, falava-se à boca pequena que, por troca das acções das holdings do Grupo Queiroz Pereira, a irmã mais nova, Margarida, assumira cerca de 2% do BES. No meio, havia crédito da instituição. Uma operação de 30 milhões. Por enquanto, ainda nada se saberá.

2002. Suspeitas fundadas. Por carta, Margarida comunicou aos irmãos que vendera as suas acções, sem revelar a identidade do comprador. Daí a alguns dias, o BES surgiu, em nome de terceiros, a representar a Gaunlet, a Allord e a Relcove, que tinham adquirido as posições da herdeira mais nova.


Uma das rotinas dos parceiros empresariais são as reuniões periódicas. Numa delas, logo a seguir, PQP questionou Salgado sobre o verdadeiro interesse das três offshores na Semapa, ao que foi esclarecido: “Disse que não estavam nem vendedoras, nem compradoras, nem tão-pouco queriam tomar posição estratégica no nosso grupo.”

2004. Agora, era a Portucel/Soporcel que aparecia na mira da Semapa. Pela frente, na privatização de 30% da empresa, PQP tinha Belmiro de Azevedo, com 29%. Sabendo do passado do engenheiro em matéria de confrontos, o industrial quer evitar desentendimentos. “O eng. Belmiro de Azevedo disse-me que não ia à operação e eu pedi-lhe se ele me vendia as acções, o que acabou por fazer”, conta agora PQP. A compra de 60% da Portucel dará origem ao segundo salto de crescimento da Semapa após o 25 de Abril.

2005. Bancos, seguradoras, fundos de investimento giravam, agora, em roda livre. Para o ex-governador do Banco de Portugal Jacinto Nunes, “o sistema financeiro, em especial o anglo-saxónico, entrou numa coboiada que permitiu o endividamento que deu a bolha que estourou em 2008”. Foi precisamente a um fundo australiano artificialmente capitalizado, o Babcock & Brown, que, antes de o ano terminar, PQP vendeu a Enersis, uma start-up criada em 1998 dentro da Secil. Um negócio que lhe rendeu uma mais-valia de 377 milhões de euros. Quatro anos depois, o Babcock & Brown faliu e arrastou para o fundo os pensionistas australianos.

21 de Dezembro. Oito meses depois da eleição como primeiro-ministro, na agenda de José Sócrates entrou o tema PQP. Circulavam rumores sobre a possível construção da fábrica da Portucel no estrangeiro, o que o levou a convidar o industrial para um pequeno-almoço em São Bento. Eram 8h da manhã quando entrou na residência oficial do primeiro-ministro, acompanhado de um dos seus braços-direitos, José Honório. Tinha à espera um batalhão de assessores, incluindo o ministro Manuel Pinho, e o presidente do ICEP, Basílio Horta. O que pode haver de mais convincente?

PQP lembra como Sócrates foi direito ao assunto: “Dizem-me que quando comprou a Portucel se obrigou a fazer a fábrica em Setúbal.” Ele contestou: “Se lhe dizem isso, então dizem-lhe mal, sr. primeiro-ministro. Mas diga-me onde consta, pois quero cumprir com as minhas obrigações.” Em simultâneo, o industrial confirmou que “a fábrica podia ir ou para a Alemanha ou para o Brasil”. Sócrates não gostou do que ouviu e esgrimiu o argumento extremo: “Se não fizer cá a fábrica, eu coloco em causa a privatização.” PQP não resistiu, lançou a ameaça do tribunal: “Se preferir essa via, daqui a 15 anos encontramo-nos a ver quem tem razão.”

O industrial questionou a audiência: “Porque hei-de ficar em Portugal, se posso estar na Alemanha, no coração do consumo?” Quem esteve presente assistiu à cena. José Honório avançou com uma lista de exigências com 49 pontos. “Para a Auto Europa, o Estado fez um porto e a Portucel, enquanto exportadora líquida, até é mais importante. A nova fábrica dará origem à saída diária de 500 camiões de contentores. Mas as estradas de Mitrena são estreitas, sem condições para escoar a mercadoria.”

Sócrates insistia na unidade em Setúbal. “Se o sr. primeiro-ministro sentir coragem para dobrar as forças vivas, eu farei aqui a fábrica.”

