ENTREVISTA
"A dívida de Portugal vai
ser reestruturada. É tão simples quanto isso"
BÁRBARA REIS e SÉRGIO
ANÍBAL 28/04/2015 – PÚBLICO
Thomas Piketty é visto como o
"economista da esquerda", mas repete que "há questões que estão
para além da esquerda e da direita". Critica as "más
instituições" e "más decisões" da Europa, que criou "uma
crise a partir do nada".
Há dois anos,
Thomas Piketty saltou com o seu livro “O Capital no Século XXI” para linha da
frente do debate económico mundial. À esquerda aplaudiu-se a forma como colocou
o dedo na ferida da desigualdade. À direita colocou-se em causa a metodologia e
as soluções, que incluíam aumentar fortemente os impostos sobre os mais ricos.
Mesmo depois de sujeito a um dos escrutínios mais apertados alguma vez feito a
um economista, Piketty continua a dizer que nada mudaria nas suas conclusões.
Esta
segunda-feira esteve em Portugal. Participou numa conferência na Fundação
Calouste Gulbenkian e encontrou-se com vários líderes políticos. Todos à
esquerda, incluindo António Costa e Sampaio da Nóvoa. Ao PÚBLICO disse que
aumentar os impostos sobre os mais ricos não é a prioridade para a Europa,
defendeu que a preocupação deve ser o combate ao desemprego e caminhar para um
imposto comum sobre as empresas. Em relação à Grécia e Portugal, diz que o
caminho a seguir para resolver o problema da dívida é mais inflação e uma
reestruturação.
Tornou-se uma
estrela pop da noite para o dia, o seu livro O capital no século XXI vendeu
mais de 1,5 milhões de exemplares. Em que é que a sua vida mudou?
A minha vida não
mudou muito, sou apenas mais um académico, continuo a dar aulas em Paris, a
escrever livros. O sucesso do meu livro mostra que há uma procura grande em
muitos países para a democratização do conhecimento económico. Muitas pessoas
em Portugal, França, Japão, Brasil, China, estão cansadas de ouvir que “isto é
demasiado complicado” e que as questões da economia e das finanças devem estar
nas mãos de um pequeno grupo de peritos que sabem o que se deve fazer. O que
tento mostrar é que a história da riqueza, da desigualdade e da dívida pública
não é apenas história económica, mas também história política, social,
cultural. Há sempre alternativas. Quando se olha para a história da dívida
pública, há muitos exemplos de dívidas públicas ainda mais elevadas do que as
de hoje, de 200% do PIB, na Alemanha e França no século XX, no Reino Unido no
século XIX. Houve sempre diferentes formas de lidar com isto. Não é verdade que
não há alternativas. Não há soluções fáceis. Todas as soluções são difíceis.
A revista Time
considerou-o uma das pessoas mais influentes do mundo, ao pé de Marine le Pen,
Obama e o Papa. Sente que está a mudar o mundo?
Prefiro a
comparação a Obama, e entre o Papa e Le Pen, o Papa! Isto é apenas um livro,
sejamos modestos. A democratização do conhecimento económico pode contribuir
para a democratização da economia e da sociedade, mas isto é apenas um livro.
Já viu algumas
das suas ideias serem posta em prática por governos?
Somos todos parte
do debate político. Quando estive no Chile, a Presidente Michelle Bachelet
disse-me: “A reforma fiscal que estou a fazer é directamente inspirada no seu
livro.” Não me parece. A Bachelet está a fazer uma boa reforma, mas
provavelmente tê-la-ia feito com ou sem o meu livro. O livro não é: “Aqui está
a solução!” O livro quer que cada um tire as suas conclusões. Temos de ter uma
opinião mais informada.
Ainda agora, o
líder trabalhista britânico, Ed Miliband, “substituiu Keynes por Piketty”. Teve
um papel directo nesta mudança?
É preciso mais
tempo para os livros terem esse tipo de efeito. Sou parte da conversa global. O
que escrevo pode contribuir, mas estas discussões já existiam nestes países
antes de o livro sair. O Reino Unido é um caso interessante: quando o anterior
governo trabalhista introduziu um “imposto sobre mansões”, há cinco anos, os
conservadores de Cameron, que estavam na oposição, começaram por dizer que era
um erro. Mas quando foram para o poder introduziram um imposto ainda mais alto
do que o dos trabalhistas. Há questões que estão para além da esquerda e da
direita. Quando temos propriedades que valem milhões e pessoas
"sentadas" em cima delas e, no outro lado da sociedade, jovens com
níveis de desemprego altíssimo, é uma questão de bom comum dizer que vamos
tentar reduzir os impostos dessas pessoas e aumentar os impostos dos grandes
proprietários.
