Capitão Falcão. O regime da
ironia de um superanti-herói
Chega esta quarta-feira às salas
e é o filme de abertura do IndieLisboa, que decorre até 3 de Maio no Cinema São
Jorge
MIGUEL BRANCO
23/04/2015 / in
(Jornal) i online
Tenha medo do
Capitão Falcão, muito medo. O primeiro super-herói português, como sugere o
filme, não é exactamente aquilo que imaginamos. Ou talvez seja, na voz
coloquial com que impõe respeito aos rivais, no fato bimbo e na falta de
consciência também. Porém, presume-se que ninguém pensaria que o primeiro
super-herói português fosse fascista. A não ser João Leitão. Realizador que a
par do protagonista da fita, Gonçalo Waddington, não se importou de estar uma
hora à conversa connosco. E aplique-se com exactidão o termo “conversa”. É que
entre perguntas e respostas programadas, a entrevista tornou-se também um
espaço de diálogo entre os dois – três se contar connosco. Uma reflexão sobre o
cinema nacional, os preconceitos aprisionados ao imaginário deste país, tudo a
partir de gente que à partida podia não ter idade para ter memória ou opinião. Mais
ou menos o que “Capitão Falcão” se propõe provocar por detrás das artes
marciais e da secretária de Salazar. É o filme de abertura do IndieLisboa, que
hoje começa no São Jorge.
Isto era para uma
série O que é um filme de uma hora e quarenta começou por ser idealizado para
uma série. João Leitão confessa que desde que conheceu David Chan (que
interpreta o Puto Perdiz, braço-direito do Capitão Falcão) por alturas da
estreia de “Um Mundo Catita” – série que Leitão co-escreveu e co-realizou –,
“queria escrever uma cena de artes marciais para ele, só que não tinha ideia
nenhuma”, conta o realizador. Até que em certa semana de 2009 viu um conjunto
de projectos que o atiraram para dentro do caderno. “O ‘OSS 117’ , uns filmes franceses que
são no fundo um falso James Bond mas com o Jean Dujardin, mais uma série
inglesa que era a ‘Dark Place’, uma série de terror a gozar com más séries de
terror. E ainda o ‘Italian Spiderman’, uns australianos que fizeram uma série
se o Spiderman fosse gordo e italiano, muito mal dobrado, propositadamente. Tudo
isso me levou a acordar um dia e, nessa manhã, escrever o argumento do
episódio-piloto”.
Sim, pergunta
bem, caro leitor, como é que de 2009
a 2015 nada avança? É melhor perguntar à RTP, que,
segundo João Leitão, engonhou tanto que o fez romper com a ideia. Foi aí que a
NOS avançou para fazer disto um filme.
O primeiro
super-herói português Dizemos isto porque a ideia de João Leitão ia para além
disso. “A minha ideia era colocar um cartaz a dizer: o primeiro filme
português, mas a NOS não aceitou. Esta coisa de dizer ‘depois da banda
desenhada, o filme’ é porque uma
rapariga que trabalhou no filme disse que a mãe dela lia o ‘Capitão Falcão’,
que se lembra dele há 30 anos, quando eu escrevi isto há dois anos.”
Recue-se no tempo
para tentar vislumbrar outros super-heróis nacionais. Deambula-se entre o Major
Alvega – “que é o ‘Battle of Britain’, uma banda desenhada inglesa, mas que
alguém quis vender em Portugal”, diz Leitão – e “As Aventuras de Camões”, uma
espécie de “Camões em modo Sandokan, que salvava donzelas e era, basicamente, o
Sandokan se ele fosse muito dado à arte da poesia”. E ainda há “O Corvo”, de
Luís Louro. Ou seja, talvez seja um exagero dizer-se que o Capitão Falcão é o
primeiro super-herói português. Exagero propositado, claro. “É uma brincadeira.
Todos os anos aparecem coisas como o primeiro filme português de ficção
científica. Estamos tão atrasados que ainda fazemos questão de dizer que é o
primeiro”, afirma Gonçalo Waddington.
Da extrema-direita à esquerda
A política está
em todo lado. Se alguém, como João Leitão, parodia o Estado Novo desta forma,
lá vem ela a correr por todos os meios. “No dia em que lançámos o trailer tinha
emails a acusarem-me de ser de extrema-direita e outros a acusarem-me de ser de
extrema-esquerda. Posso dizer qual é a minha intenção, tenho uma posição
bastante clara anti-salazarista, a minha maneira de lidar com isso é assim, não
me sinto capaz de fazer algo superdramático”, afirma o também argumentista.
“Capitão Falcão”
vai para lá das questões sensíveis da ditadura e do comunismo, percorre
caminhos tão perigosos como a misoginia e o racismo. Coisa a que Gonçalo
Waddington responde desta maneira: “A ironia e o sarcasmo têm uma coisa muito
boa, que é a maneira de tu servires um prato com uma informação que é sensível.
E a ironia dá para as pessoas relaxarem um bocado, mas ainda assim pensarem
sobre o assunto.”
João Leitão, por
sua vez, não tem ilusões. Sabe que o filme vai ser acusado de mau gosto, por
todas e por nenhumas razões. O mesmo que foi tomar um café com Rui Salazar de
Mello, sobrinho-neto do ditador, e que lhe disse tudo. “Ele foi simpático, eu
fui sincero. Disse-lhe: ‘Não sei como dizer isto de outra maneira, mas espero
que fiques ofendido com o filme, esse é o meu objectivo.’ Aceito que haja
pessoas que digam que tratei o filme com leviandade, e se assim for fico
genuinamente com pena, é a única razão que admito que seja válida.” Capitão Falcão, por certo, discorda.
Sem comentários:
Enviar um comentário