Já fora de São Bento, PQP deu indicação ao colaborador para mudar a agulha do investimento para Portugal. Oito anos depois, diz PQP, “é verdade que Sócrates não cumpriu os pontos todos, mas o que me motivou foi ver a grande vontade dele em que a fábrica ficasse cá e em resolver os obstáculos. Subsídios? Recebia em qualquer dos lados”.

PQP afirma-se como “o industrial” português

2006. Este foi um ano em que os lucros da Semapa recuaram de 164,3 milhões (em 2005, a venda da start-up Enersis gerou uma mais-valia substancial) para 91,3 milhões. Mas os sete executivos da Semapa receberam 18,199 milhões de euros, ou seja, uma média de 2,6 milhões por cabeça. Uma medida que acabou por gerar controvérsia.

2007. Muito antes de PQP e Maude entrarem em litígio, já os primos Carrelhas (filhos de uma tia de PQP), minoritários nas holdings familiares, tinham desencadeado as hostilidades. Carlos Pardal (casado com uma herdeira Carrelhas) questionou, entre outras coisas, as orientações do presidente do grupo, nomeadamente devido às elevadas remunerações aos gestores. Ora, os investidores minoritários vivem o eterno drama: não têm veleidades de chegar ao poder para impor caminhos favoráveis (dividendos, bónus, nomeações). E ou vendem ou são bem remunerados. A estratégia de PQP passava por não distribuir o grosso dos dividendos pelos accionistas, retendo-os nas empresas (Portucel e Secil). Uma fonte do sector argumentou que “um dos problemas dos accionistas é quererem garantir dinheiro imediato, o que é legítimo, mas não olham para as estratégias a longo prazo”. Ainda assim, um operador de bolsa diz que “quem entrou no início na Semapa tem tido um retorno médio anual de 20%”.

Para quem acompanhou as lutas dentro da Semapa, foi em meados de 2007 que começou a ser equacionado um novo capítulo de confronto. PQP voltou a tentar apurar quem se escondia por trás das três sociedades representadas pelo BES. Porém, chegar à verdadeira titularidade de qualquer offshore é como procurar uma agulha num palheiro. A sede do BES, na Avenida da Liberdade, no 15.º piso, onde Salgado tem gabinete, era o ponto de encontro semestral. Foi aí que PQP lhe transmitiu a vontade do seu grupo em adquirir as acções detidas pela Gaunlet, a Allord e a Relcove.

Segundo o industrial, o banqueiro disse nada poder fazer, pois as acções não pertenciam ao BES, que era o mero gestor, e os proprietários não estavam vendedores, nem queriam ser conhecidos. A partir daqui, há novos registos de contactos, mas até haver uma clarificação os dois vão continuar a brincar ao jogo do gato e do rato.

Antes do fecho de 2007, as três offshores juntaram-se na sociedade luxemburguesa Mediterranean. Salgado não baixava a guarda. PQP invoca que ele lhe repetiu que “a Mediterranean pertencia a investidores ingleses e noruegueses”. As evasivas de Salgado deixavam o industrial da Semapa “nervoso” e vão contribuir para o conflito que vai estourar daí a quatro anos.

2008. Entretanto, os sobrinhos Manuel e Matilde, filhos do irmão mais velho Manuel, vão afastar-se das três holdings familiares, vendendo as suas acções e entregando a gestão da fortuna a um family office. Mas tornam-se accionistas directos da Semapa e da Portucel, onde se fazem representar por um executivo, Vítor Gonçalves. “O Pedro tem sido bom para os garotos [os sobrinhos], de quem gosta e a quem procurou proteger os interesses, mesmo quando, na família, tentaram voltá-los contra ele”, refere um amigo dos irmãos Queiroz Pereira, que declinou identificar-se, por não querer tomar partido no diferendo familiar. E lembrou: a 5 de Março de 1993, “dia em que o irmão Manuel foi enterrado, em Lisboa, é o dia em que o Pedro e o sobrinho Manuel fazem anos”.

2009. 6 de Novembro é uma data que PQP dificilmente esquecerá, pois representou a sua consagração pública como “o industrial” português. Nessa manhã, o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva estava em Setúbal a participar na inauguração da nova fábrica da Portucel/Soporcel e preparava-se, também, para condecorar o patrão da Semapa com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Industrial. Num discurso comovido, perante o Presidente e os colaboradores, PQP assumiu-se como o vértice da pirâmide: “Sou eu que a recebo [condecoração], mas ela é oferecida a todos os meus colaboradores, entre eles, o Carlos Alves e o José Honório.”

