Tribos de contrabandistas
aproveitam vazio de poder para o tráfico de imigrantes
Rita Siza /
24-4-2015 / PÚBLICO
As “autoridades”
alternativas da Líbia responderam ontem às iniciativas discutidas pelos
parceiros europeus no âmbito do seu renovado combate ao tráfico humano no mar
Mediterrâneo com a sua própria contra-declaração de guerra. “Qualquer acção
[militar] unilateral da União Europeia será devidamente confrontada”, prometeu
o ministro dos Negócios Estrangeiros deste governo ad-hoc, Muhammed el-Ghirani,
citado pela Reuters.
A “ameaça” do
grupo islamista que domina a capital e reclama o poder na Líbia acrescenta uma
nova camada à complexidade do problema com que a União Europeia se confronta
para responder à crise humanitária e migratória nas suas costas. Aparentemente,
o governo-sombra de Trípoli está disposto a repelir qualquer tipo de
intervenção em defesa do seu território — leia-se, dos portos controlados pelas
milícias rebeldes que são usados pelas redes de contrabando como ponto de
embarque de imigrantes clandestinos para a Europa.
Estas
organizações criminosas, outrora informais e dispersas, aproveitaram o caos de
segurança e o vazio de poder na Líbia desde a queda do regime autocrático de
Muammar Khadafi e “profissionalizaram” as suas operações, estabelecendo-se como
“autênticas corporações multinacionais”, segundo descreve ao The Wall Street
Journal Tuesday Reitano, especialista da Global Initiative Against
Transnational Organized Crime, um instituto com sede em Genebra. Algumas redes
têm origem tribal: eram os antigos contrabandistas do deserto, que trocaram o
tráfico de mercadorias pelo de imigrantes. Na zona do Sahel, a tribo Tebu tem
rotas que desembarcam em Itália e Malta, e que já são disputadas pelos chefes
tuaregues que já tinham negócios de rapto de ocidentais ou colaborações com
grupos jihadistas.
Estas redes podem
oferecer um leque alargado de serviços aos candidatos a imigrantes ou refugiados
— da fraude e falsificação de documentos até ao transporte — e, mais importante
do que tudo, conseguem antecipar-se ou iludir as autoridades locais e
internacionais. Desengane-se quem pensa que o tráfico no Mediterrâneo está
entregue a mestres da pesca ou patrões de costa despreparados e obrigados a
diversificar a sua actividade por força da instabilidade na Líbia. “Os
contrabandistas são espertos e extremamente bem informados. Imaginem alguém que
nunca dorme, que lê os jornais, estuda as leis europeias, vigia todos os
movimentos das autoridades, passa 24 horas do dia a estudar a melhor maneira de
chegar [ilegalmente] à Europa”, relata à BBC o jornalista Giampaolo Musumeci,
autor do livro Confissões de um Traficante de Pessoas.
Os dirigentes do
governo rebelde islamista — que organizaram uma versão paralela das
instituições do Estado criadas pelo regime sedeado na cidade de Tobruk, que é
reconhecido internacionalmente como o Governo legítimo da Líbia — abriram a
porta a uma negociação com os aliados europeus. “Temos feito todos os esforços
para que a Europa colabore connosco para lidar com este problema da imigração
ilegal, mas só nos dizem que não somos um governo reconhecido
internacionalmente. Pois bem, eles não podem simplesmente decidir atacar a
nossa costa sem vir falar connosco”, afirmou Ghirani, numa entrevista ao jornal
Times of Malta. “Quem nos garante que a Europa não desata a matar pescadores e
outros inocentes? O que estamos a dizer é que estamos disponíveis para atacar
este problema em conjunto”, esclareceu.
No entanto, os
rebeldes não disseram ainda que medidas estão dispostos a assumir ou a apoiar
para enfrentar as redes de traficantes no seu próprio país. A actividade dos
criminosos — os “negreiros” do século XXI, nas palavras do primeiro-ministro de
Itália, Matteo Renzi — constitui uma importante fonte de receita para as
mílícias (e supõe-se que também para o Governo de Tobruk, pela via da
corrupção).
O negócio é
alimentado pelo crescente desespero de populações em fuga da pobreza extrema,
perseguição política ou do conflito sectário e guerra civil em países como o
Mali, Níger, Sudão, Eritreia, Somália, e mais recentemente a Síria. Aliás, o
movimento dos refugiados vindos da Síria por causa da guerra civil foi
responsável pela inflação dos preços cobrados pelos contrabandistas aos
imigrantes (mais pobres) da África subsariana. As viagens que antes se faziam
por umas centenas de euros podem agora custar entre mil e sete mil euros.
O aumento da
procura que tornou as redes cada vez mais sofisticadas também teve como efeito
uma multiplicação do número de contrabandistas e uma crescente concorrência por
recursos limitados (principalmente embarcações), com um trágico reflexo na
deterioração das condições de segurança em que são feitas as viagens ou na
violência que é exercida sobre os imigrantes.
Os relatos dos
sobreviventes dos mais recentes naufrágios são estarrecedores no que se refere
ao tratamento brutal por parte dos contrabandistas. A espera pelo embarque é
feita em condições horríveis, em recintos sobrelotados em propriedades remotas.
A intimidação e violência são constantes: um dos homens que viajou no pesqueiro
que saiu de Tripoli no sábado e naufragou a cem quilómetros da costa, com mais
de 800 pessoas a bordo, disse às autoridades italianas que os traficantes
atiraram pessoas pela borda fora por causa do excesso de peso antes da partida,
e depois fecharam os imigrantes à chave no porão.
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