Os pressupostos falhados do
acordo ortográfico
DIRECÇÃO EDITORIAL - PÚBLICO / 20-4-2015
O acordo ortográfico não unificou
a escrita nem abriu um mercado único de edições. Serviu para quê?
Reacendeu-se na
passada semana, por via de um encontro na Faculdade de Letras e de uma moção aí
aprovada, a querela ortográfica nacional. Querela que, a bem da verdade, nunca
realmente se extinguiu.
O PÚBLICO,
nascido no mesmo ano que é atribuído ao chamado Acordo Ortográfico de Língua
Portuguesa, vulgo AO90, partilhou-a ao longo destes 25 anos assumindo uma
posição clara, rejeitando a sua aplicação. Fê-lo logo em 1991, quando o seu
primeiro director (e fundador) Vicente Jorge Silva assinou um texto conjunto
com directores de outras publicações (como Miguel Esteves Cardoso e Miguel
Sousa Tavares, numa iniciativa incentivada por Vasco Graça Moura) onde se
referia que nas publicações que dirigiam o AO90 não seria aplicado. Passado um
quarto de século, é legítimo perguntar se tal posição faz, ainda hoje, sentido.
Pois bem: os
pressupostos do AO90, agora que ele se encontra disseminado à força (embora sem
ser, ainda, lei), foram gorados na sua quase totalidade. Pretendia-se pôr fim a
uma “deriva ortográfica”, mas no lugar onde havia duas ortografias de base
geográfica bem determinada (a luso-africana e a brasileira) existem agora três
ortografias, as anteriores e a do acordo, que conseguiu até o prodígio de
tornar diferentes mais de meio milhar de palavras que em Portugal e no Brasil
se escreviam da mesma maneira; além disso, com a admissão de duplas grafias e
facultatividades perdeu-se a noção de ortografia, não sendo possível, em
exames, alunos e professores entenderem-se quanto às normas. Se ortografia “à
vontade do escrevente” é admissível, a ortografia acabou. E qualquer acordo
será inútil.
Por outro lado,
havia a miragem dos mercados. O governo de Sócrates, ao longo da sua
existência, recorreu a dois estratagemas para acelerar o acordo: aprovou, logo
em 2005, o 2.º Protocolo Modificativo do AO para que pudesse ser aplicado só
com a ratificação de três países, dispensando o apoio dos restantes signatários
do tratado original; e, em 2011, já de saída do poder, antecipou em vários anos
a sua aplicação no Estado (para Janeiro de 2012) e nas escolas (no ano lectivo
de 2011/2012). Esta “pressa” tinha por objectivo selar um acordo político entre
Portugal e o Brasil, dispensando o resto. Mas os que, dali, esperavam
benefícios rápidos esmoreceram. Não existe hoje um mercado “comum” de edições,
como falsamente se propagandeou. E a confusão de grafias com as novas regras só
tem estimulado a “deriva” que se criticava, multiplicando os erros.
Malaca
Casteleiro, um dos mentores do AO90, diz agora ao PÚBLICO que “se não houvesse
esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na
ortografia”. Pegando nas suas palavras, um exemplo prático: o PÚBLICO, que não
aderiu ao AO90, tem com o Brasil neste momento várias parcerias efectivas (com
edições, iniciativas partilhadas e presença física no maior portal do Brasil, o
UOL) e sem mexer uma vírgula na chamada “anterior ortografia”. É este o nosso
“acordo”. Com a língua portuguesa e com os leitores. Se outro acordo houver,
que seja digno, útil e não um atentado contra a inteligência. Desta já se abusou, convenhamos, em demasia.
Adversários do Acordo Ortográfico
reclamam referendo
LUÍS MIGUEL
QUEIRÓS 20/04/2015 - PÚBLICO
Um fórum realizado na
Universidade de Lisboa aprovou uma moção a defender que o Acordo Ortográfico de
1990 deve ser referendado. Os defensores do tratado acham que o esforço de
unificação da língua compensa as eventuais imperfeições do AO.