Reuniu com
Miliband recentemente?
No ano passado.
Esta mudança
recente nos trabalhistas nasceu aí?
Não me parece.
Todos temos um pouco de influência. Esta é uma das coisas bonitas da
democracia. Nunca sabemos quem teve que influência. E não estou à procura
disso. Não se escreve um livro para um primeiro-ministro ou para líderes.
Escrevemos livros para quem lê livros. Se os políticos lêem livros, óptimo. É
bom para eles e é bom para nós. O mais importante é quando oiço pessoas
dizerem-me que normalmente não lêem livros académicos, grandes, cheios de
quadros e notas de rodapé, e que compreenderam tudo o que leram.
Educar os
políticos…
Os políticos são
escravos da opinião pública. Por isso o importante é contribuir para
transformar a opinião pública dominante, mais do que convencer os políticos.
O seu livro foi
muito lido e gerou um enorme debate nos EUA sobre desigualdade. Vêm aí novas
presidenciais. Acredita que a América vai alguma vez mudar neste aspecto?
Nos EUA há uma
grande preocupação com a crescente desigualdade. A América tem uma história
mais complexa da desigualdade do que normalmente pensamos: os EUA inventaram
formas muito progressivas de taxar riqueza no período entre as guerras
mundiais. Entre 1930 e 1980 a
taxa de imposto mais alta aplicada aos ricos foi em média de 82%. Isto não
acabou com o capitalismo americano. Depois de Reagan isto mudou e os EUA
deixaram de ser progressistas nesta matéria. Agora, estão numa fase talvez
semelhante à fase entre as guerras e sentem que a desigualdade foi longe de
mais. Cada país tem a sua história. Estas coisas podem mudar mais depressa do
que pensamos. Todos concordamos que é justificável existir algum tipo de
desigualdade. A questão é quando a desigualdade se torna excessiva. Os EUA
podem estar a chegar a um momento de viragem.
Já se reuniu com
a equipa de Hillary Clinton?
Sim, reuni-me com
pessoas que trabalham com Hillary Clinton e também com Elizabeth Warren, outra
possível candidata democrata às presidenciais. Uma das grandes questões em que
ela está a trabalhar, e que poderá ser agarrada por Hillary, é a dívida dos
estudantes: reestruturar as dívidas das propinas. Devemos reestruturar a dívida
da Grécia ou de Portugal? E a das pessoas?
Em França, o
Presidente Hollande aplicou a sua ideia da taxa sobre os ricos, mas a seguiu
deixou-a cair. O que falhou, os políticos ou a política?
O governo, que
não tinha um plano claro e coerente em termos de reforma fiscal. O problema é
que durante a campanha Hollande foi muito vago sobre o que iria fazer em termos
de impostos se ganhasse as eleições. Depois houve, enfim, muita improvisação.
Nos primeiros dois anos no poder, aumentaram muito os impostos. Não tanto em
relação a esse imposto dos 75% – porque isso afecta apenas uma pequena parte da
população – mas o IVA, que antes diziam que nunca o fariam, e o imposto sobre o
rendimento, que não tinham anunciado que iam fazer. O que aconteceu foi que os
impostos aumentaram muito entre 2012 e 2013 e o resultado foi um crescimento
muito baixo da economia. Começou com Sarkozy e continuou com Hollande. Ambos
optaram por aumentos excessivos de receitas de impostos. Sabemos porquê: ambos
queriam reduzir o défice muito depressa, seguindo as ideias de austeridade que
dominaram a Europa em 2011/2012. A consequência foi matar o crescimento. Que em
França e na zona euro foi perto de zero. E o que vimos é que quando temos
crescimento baixo e desemprego alto não conseguimos reduzir o défice e a dívida
pública. Hoje a situação na zona euro é muito má porque tomámos decisões
erradas em 2011 e 2012. Se compararmos com os EUA, a diferença é muito clara:
em 2010, os EUA e a Europa tinham a mesma taxa de desemprego, défice e dívida
pública. Cinco anos depois, o desemprego desceu nos EUA e aumentou imenso na
Europa. Porquê? Porque tentámos reduzir a dívida pública demasiado depressa.
Claro que temos de reduzir a dívida, mas se o fizermos muito depressa, matamos
o crescimento.