Do pai, PQP reteve: “O problema não é os ricos terem muito dinheiro, o problema está na utilização que dão aos recursos ao seu alcance. Uns usam o dinheiro para produzir mais desenvolvimento, mais postos de trabalho e arriscam; outros dizem: já tenho o meu, quero lá saber.” Conclui: “Eu não sou assim.” “Hoje, se o pai ressuscitasse, tirava o chapéu ao filho mais novo, em quem nunca acreditara”, refere agora um ex-ministro do pós-25 de Abril que se cruzou com o industrial. E remata: “Ele reconstruiu o grupo com bom senso, aproveitando as oportunidades e rodeando-se dos melhores.”

O BES/GES era uma peça importante da engrenagem e, entre 2009 e 2012, no meio de grande confidencialidade, tornou-se um accionista do Grupo Queiroz Pereira (sustentado num esquema complexo de três holdings, Cimipar, Cimigest, Sodim, que se cruzam entre si com o mesmo objectivo: a Semapa geradora lucros) com maior peso do que os irmãos Maude (8%) e Pedro (8%), mas não da mãe Maud, aliada de PQP. Naquele período, o GES reforçou a sua presença na Cimigest (de 20% para 40%) e na Sodim (20%), as únicas onde estava presente, o que lhe permitiu dominar indirectamente cerca de 20% da Semapa. Um dos “vendedores” foi Joe Berardo, mas o movimento derivou da execução de dívida ao BES.

2011. Antes de o ano terminar, PQP comunicou aos accionistas da Cimipar (onde o BES não estava e que era detida em 40% por PQP, 40% por Maude Lagos e 20% pelos Carrelhas) que ia alienar 10% da Cimigest à Sodim (posição contabilizada em 36 milhões). A razão? A Cimipar (capital social de um milhão) estava falida, com dívidas ao BES e a PQP e a Maude de 30 milhões de euros. Uma transacção que vai mudar a relação cordial entre investidores. Mas passou um ano até que o BES, Maude e os Carrelhas argumentassem que os equilíbrios internos tinham mudado.

Estala a discórdia

2012. Em Janeiro, o presidente da Semapa executou a venda por 17 milhões de euros e pagou dívida ao BES. A transacção foi aprovada por todos os administradores das holdings e teve luz verde em AG. “O Pedro pensou: tenho de controlar o meu grupo, que herdei do meu pai e que expandi em mais de 90% e tenho de ‘afastar’ toda a gente”, diz um dos intervenientes do conflito. “E foi tomando decisões sem ouvir ninguém. Mas sem pagar o prémio de controlo.” Uma tese que as hostes de PQP contestam: “O industrial tem desde sempre a mesma posição accionista da irmã, a Cimipar estava falida e a operação foi aprovada pela Maudezinha.”

Nos primeiros meses do ano, o industrial continuava determinado em descobrir quem estava por trás da Mediterranean. A irmã Maude colocava questões e ele temia, agora, ser surpreendido com uma acção hostil dos seus accionistas (BES, Maude e Carrelhas). Semanas antes de a Cimigest eleger os novos órgãos sociais (onde a sociedade luxemburguesa estava representada pelo BES), PQP procurou Salgado: “Pergunto-te uma última vez: quem são esses senhores da Mediterranean que representas e que nós não conhecemos?” O banqueiro repetiu o que sempre lhe dissera e PQP pediu-lhe que fizesse chegar aos “clientes” uma oferta. Ora, o banqueiro é redondo a falar, binário a actuar: se interessa ao BES, faz, se não interessa, deixa cair. Para mostrar que a Mediterranean não estava vendedora, explicava: “Eles não querem receber propostas, nem ser conhecidos, são discretos.” Aos ouvidos do parceiro industrial, o disco estava riscado.

As palavras de pouco servem sem gestos persuasivos. O episódio faz parte dos processos judiciais a correr no quadro da guerra accionista. A meio de 2012, semanas antes da data da reunião magna da Cimigest, PQP começou a deixar cair sinais de que não reconduziria Rui Silveira, o gestor do BES, indicado por Salgado para representar a Mediterranean. Antes do encontro, o BES comunicou o desejo: a Mediterranean queria nomear um delegado para a gestão. PQP reagiu à patada. “Não conheço os senhores da Mediterranean e sem os conhecer, não meto ninguém no board.” O recado estava dado.