A obrigatoriedade
do uso do Acordo Ortográfico de 1990 (AO) no ensino e na administração pública
deve ser imediatamente suspensa, e a sua eventual aplicação em Portugal deve
ser depois submetida a referendo. É o que defende uma moção aprovada no fórum
Pela Língua Portuguesa, diga NÃO ao ‘Acordo Ortográfico’ de 1990, que decorreu
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) no dia 14 de Abril.
Os subscritores
da moção acham que o AO falhou o seu objectivo de “unificação das variantes do
Português” e que a “alegada simplificação” que trouxe “corresponde a uma total
insegurança ortográfica”. Do outro lado, os que defendem o AO - incluindo o seu
principal negociador pelo lado português, Malaca Casteleiro, que o PÚBLICO
ouviu -, não negam imperfeições ou incongruências, mas acham que é um pequeno
preço a pagar por uma ortografia unificada.
E, se o jurista
Ivo Miguel Barroso tiver razão, ainda haverá algum tempo para discutir o
assunto antes de se esgotar o prazo de transição estabelecido para a aplicação
do AO. Na sua intervenção na FLUL, Barroso procurou demonstrar, contrariando a
interpretação oficial, que esse prazo não termina em Maio próximo, mas sim em
Setembro de 2016, já que os seis anos previstos não devem ser contados,
defende, a partir da data em que se procedeu ao depósito da ratificação do 2.º
Protocolo Modificativo do AO, mas da data da publicação no Diário da República
(DR) do aviso dessa ratificação, o que só veio a acontecer em Setembro de 2010.
O jurista é
também um dos dinamizadores de uma acção popular judicial levada ao Supremo
Tribunal Administrativo, que requer a não-aplicação do AO no ensino público do
1.º ao 12.º ano, argumentando com a inconstitucionalidade da Resolução do
Conselho de Ministros n.º8/2011, de 25 de Janeiro, que impôs o AO na
administração do Estado a partir de Janeiro de 2012, e determinou que o acordo
era aplicável ao sistema educativo logo no ano lectivo de 2011/12. “Espero que
o tribunal tome uma decisão antes de começarem os primeiros exames, até porque
se trata apenas de matéria de Direito”, disse Ivo Miguel Barroso ao PÚBLICO.
Tomada poucos
meses antes de o Governo de Sócrates cair na sequência do chumbo do PEC IV, a
resolução em causa antecipou em vários anos a aplicação do AO em sectores
fundamentais da sociedade portuguesa e foi instrumental na criação de um facto
consumado, levando, por exemplo, os editores de manuais escolares a adoptar um
acordo ao qual muitos deles se tinham sempre oposto, como foi o caso de Vasco
Teixeira, da Porto Editora.
Na reunião da
FLUL, onde intervieram figuras como António Feijó, vice-reitor da Universidade
de Lisboa, a ensaísta Maria Filomena Molder, o poeta Gastão Cruz, o escritor e
colunista Pedro Mexia ou o humorista Ricardo Araújo Pereira, o tradutor Miguel
Francisco Valada levou uma série de exemplos que parecem demonstrar que o AO
veio criar instabilidade ortográfica onde esta não existia.
377 “fatos”
A par de inúmeros
exemplos de erros de português que poucos dariam antes de surgir o AO, como
“fato” ou “contato”, e que agora são frequentes em jornais e televisões, mas
também em universidades ou no Parlamento - até o próprio texto do AO regista
alguns -, Valada apresentou uma tabela em que conta o número de vezes que
algumas destas grafias erradas ocorrem no Diário da República (DR). Em 2009 não
aparece nenhum “fato” ou “fatos”, mas em 2012, o ano em que o DR começa a ser
redigido segundo o AO, Valada detectou 377 ocorrências.