Ainda sobre a
medida do imposto de 75% sobre os mais ricos…
Essa medida é um
pequeno pormenor…
É uma da
políticas que recomendou.
Não exactamente.
Fui contra a ideia quando Hollande a lançou. Porque é sobretudo simbólica, não
afecta muitas pessoas.
Mas propôs um
imposto global sobre os ricos. Está a dizer que só funciona se for aplicado
globalmente? Isso não é utópico?
Seria uma boa
política para os EUA, um país grande. Os EUA já o fizeram e não foi durante um
ano. Foi durante meio século. É demasiado fácil dizer “esta política é errada”.
Em França não se adequa, porque é um país mais pequeno, porque muitas empresas
têm as sedes fiscais em Bruxelas ou na Holanda e porque não há assim tantas
pessoas que ganhem mais de um milhão de euros. A questão do 1% da população, os
super-ricos, é mais uma questão dos EUA.
Então o que se
deve fazer na Europa?
Na Europa temos
problemas diferentes. Não tanto o do 1% do topo. O problema da desigualdade na
Europa é um problema de desemprego, em particular o desemprego jovem, e como
restaurar a confiança na zona euro. O que é realmente dramático é que
transformámos uma crise que nasceu no sector financeiro privado americano numa
crise de dívida pública, apesar de, inicialmente, a zona euro não ter mais
dívida pública do que os EUA, o Reino Unido ou o Japão. E conseguimos, apenas
por causa das nossas más instituições e más decisões macroeconómicas, criar uma
crise a partir do nada. A taxa para os super-ricos não é central neste momento
para a Europa. Para nós é mais importante um imposto comum sobre as empresas.
Muitas das grandes empresas europeias não pagam impostos nenhuns ou pagam muito
pouco e menos do que as pequenas empresasl. Vimos como no Luxemburgo,
Jean-Claude Juncker estava a fazer acordos com multinacionais para ajudar a
pagar apenas 1% ou 2% de impostos e depois veio dizer “sabem, tinha de
desenvolver uma estratégia de desenvolvimento para o meu país e tive que tornar
o meu país num paraíso fiscal”. Não vamos encontrar o nosso futuro na Europa se
todos nos tornarmos paraísos fiscais. Sei que em Portugal há esta discussão de
baixar o IRC de 21% para 17%, a seguir vai ser de 17% para 10% e depois de 10%
para zero. Se continuarem por esse caminho, daqui a 10 ou 20 anos não haverá
impostos sobre as empresas na Europa. Precisamos de um imposto sobre as empresas
comum.
Parece ter
abandonado a sua proposta de taxar os super-ricos.
Há diferentes
impostos e todos são úteis. O que estou a dizer é que hoje, perante esta crise,
acho que a prioridade para a Europa é o imposto sobre as empresas.
Para Portugal é
importante atrair capitais e novos investimentos. Como é que um país pode lidar
com essas prioridades e ao mesmo tempo ter um regime fiscal preocupado com a
igualdade?
É difícil. É
muito difícil no longo prazo ter uma moeda única, com 18 diferentes dívidas públicas,
18 diferentes taxas de juro, 18 diferentes sistemas fiscais em competição uns
com os outros. E em particular no imposto sobre as empresas, se não temos uma
taxa comum, no longo prazo essa taxa tende para zero e, por isso, teremos de
sobretaxar as pessoas que não conseguem fugir, em particular os rendimentos de
trabalho mais baixos ou médios. Mas isto não é bom para o emprego. Se se cobram
mais impostos sobre o trabalho, estamos a criar mais desemprego. Se queremos
manter uma divisa comum, a liberdade de movimento dos capitais e a troca livre
de bens e serviços na Europa, então também precisamos de algum tipo de
tributação comum de impostos, pelo menos sobre as empresas.
A nível europeu?
Sim, mas não têm
de ser todos os países. Pode ser na zona euro ou num grupo ainda mais pequeno
do que a zona euro. É melhor que sejam três países que um, é melhor que sejam
10 em vez de três. Mas temos de fazer alguma coisa.
Acha isso viável?
Eu acredito em
soluções conseguidas passo a passo.
Vê sinais de que
tal pode estar para acontecer?
Os governos da
zona euro estão conscientes de que o actual sistema não está a funcionar. O
problema é que, apesar de haver alguns passos, por exemplo na taxa sobre as
transacções financeiras, na Europa fala-se muito mas não se faz quase nada.