Junho de 2012. O mistério ia ser esclarecido. Nas vésperas da AG da Cimigest, o GES comunicou, então, que ia adquirir a Mediterranean. O industrial propôs-se formalizar uma oferta, em nome do grupo, e dirigiu uma carta ao líder do GES, António Ricciardi. Pouco depois, Ricciardi notificou o mercado de que a Espírito Santo Resources (holding para os negócios financeiros) tinha assumido a Mediterranean.

Hoje, PQP não perdoa a Ricardo Salgado o pecado capital de lhe ter “escondido”, ao longo de dez anos, que o BES era o verdadeiro proprietário das sociedades accionistas, o que “se traduziu”, do seu ponto de vista, “num plano” secreto para dominar a Semapa. Por seu turno, os círculos do banqueiro alegam que a suposta “ocultação” partiu de um “pedido da Margarida”, isto, apesar de, em 2003, a herdeira ter informado os irmãos de que deixara as holdings familiares. Do lado do BES, “a tese conspirativa de PQP” sobre a eventual tentativa de domínio da Semapa é contestada: “Se fosse assim, porque é que Manuel Fernando Espírito Santo lhe vendeu acções da Sodim?” A isto uma fonte da Semapa encolhe os ombros.

Final de 2012. Depois de ter sido o único grande banco a dispensar a recapitalização com verbas públicas, o BES começava a dar sinais de vacilar. O impacto da crise financeira e económica prolongada, as exigências regulatórias e as orientações seguidas na instituição, com excesso de exposição ao imobiliário, tiveram consequências: aumento do crédito malparado, maiores imparidades (perdas potenciais). O cenário impediu Ricardo Salgado de ser “generoso” com a família e obrigou-o a desacelerar os financiamentos às empresas do grupo. Tal como o PÚBLICO noticiou a 18 de Setembro, entre 2008 e 2013, em alternativa ao apoio do BES, a gestora de fundos do grupo recorreu aos clientes da instituição para financiar em larga escala (2,2 mil milhões de euros) a área não financeira através de dois fundos, o ES Liquidez e o ES Rendimento. Uma via polémica. Já este mês, a 12 de Dezembro, o The Wall Street Journal veio dar grande ênfase ao tema na primeira página do seu site.

Há uma certa unanimidade na interpretação: Ricardo Salgado esteve sempre ao lado das duas irmãs de PQP, alegando uma parceria histórica entre as duas famílias e uma relação pessoal. A cumplicidade manteve-se quando Maude Lagos entrou em rota de colisão com o irmão. E no último mês de 2012, Salgado e Maude assinaram um acordo de tag along (um mecanismo de protecção dos investidores minoritários), que garantiu a cada uma das partes que, em caso de venda das suas acções da Cimigest e da Sodim, a outra teria o direito de acompanhamento ao mesmo preço e em idênticas condições.

A fronteira entre a obsessão e a necessidade de conhecimento pode parecer, às vezes, um pouco turva. O industrial acreditava numa coisa: que no seu “gabinete” Ricardo Salgado tinha uma aliada, a sua irmã Maude Lagos. Dentro da Semapa, à volta de PQP, fala-se no “assalto à diligência”. Sendo accionista do GES (7%), o industrial sabia das divisões internas e que a família Espírito Santo sofria o impacto da mudança do ciclo económico. E preparou-se para um braço-de-ferro. Por essa altura, realizou-se uma reunião no conselho superior do GES onde PQP participou (apesar de não integrar a estrutura) e que estabeleceu a normalização do relacionamento entre os dois grupos.

2013. Nos primeiros meses do ano, são desencadeadas negociações. Salgado sugeriu, então, um pacto parassocial, onde reconhecia a liderança de PQP na Semapa, mas queria ter decisão em matérias estratégicas. O plano foi chumbado. Em contrapartida, PQP avançou com uma oferta de aquisição das acções do GES nas holdings familiares, que este recusou. O BES exigiu-lhe um prémio de controlo.

Mas a capacidade de manobra de Salgado estava diminuída e a partir daqui PQP vai jogar os trunfos todos. É corredor de automóveis, talvez não se importe, por vezes, de passar fora da curva, de ir até ao limite do risco. Uma tese que recusa com irritação: “Não tem que ver com os automóveis, é da minha natureza, da capacidade de formar equipas, de ter sócios, da vontade de empreender. Nunca pus em risco os activos do grupo, o que seria extremamente arriscado era não ter feito nada.” Insiste sempre: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente, sem pedir um único euro aos accionistas, nunca houve um aumento de capital. Fiz tudo com o pêlo do cão [e dívida], com o que sobrou do 25 de Abril.”