A tabela foi
entregue na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia
da República, mas sem nenhum resultado prático, explicou Valada. Um silêncio
que simboliza a dificuldade com que se defrontam os que ainda não desistiram de
tentar travar o acordo: do outro lado raramente encontram interlocutores para
uma discussão séria sobre o conteúdo do AO.
“As vias
políticas estão bloqueadas”, reconhece Ivo Miguel Barroso, lembrando que o
tratado e os posteriores protocolos modificativos foram sempre aprovados “por
largas maiorias” no Parlamento, que três Presidentes da República - Mário
Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva - o ratificaram, e que o actual líder da
oposição, o socialista António Costa, é um assumido defensor do AO.
Garantido o apoio
dos grupos parlamentares do PSD e do PS - apesar da oposição de alguns raros
deputados, como Manuel Alegre -, e com o AO a ser aplicado há quatro anos
lectivos no ensino e a generalizar-se cada vez mais na edição e nos media, é
compreensível que os seus defensores não tenham interesse em promover agora uma
grande discussão pública.
Entre as
iniciativas promovidas nos últimos anos contra o AO, Valada recordou o
Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa, uma petição lançada em Maio de 2008,
e que um ano depois, quando foi apreciada no Parlamento, já tinha recolhido
mais de 115 mil assinaturas válidas, entre as quais se contavam as de Eduardo
Lourenço, Vitorino Magalhães Godinho, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Vasco Graça
Moura ou José Pacheco Pereira.
E antes disso, em
2005, quando o Governo de José Sócrates se preparava para ratificar o 2.º
Protocolo Modificativo - destinado a permitir que o AO pudesse entrar em vigor
sem a ratificação de todos os países signatários do tratado original (Angola e
Moçambique ainda hoje não o fizeram) -, foi pedido, através do Instituto
Camões, um conjunto de pareceres a várias instituições e especialistas.
Descontado o da Academia das Ciências, da autoria do próprio Malaca Casteleiro,
todos os outros oscilavam entre as críticas severas e a sugestão de que o
processo deveria ser imediatamente suspenso, como o fez a Associação Portuguesa
de Linguística. O próprio Instituto de Linguística Teórica e Computacional
(ILTEC), hoje o principal instrumento de aplicação do acordo, afirmava que o AO
“terá sempre consequências bem mais graves que a existência actual de duas
normas, sobretudo na língua escrita no âmbito da Internet”.
Fingir que não ouvem
Para os
adversários do AO, este não unifica a língua, como se propunha, e ao admitir um
grande número de facultatividades - “Electrónica e Electrotecnia” poderá ser
escrito de 32 formas diferentes sem violar o AO - contraria o próprio conceito
de ortografia. E lembram que as grandes diferenças que separam as variantes
portuguesa e brasileira da língua não são ortográficas, são lexicais,
semânticas e morfossintácticas.
Com diferenças
regionais e índices de iliteracia pouco comparáveis com os de Portugal, o
Brasil tem problemas próprios no domínio da língua que poderemos estar a
importar com este acordo. É o que defende Ivo Miguel Barroso, que acha que “o
AO é desnecessário” e que “mais vale haver duas variantes: entendíamo-nos
perfeitamente, e agora um brasileiro lê ‘receção’ e não sabe o que é”.
Do outro lado da
barricada, os defensores acham que a “deriva ortográfica” entre Portugal e o
Brasil ameaçava o futuro do português como língua mundial e crêem que uma
ortografia mais próxima da fonética facilita a aprendizagem. Uma convicção
partilhada pelos três apoiantes do AO que o PÚBLICO ouviu.
O argumento
clássico contra esta convicção é o das crianças inglesas, que aprendem com
aparente sucesso uma ortografia cuja relação com a pronúncia é bastante remota.