Veja-se o caso dos bancos suíços. Tivemos de esperar pelas medidas impostas
pela Administração Obama, nomeadamente sanções para os bancos que não
transmitissem informação fiscal, para que a Europa começasse a negociar um
acordo sobre transmissão automática de informações financeiras. Isto não faz
qualquer sentido. Os governos europeus estão a falar muito, mas fazem pouco.
Qual é a razão
dessa inacção?
As instituições
não estão a funcionar. Em questões de ordem fiscal, a regra da unanimidade não
permite que se verifiquem grandes mudanças. Para mudar isso, seria muito
importante que um grupo mais pequeno como a zona euro ou ainda mais pequeno se
o Luxemburgo não quiser entrar, avancem para uma maior união política e
orçamental, com decisões tomadas por maioria, pelo menos para as questões
fiscais que envolvam fluxos de capital e de investimento entre fronteiras.
Não há vantagens
em haver alguma concorrência fiscal?
Eu acredito nas
forças do mercado e da concorrência, mas precisamos de instituições democrátias
fortes para garantir que o sistema fiscal é justo. Se a classe média e as PME
sentem que as pessoas acima delas estão a pagar zero ou menos do que elas
pagam, em algum ponto isto constitui uma ameaça para o nosso contrato social,
para o modelo social europeu. É muito importante que mudemos as nossas
instituições. Isto não será feito com 28 países, talvez nem mesmo com 18
países, por isso temos de avançar com os países que querem participar e um dia
pode ser que os outros se juntem. De outra maneira, irá exacerbar-se a
tendência das pessoas para sentir que estão a ser abandonadas e que o sistema
está apenas a funcionar para aqueles que estão no topo.
Que consequências
antecipa se, em termos de desigualdade, nada for feito durante os próximos 10 a 20 anos?
O grande risco na
Europa é o de as pessoas com mais dificuldades, que caíram no desemprego, ou
que estão na classe média, sintam que não retiram qualquer benefício da
integração europeia ou da globalização em geral. Se isso acontecer, podem virar-se
para uma solução nacionalista. Eu já vejo isto acontecer no meu país. Quando
não se consegue resolver a desigualdade ou os problemas sociais de uma forma
civilizada e pacífica, é sempre tentador culpar as outras pessoas. Pode-se
culpar os trabalhadores estrangeiros, pode-se culpar outros países, pode-se
culpar a Alemanha – no meu país isso é um desporto nacional – pode-se culpar os
trabalhadores chineses. E é isso que me preocupa: o crescimento das tendências
nacionalistas. Por exemplo, o caso da Grécia: toda a gente sabe que a Grécia
não vai conseguir gerar um excedente primário de 4% nos próximos 30 anos, que é
aquilo que ficou estabelecido. Mas nenhum governo europeu está preparado para
ter esta discussão e já perdemos quatro meses a falar sobre outras coisas que
não têm a ver com isto. Porque é que estamos à espera? Pode-se tentar passar as
culpas de uns para os outros, mas a verdade é que, no fim das contas, o
problema foi que fizemos um mau trabalho colectivamente. E este é um assunto
que vai para além da esquerda ou da direita. Basta comparar com o que aconteceu
nos EUA ou no Reino Unido: menos austeridade, mais crescimento e desemprego
mais baixo. A maneira como nos estamos a governar na Europa, substituindo a
democracia por regras rígidas, porque temos medo de que se tomem decisões
democráticas no parlamento europeu sobre o nível do défice ou sobre o nível dos
impostos sobre as empresas. Temos medo deste tipo de decisão democrática a
nível europeu. E isto não está a funcionar. Nos Estados Unidos não têm tratados
de Maastricht para o nível do défice. É uma decisão tomada por maioria no
Congresso. E não estou a dizer que as instituições norte-americanas funcionam
muito bem, mas quando comparadas com as instituições europeias… Nós
substituímos as decisões democráticas por regras rígidas incapazes de se
adaptar às circunstâncias.
Quando o Syriza
ganhou as eleições na Grécia disse que isso iria libertar a Europa. Está
desiludido com o que tem acontecido entretanto?
Os governos no
resto da Europa, em particular na Alemanha e na França, devem ajudar o Syriza e
a Grécia a redefinirem a estratégia política. O acordo que existe com a Grécia
é que o país vai registar um enorme excedente primário durante as próximas
décadas. Neste momento têm um pequeno excedente, o que significa que os gregos
pagam um pouco mais de impostos do que aquilo que recebem com despesa pública.