Entretanto, a Cicleleader, sociedade dos primos Carrelhas, enviou uma carta ao industrial com um conjunto de questões sobre a operação do ano anterior, de venda, pela Cimipar, de 10% da Cimigest à Sodim. A resposta foi enviada em 15 dias. Só nessa altura é que os Carrelhas perceberam que a operação mudara a configuração accionista. Depois disso, formou-se uma “aliança” de interesses entre o BES, Maude e Carrelhas. A guerra com PQP tornou-se inevitável. Os momentos que se vão seguir são de grande litigância: a troika accionista disparou com 14 providências cautelares a pedir a anulação da venda das acções da Cimigest à Sodim.

Foi num quadro de aceleração que a 24, 28 e 29 de Maio , se sucederam as AG inflamadas no Grupo Queiroz Pereira e que resultaram na destituição de Maude Lagos dos órgãos sociais e no seu afastamento da Sodim, onde geria o Ritz e o Hotel Villa Magna, em Madrid. Em paralelo, continuavam as negociações que serão acompanhadas até ao final, do lado do BES e de Maude, por Francisco Cary, do BESI, e pelo advogado Luís Cortes Martins. Maude Lagos foi também assessorada por Gabriela Martins. Por seu turno, PQP atravessou-se com Fernando Ulrich (o BPI tem 10% da Semapa), que há quase duas décadas mantém com Salgado (de quem é, aliás, primo) uma relação distante que resultou de uma concentração falhada entre os dois bancos. Ricardo Pires e Miguel Ventura, colaboradores de PQP, acompanharam Ulrich. Já os Carrelhas indicaram o advogado Tito Arantes Fontes.

Julho. No dia de aceitação do grau de Doutor Honoris Causa, entregue pelo reitor do ISEG, Ricardo Salgado surgiu a mostrar grande respeito pela família Queiroz Pereira e pelas tradições “como parte do código genético do GES”.
Setembro. A comunicação social é por vezes usada como arma. Os adversários da Semapa, no GES, alegam que à mesa das negociações o industrial deixou um aviso: “Ou me dão o que eu quero, ou ponho uma equipa a colocar tudo nos jornais.” Inquirida sobre o tema, a Semapa negou-o. Mas todos terão sido “cúmplices” em esgrimir o mesmo argumento da comunicação social.
A 31 de Agosto, os conflitos internos no GQP começaram a ser descarregados no espaço público, depois de as primeiras acções e providências cautelares terem caído nos tribunais. O Expresso noticiou: “PQP é acusado pela irmã Maude de controlar ilegalmente o grupo. Este diz que o GES quer ficar com a Semapa.”

7 de Setembro. Ricardo Salgado estava de visita aos balcões do BES nos Açores quando mandou testemunhos de boa vontade: “O grupo quer ser parte da solução e não do problema.” Só que o BES preparava-se para descer à terra e juntar-se aos outros bancos para divulgar prejuízos (381 milhões de euros).

Outono. As maratonas negociais são um traço das guerras familiares. No Verão, o governador Carlos Costa dirigiu avisos a Salgado para que chegasse a acordo com PQP, de quem recebera mensagens com “muita informação”. E em Outubro, no pico da tensão accionista, o Mercedes topo de gama cinzento metalizado do industrial foi visto a estacionar à porta do BdP. PQP estava acompanhado de um colaborador “carregado” de documentação. Mau sinal. Os dois reuniram-se com o vice-governador Pedro Neves e o director José Queiró, com a supervisão prudencial. Uma fonte da instituição garantiu que do encontro nada transpareceu. Só que, a partir dali, Carlos Costa já não podia ignorar que tinha os dossiers em cima da mesa. O vice-governador chamou Salgado ao BdP a quem pediu esclarecimentos, que este terá dado. O BdP queria impedir que do confronto nascesse uma vulnerabilidade para o sector financeiro. Em paralelo, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, pediu a Eduardo Catroga que colaborasse no consenso.

Nesse período, existiu ao mais alto nível uma preocupação real de que do conflito pudesse resultar uma perturbação muito grave em dois dos maiores grupos portugueses, GQP e GES, com impacto na economia e, por arrastamento, na população. Um risco que não foi perceptível para a opinião pública porque, meses depois, Salgado e PQP assinaram o acordo.