E Vasco Graça Moura, numa entrevista ao autor deste artigo originalmente
publicada na revista Cão Celeste (e que poder ler no PÚBLICO on line), lembra
que “as desgraçadas criancinhas” alemãs aprendem a escrever palavras como
“Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän” [“capitão da companhia de
navegação do Reno e do Danúbio”]. E os alunos de gronelandês ocidental não têm
melhor sorte. Francisco Miguel Valada trouxe ao fórum da FLUL, para a endereçar
aos promotores do AO, uma palavra deste idioma,
“Tusaanngitsuusaartuaannarsiinnaanngivipputit”, que em português significa,
explicou, “não podem estar permanentemente a fingir que não estão a ouvir”.
O linguista João
Malaca Casteleiro, negociador do AO e redactor da sua Nota Explicativa, admite
que este “não é perfeito, não unifica completamente a ortografia, porque não
foi possível”, e “tem algumas incongruências”. Mas defende que o acordo veio
pôr fim a uma “deriva ortográfica que durava há um século”.
Salientando que
se trata de um acordo, e não de uma reforma, diz que “se houve cedências
etimológicas, o Brasil também cedeu na acentuação, suprimindo o trema, bem como
os acentos agudos em palavras como ‘ideia’ e ‘assembleia’”.
De resto, a
supressão das consoantes mudas parece-lhe positiva, uma vez que “não existem na
pronúncia e não faz sentido mantê-las na escrita”. Mas também reconhece que,
“se não houvesse esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário
estar a mexer na ortografia: os ingleses não mexem há muito tempo na deles,
porque não tem sido preciso”. Se Portugal tivesse envolvido o Brasil na reforma
de 1911, diz, “o problema tinha ficado resolvido”.
O conselho de Verney
Já o linguista
Fernando Cristóvão acha que a oposição ao AO é “uma coisa doentia” e lembra que
o acordo foi aprovado pela AR e ratificado por Mário Soares em 1991. E aos que
o encaram como uma concessão ao Brasil, lembra que “as mudanças que se fizeram
com este acordo já tinham sido reclamadas em 1746 pelo português Luís António
Verney”, que na obra O Verdadeiro Método de Estudar defende que os portugueses
“devem escrever a sua língua da mesma sorte que a pronunciam”.
Se Cristóvão é um
defensor de que a ortografia se aproxime tanto quanto possível da pronúncia, já
D’Silvas Filho, pseudónimo literário de um consultor do site Ciberdúvidas e
autor do livro Prontuário - Erros Corrigidos de Português (Texto, 2012), embora
tenha apoiado o AO “desde a primeira hora”, acha que este pode ter propiciado
interpretações que "levaram longe de mais a prioridade ao critério
fonético”. Uma crítica em que está sintonizado com os adversários do AO.
Já não subscreve,
no entanto, outra crítica recorrente: a que censura a este acordo a
proliferação de duplas grafias facultativas. Dada a impossibilidade de as
evitar, o que parece crucial a D’Silvas Filho é que tanto Portugal como o
Brasil incorporem nos seus vocabulários ortográficos nacionais ambas as
variantes. E a sua posição é a de que qualquer grafia registada no
Vocabulário Ortográfico Português é de
uso legítimo em Portugal.
O linguista
lamenta que os que se opõem ao AO “não vejam a vantagem extraordinária que há
em unir a língua”, elogia os progressos do recém-apresentado Vocabulário
Ortográfico Comum, que está a ser desenvolvido pelo Instituto Internacional da
Língua Portuguesa (IILP), da CPLP, e que congrega já os vocabulários nacionais
de alguns dos países que ratificaram o acordo, e congratula-se por “estarmos a
caminho de poder organizar um dicionário para esta língua planetária”.
Mas o seu
entusiamo não o impede de criticar o que lhe parece menos conseguido. Preferia,
por exemplo, que “pára” mantivesse o acento, ou que “braço-de-ferro” não
tivesse perdido os hífenes.
“Devem fazer-se
aperfeiçoamentos”, diz, e espera que se possa aproveitar o actual trabalho no
âmbito do IILP para melhorar o AO, mas acha que, “depois de todo o trabalho
feito, não faria sentido suspender o acordo” para o corrigir.
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