Para se ter uma ideia do que é este valor, basta ver que o orçamento total para
o sistema universitário de um país como a Grécia ou Portugal corresponde a
menos de 1% do PIB. Estamos dispostos a colocar quatro vezes mais dinheiro para
pagar a dívida do que aquilo que investimos na nova geração?
Em contraponto
com a Grécia, vê Portugal como um caso de sucesso?
Estes problemas
não são apenas da Grécia, também são de Portugal. Neste momento há pessoas a
dizer sobre Portugal que se regressou ao crescimento, que as taxas de juro
estão baixas e que os problemas estão resolvidos. É verdade que a economia está
a crescer, mas o nível do PIB ainda é mais baixo do que era há 10 anos. Nas
taxas de juro, algumas são baixas, mas se se levar em conta a totalidade da
dívida, o valor médio ainda é da ordem dos 4% e aquilo que se está a pagar de
juros todos os anos é cerca de 5% do PIB, o que é cinco vezes mais do que
aquilo que é investido no sistema universitário. Será esta uma boa maneira de
preparar a Europa para o futuro?
O que é que se
faz à dívida que existe?
É importante
perceber que, quando se olha para o passado, vemos que já houve dívidas
públicas como estas e por vezes até maiores. Por exemplo, a França e a Alemanha
em 1945 tinham uma dívida de 200% do PIB. Passados 10 anos, já quase não tinham
dívida, estava abaixo dos 30%. O que é que aconteceu? É claro que não pagaram a
dívida com excedentes orçamentais. O que aconteceu foi uma combinação de
métodos para baixar a dívida. Em primeiro lugar, muita inflação, que não é
perfeita mas pelo menos reduz a dívida. Depois a reestruturação de dívida. As
pessoas agora dizem que isso não pode acontecer, mas a verdade é que aconteceu
no passado. E os dois países – Alemanha e França –, que agora estão a explicar
à Grécia e a Portugal que têm de pagar a dívida toda sem inflação nem
reestruturação de dívida, nunca fizeram isso. E se tivessem sido obrigados a
fazê-lo ainda agora estariam a pagar a dívida. Foi isto que permitiu aos países
europeus, em particular a Alemanha e a França, investir no crescimento nos anos
50 e 60. Foi a decisão certa.
Na zona euro é
difícil que Portugal ou a Grécia tenham inflação. Devem mesmo apostar numa
reestruturação de dívida?
Acho que deve ser
uma combinação daquilo que tivemos no passado: inflação, reestruturação de
dívida e tributação excepcional da riqueza privada. Em França, por exemplo,
tivemos uma taxa de 25% sobre a riqueza acima de um milhão de francos.
Na Grécia essa
parecia ser a posição inicial do Governo Syriza, mas não se vê que seja passada
à prática. Para si o que seria pior: um acordo em que Atenas cede ou
não-acordo, com uma possível saída da Grécia do euro?
Uma saída da Grécia
seria uma catástrofe para a zona euro. Seria o princípio do fim para a zona
euro. Parece claro que, no dia seguinte, os mercados começariam a perguntar
quem será a seguir. E o que aprendemos nos últimos anos é que, mesmo não
havendo especulação cambial, os países da zona euro estão sujeitos a
especulação nas taxas de juro, que até pode ser mais perigosa. Se deixarmos um
país sair, estamos a correr um enorme risco. E os líderes políticos de qualquer
país que participasse nesse desastre assumiriam enormes responsabilidades
perante a história. Por isso, não acho que isso vá acontecer. As pessoas não
são tão loucas que deixem isso acontecer.
O que irá
acontecer a seguir?
O que vai
acontecer é que as dívidas públicas da Grécia, Portugal e Itália vão ter de ser
reestruturadas. É tão simples quanto isso. As pessoas agora dizem que não, mas
é sempre assim na história da dívida pública: as pessoas dizem que não a uma
reestruturação de dívida, mas depois ela acontece.
Discutiu a
reestruturação de dívida nos encontros que teve aqui em Portugal, por exemplo
com António Costa?
Esse foi um dos
temas discutidos, entre outros.
Que questões é
que lhe colocaram?
Eu não estou aqui
em Portugal para dar lições sobre aquilo que deve ser feito. Estou aqui para
aprender coisas sobre Portugal. Acima de tudo, ouvi o que tinham para me dizer.
Falaram-me do programa que apresentaram para as eleições. Parece-me ter medidas
muito razoáveis.
Quais?