Accionistas celebram a paz

Final de Outubro. Nesta fase, já as hostilidades tinham ultrapassado a mera dimensão da Semapa. Com a ida do industrial ao BdP, o núcleo duro dos problemas de Salgado passou a estar no coração do GES, onde se travava (e trava), em surdina, um combate entre primos direitos. A atitude desafiante de PQP, accionista do GES, com poder arbitral, contribuía para a estratégia anti-Salgado do presidente do BESI. Ricciardi e PQP têm, ainda hoje, uma relação menos infectada e, por vezes, assumem, nos negócios, estilos de actuação de pit bulls. Num contexto de luta de poder pela liderança do GES/BES, a acção de Ricciardi culminou (já depois do acordo entre Salgado e PQP) em declarações públicas de falta de confiança no presidente do banco, isto, horas depois de o Jornal de Negócios ter publicado um trabalho sobre a sucessão de Salgado — “O golpe de Estado ao estado de golpe no GES”. A família percebeu rapidamente que o diferendo, ao ser dirimido à vista de todos, arriscava tornar-se o folhetim do ano. E 24 horas depois retirou-o do espaço público com um comunicado assinado pelos dois primos direitos. Mas é evidente que as movimentações internas continuam e que o BdP está a vigiar o que se lá passa.

Finalmente, o acordo entre Salgado e Queiroz Pereira. O caminho que estava a ser trilhado já não interessava a nenhuma das partes. E beneficiou do “dedo” de Ricardo Abecassis Espírito Santo Silva, amigo de PQP, a viver no Brasil. Dizem que foi o luso-brasileiro que ajudou a desatar o consenso. Mas que foi José Maria Ricciardi quem apareceu a carimbar a paz. Parceiros há 80 anos, os grupos Espírito Santo e Queiroz Pereira selaram um pacto de separação de águas (o BES saiu do GQP e o GQP saiu do GES). Os Carrelhas aproveitaram e saltaram fora. Mas Maude Lagos só apertou a mão ao irmão um mês depois.

Há uma pergunta legítima: sem as divisões accionistas, sem as polémicas (Escom, Submarinos, Sobreiros, Monte Branco, Operação Furacão, Álvaro Sobrinho, escutas telefónicas, venda de acções da EDP, revisão da declarações fiscal por parte de Salgado, escutas a Ricciardi) e sem as contingências financeiras no GES, PQP teria tido margem de manobra para impor a saída do parceiro? Dificilmente. Se o cenário fosse mais favorável, presumivelmente, não haveria guerra interna no GES, os escândalos envolvendo Angola já teriam sido compensados de qualquer maneira. O mais provável é que Salgado ou não fechasse o acordo tão rapidamente ou forçasse PQP a vender as acções ou, ainda, que optasse por ficar na Semapa. O fim dos tumultos entre PQP e o GES, tal como o Expresso já divulgou, implicaram que PQP escrevesse uma carta ao BdP a garantir que as suas dúvidas sobre a má gestão do Grupo Espírito Santo estavam sanadas. E o BdP já pediu esclarecimentos ao BES para saber quais os efeitos patrimoniais do acordo com PQP.

Os mercados financeiros admitem que num futuro não muito distante se possa abrir outro capítulo, quando os três irmãos e os dois sobrinhos forem chamados a lidar com a herança da matriarca, Maud Queiroz Pereira, com 99% da Vertice e 30% da Sodim. De fora do acordo entre os dois irmãos e tal como defendeu Maude Lagos, ficou a Quinta de Vialongo, no Ribatejo, avaliada em muitos milhões de euros e onde cada herdeiro de Manuel Queiroz Pereira detém 25%. A mãe é a usufrutuária. Mas não é provável que o poder de PQP (que tem tido desde o primeiro momento o apoio da mãe, de quem é, aliás, muito próximo) seja de novo posto em causa. O industrial é, assim, aparentemente, o vencedor da guerra.


Problema? Qual problema? O mundo dos negócios é mesmo assim. O acordo entre PQP e a troika accionista (BES, Maude Lagos, Carrelhas) trouxe entre 150 e 180 milhões de euros e um compromisso: o silêncio. Hoje, quem ouvir qualquer uma das partes, em público, não pode deixar de ficar com a sensação de que a guerra nunca existiu. Oficialmente, a paz chegou, portanto. Nada de mais enganador.