A redução das
contribuições nos salários parece-me fazer sentido e também estão a pensar
criar um imposto sobre as heranças mais elevadas. Não digo que tenha de haver
um imposto muito pesado, mas penso que esta medida vai no sentido certo. Se se
recebe 100 mil euros com o trabalho, paga-se impostos. Não faz sentido receber
um milhão, 10 milhões de euros sem trabalhar e não pagar nada.
No programa do PS
tentam cumprir as regras do Tratado Orçamental europeu, de que é muito crítico…
O que o líder do
PS me disse foi que têm um plano A e um plano B. O plano A é assumir que
seguimos as regras do Pacto e o plano B é tentar mudar as regras na Europa.
Para mim faz sentido ter estas duas abordagens.
Acha que Portugal
pode mudar as regras?
Sozinho, claro
que não. E é por isso que é importante ter o plano A, mas ao mesmo tempo acho
que deve desempenhar um papel para mudar as regras. Há uma coisa que é
importante reconhecer: as regras já foram mudadas várias vezes. E vão voltar a
mudar. Neste momento, devemos reconhecer que as mudanças feitas em 2012 não
foram particularmente bem sucedidas, como mostra o desempenho das economias.
Agora, não basta queixarmo-nos das regras e da Alemanha, é preciso colocar
novas propostas em cima da mesa.
É visto como o
economista da esquerda e aqui em Portugal encontrou-se com uma série de
políticos, todos da esquerda. Como académico não o incomoda ter esse rótulo?
O meu livro não é
para a esquerda ou para a direita. É um livro para todas as pessoas que lêem
livros. Nunca pertenci a um partido político. Quando escrevo sobre a história
da dívida pública, dos impostos, da desigualdade, baseio-me nos dados que
encontro nos arquivos. Depois, na parte final do livro, tento retirar
conclusões para o futuro e habitualmente as pessoas consideram que são
conclusões mais próximas da esquerda do que da direita. Mas é mais complicado
do que isso, acho que pessoas de qualquer quadrante político podem aprender com
o meu livro. Aliás, se se olhar para os últimos anos, nos EUA e no Reino Unido,
os governos têm sido muito menos rígidos na política orçamental e sido mais
pró-crescimento. E isso aconteceu porque Obama ou Cameron são mais de esquerda
do que Hollande ou Merkel? Não me
parece. Há muita coisa que vai além da esquerda e da direita.
O seu livro foi
sujeito a um grande escrutínio e alvo de muitas críticas. Esse processo levou-o
a mudar as suas ideias?
Se tivesse de
reescrever o livro, a única mudança que faria seria incluir mais países
emergentes. Para mim, o mais importante do debate foi ter-me permitido, em
países como o Brasil, a Coreia ou o Taiwan, aceder a dados fiscais a que antes
não tinha tido acesso. Agora poderia incluir mais países, mas isso não
alteraria as grandes conclusões.
O “novo Marx” põe a plateia a rir
mesmo a falar de desigualdades
Menos tributação sobre o
trabalho, mais tributação sobre a riqueza, defendeu ontem Piketty na
Gulbenkian, em Lisboa
Pedro Crisóstomo
/ 28-4-2015 / PÚBLICO
Uma aula com
Thomas Piketty não é um monólogo c inzento. Por mais complexo e sensível que
possa ser o tema, como é o das desigualdades na distribuição da riqueza, há um
traço de que o economista francês não abdica quando fala para grandes plateias:
o seu refinado sentido de humor.
Enquanto
gesticula com os braços e aponta para o ecrã onde vai desfiando sucessivos
gráficos com as grandes tendências da distribuição da riqueza ao longo de mais
de um século (nos EUA, na Europa, no Japão...), Piketty parece querer testar a
plateia com as suas tiradas de ironia, ao falar sobre a crise na zona euro, a
distribuição de rendimentos, o nível da carga fiscal em Portugal. Não estamos
na Paris School of Economics, onde o francês dá aulas, mas no grande auditório
da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que esta segunda-feira encheu para
o ouvir sustentar a ideia de que a tributação sobre a riqueza ajuda a corrigir
as desigualdades na distribuição dos rendimentos.
Foi como uma
aula, uma hora e meia para sintetizar as mais de 900 páginas de O capital no
século XXI (editado em Portugal pela Temas e Debates). E Piketty fez jus à fama
de rockstar economist que foi ganhando à medida que o debate e a controvérsia
cresciam com as reedições do seu livro à escala global. Quarenta minutos antes
da conferência, já o auditório estava praticamente lotado, obrigando centenas
de presentes a acompanhá-lo noutro auditório, onde a conferência passava em
directo.
A ouvi-lo nas
primeiras filas teve políticos e ex-figuras de Estado. Se durante a manhã e a
tarde se dividiu em encontros com o secretário-geral do PS, António Costa, o
dirigente do Livre/Tempo de Avançar, Rui Tavares, e o ex-reitor António Sampaio
da Nóvoa, na Gulbenkian não faltaram o ex-Presidente da República Jorge
Sampaio, o ex-Presidente da Assembleia da República Mota Amaral, o exministro
socialista das Obras Públicas António Mendonça, o ex-presidente da Gulbenkian
Rui Vilar ou o ex-líder do PSD Marcelo Rebelo de Sousa.
Piketty falou em
inglês. A primeira gargalhada da plateia aconteceu logo a abrir, quando
advertiu os presentes para o seu acentuado sotaque francês, que o ajuda a
sincopar as frases. Piketty começou por se referir à crise na zona euro e ao
nível de dívida pública elevado dos países em crise para refutar a ideia de que
só há uma solução política para responder a um problema que, diz, deve ser
encarado como sendo “comum” aos 19 países da moeda única. “Há sempre
alternativas” e “olhar para o passado [da evolução das desigualdades] abre um
debate para várias soluções” sobre como responder à crise.
A nova teoria
para a evolução da desigualdade, que Piketty arrisca, está plasmada na obra que
lhe valeu a alcunha de “novo Marx”. Piketty esteve em Lisboa para reciclar
esses conceitos, ora apontando os exemplos históricos da sociedade
norteamericana, ora fazendo o contraponto com a situação europeia e o caso
português. “O aumento da desigualdade nos EUA nas últimas décadas deve-se
principalmente ao aumento da desigualdade nos rendimentos do trabalho”,
referiu.
Não foram raras
as vezes em que Piketty, ironizando sobre a forma como os governos lidam com o
combate às desigualdades, levou a plateia a rir durante alguns segundos. E
aconteceu quando se referiu a países que têm taxas de 0% sobre as fortunas. No
livro, Piketty analisou dados de duas dezenas de países, incluindo Portugal, um
dos países onde nas últimas três décadas houve um maior aumento do peso do
rendimento dos mais ricos. Se em 1982 os 1% mais ricos concentravam 4,3% do
rendimento, em 2005, obtinham 9,85% do total.
Como muitas obras
que parecem ter vindo para ficar, a de Piketty tem sido fonte de acesos
debates, um multiplicador de reacções mais ou menos epidérmicas. A “aula” na
Gulbenkian também não foi um monólogo.
Da plateia, o
economista Rui Nuno Baleiras, membro do Conselho das Finanças Públicas,
questionou se devem as pequenas economias usar a tributação para enfrentar os
problemas sociais. Piketty considerou que, mesmo aí, os países “podem ter taxas
mais progressivas sobre a propridade”. E defendeu que “há reformas do sistema
fiscal a fazer em Portugal e em toda a Europa”. Numa frase: “Menos tributação
sobre o trabalho, mais tributação sobre a propriedade acumulada”.
Costa e Piketty criticam modelo
europeu que aposta na austeridade
MARIA LOPES
27/04/2015 - PÚBLICO
Líder do PS reuniu-se com o
economista francês Thomas Piketty. Ambos defenderam a necessidade de a Europa
encontrar soluções comuns para estimular o crescimento em toda a zona euro.
A agenda do
economista francês Thomas Piketty em Lisboa confirma a filosofia
anti-austeridade que defendeu ao lado do secretário-geral do PS esta
segunda-feira de manhã. O académico e António Costa criticaram o modelo europeu
que aposta na austeridade, assim como a atitude da França e da Alemanha, e
defenderam a necessidade de políticas que estimulem o crescimento.
“Estamos a
cometer um erro na Europa ao acreditarmos que podemos reduzir uma dívida
pública tão grande simplesmente acrescentando austeridade a mais austeridade”,
afirmou Thomas Piketty aos jornalistas no jardim do palacete da sede do PS, com
o som do trânsito do Largo do Rato como banda sonora, depois de um encontro de
mais de uma hora com o líder socialista ao final da manhã. Depois, o economista
tinha um almoço marcado com RuiTavares (Livre/Tempo de Avançar) e o vereador
lisboeta João Afonso (Movimento Cidadãos por Lisboa), e ainda um encontro com
Sampaio da Nóvoa.
Citando o seu
livro O Capital no Século XXI - um êxito de vendas a nível internacional e que
agora está traduzido para português -, o economista realçou que, na história da
dívida pública na Europa, se percebe que quando se tem uma dívida pública de
100% ou mais do PIB é impossível conseguir excedentes orçamentais (que ajudariam
a reduzir a dívida) com austeridade.
“Quando se tem
uma inflação zero e um nível de crescimento muito pequeno, é quase impossível
reduzir uma dívida pública tão grande. Não é apenas uma questão de políticas de
esquerda ou direita, é também uma questão de olhar para a história e ver as
evidências”, avisa Thomas Piketty, exemplificando com os casos francês e
alemão, que no pós-II guerra reduziram a sua dívida apostando no crescimento
económico e apoiando-se na inflação.
O académico não
se coíbe de apontar o dedo: “É um pouco estranho que agora países como a
Alemanha ou a França, que nunca pagaram a sua dívida pública no período pós-II
guerra mundial, andem agora a explicar a Portugal, Grécia e Espanha que tudo
tem que ser pago até ao último euro, que não pode haver inflação nem
reestruturação da dívida.”
O "egoísmo" francês e alemão
Piketty diz ainda
que “a Alemanha e a França têm sido muito egoístas, e muito ineficazes nas suas
decisões”, que ajudaram a levar a zona euro para a situação complicada em que
se encontra, em especial com as altas taxas de desemprego – que dificultam a
tarefa da redução da dívida. Por isso, o economista defende que os dois países
“devem aceitar a sua quota parte de responsabilidade pela má situação na Europa
e reorientar as suas políticas”. Em França, os erros vieram dos dois lados – da
direita e da esquerda, de Sarkozy e de Hollande, aponta Piketty. “Mas o
problema não é passado, é o futuro.”
António Costa
haveria de corroborar a visão de Thomas Piketty, lembrando que “Portugal é um
excelente exemplo de que a austeridade, de facto, não resolve o problema da
dívida”. “Depois de quatro anos de austeridade, de cortes de salários, de
cortes de pensões, de aumento da carga fiscal, a verdade é que temos hoje uma
dívida 30 pontos percentuais acima daquela que tínhamos e com piores condições
de a pagar”, descreveu o líder do PS. “A necessidade de pôr termo à política de
austeridade e apostar na criação de emprego como condição essencial para
relançar a economia é absolutamente essencial”, acrescentou Costa.
Mas ainda há
esperança, admite o economista francês. “As novas eleições em Portugal, Espanha
e Grécia podem fazer a diferença para reorientar a Europa”, embora Piketty não
tenha confiança absoluta no novo modelo grego. “A questão não é dizer que a
Grécia tem a solução certa para o resto da Europa. E eu não acho que tenha. Mas
acho que é importante que todos os Governos da Europa tentem trabalhar com o
sul da europa e com novos partidos, de forma a mudar as nossas políticas e ter
melhores políticas macro-económicas como um todo.”
Costa haveria de
concordar com Piketty, a quem ofereceu um exemplar em inglês do cenário
macro-económico socialista apresentado na passada semana, designado “Uma década
para Portugal”. “Não podemos ter uma postura meramente submissa relativamente
às posições que são discutidas no Conselho Europeu. Temos que ter uma posição
activa em defesa da economia e em defesa dos interesses nacionais”, defendeu o
líder socialista. Que acrescentou ser preciso que o conjunto da zona euro
encontre respostas para um “novo equilíbrio entre os recursos que são alocados
ao pagamento da dívida, os que são alocados ao cumprimento das nossas
obrigações constitucionais e os recursos que é preciso ter para fazer os
investimentos estruturantes da economia”.
“É importante que
Portugal e Espanha, com Itália e França, possam contribuir para convencer a
Alemanha que estas decisões tomadas em 2012 não foram boas para a zona euro
como um todo nem para a Alemanha”, defende Thomas Piketty, realçando que a taxa
de crescimento alemã é neste momento duas vezes menor que a de Inglaterra (que
está fora da zona euro).
E na comparação
simples com os Estados Unidos a Europa também fica a perder: “Em 2010, tínhamos
a mesma taxa de desemprego e a mesma dívida pública. Cinco anos mais tarde,
temos uma recuperação económica nos EUA, uma redução da taxa de desemprego.
Enquanto na Europa esta taxa aumentou muito e até mesmo hoje, num país como
Portugal continuamos a ter níveis de actividade económica mais baixos do que
tínhamos há 10 anos”, apontou o economista francês.
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