“Écrasez l'infâme!”
RUI DE
ALBUQUERQUE 16/04/2015 - PÚBLICO
O corporativismo
universitário e profissional tem sido, na verdade, o maior inimigo das ditas
“universidades privadas”.
Vai já para mais
de vinte e cinco anos, no longínquo ano de 1989, Vasco Pulido Valente (V.P.V.)
escrevia, no desaparecido jornal O Independente, os seguintes comentários sobre
a universidade portuguesa (“Direito à Portuguesa”): “O Estado português paga a
Faculdade de Direito de Lisboa. Mas, pague ou não pague, os senhores
professores consideram-na propriedade sua e não planeiam partilhar com ninguém
os privilégios, o poder, os rendimentos que proporciona o estatuto de
catedrático (…). Bandos políticos, religiosos, maçónicos ou puramente pessoais
apoderaram-se de outras faculdades, institutos ou departamentos, que vêem e
administram como se fossem quintas particulares.”
Duas décadas e
meia depois, aparentemente reconciliado com a universidade pública, Pulido
Valente elege como destinatário da sua reputada acrimónia o ensino superior
privado e a liberdade de ensinar e de aprender. Foi o que fez num artigo
recentemente saído no PÚBLICO (“Basta o que basta”), usando como pretexto a
Universidade Lusófona.
Retomando a sua
prédica habitual sobre os “malefícios” de um ensino superior que não se esgote
num academicismo de elites, V.P.V. ataca a criação das “universidades
privadas”, que, segundo ele, “não passavam de um negócio, em que a produção e a
transmissão de ciência não ocupavam lugar e em que a educação não fazia parte
dos fins gerais da empresa”. E daí passa para a Universidade Lusófona e para um
caso que recentemente a envolveu com o Ministério da Educação, embora os seus
motivos reais sejam menos os dessa circunstância do que a forma como encara a
educação de nível superior. E é esta que merece alguma atenção, porque
representa o que ainda pensa sobre o tema boa parte da sociedade portuguesa retrógrada
e atrasada.
V.P.V. critica o
modo como ocorreu a “democratização do ensino”, que diz considerar “uma
política justa e necessária”, embora não explique como deveria ter sido
realizada em Portugal. Ao invés, condena todas as medidas que, melhor ou pior,
com mais ou menos sucesso, a ela efectivamente conduziram: a abertura das
universidades públicas a “milhares de adolescentes” (segundo ele, colocados “em
edifícios caducos do século XVIII ou XIX”), na década de 70, e a abertura das
“universidades privadas”.
É certo que até à
entrada em Portugal dos fundos da Comunidade Económica Europeia o país não
dispunha de meios humanos, nem de recursos materiais de excelência para
alicerçar o crescimento do ensino superior de que necessitava há muito. Porém,
ainda que admitindo a insuficiência desses meios e dos edifícios onde, num
primeiro momento, foram alojadas as novas universidades e cursos (a datação dos
prédios não será seguramente critério, sob pena de terem de ser compulsivamente
encerradas a maioria das universidades europeias, mesmo a de Oxford, onde
Pulido Valente estudou), certamente que terão sido mais adequados do que a
porta das universidades à qual teriam ficado milhares de jovens, que assim
veriam frustradas as possibilidades de estudar e se educar.
Já quanto às
universidades privadas, não é difícil descortinar na acusação de que teriam
transformado os sacrossantos templos de saber universitário num vil “negócio”
um verdadeiro preconceito estatista e jacobino contra a iniciativa privada. Bem
vistas as coisas, V.P.V. incorre no paradoxo de defender as tais universidades
“apoderadas” pelos “bandos” que fustigou no seu texto de 1989, contra
instituições que não devem nada a ninguém e que não vivem das benesses do
Estado, nem do dinheiro dos contribuintes, mas apenas da livre escolha dos seus
alunos. O que efectivamente o incomoda, a ele e a muitos que criticam as
“universidades privadas”, não é tanto a natureza do seu ensino, que se iguala
ao das universidades públicas no que elas têm de melhor, mas que tenham sido
elas os veículos da verdadeira “democratização” do ensino superior português. A
tal democratização que dizem defender, mas que efectivamente nunca estimaram,
porque lhes retirou o monopólio dos recursos que o Estado lhes destinava e os
proventos materiais que daí decorriam. O corporativismo universitário e
profissional tem sido, na verdade, o maior inimigo das ditas “universidades
privadas”. E do progresso e do desenvolvimento do país, já agora.
Ora, esta ideia
da universidade organizada pelo e ao serviço do Estado, distante das pessoas e
da sua livre escolha, decorre da mentalidade jacobina da Revolução Francesa,
que fez de universidade um monopólio do Estado, para que ela formasse
“cidadãos” ideologicamente orientados, em vez de indivíduos e homens livres. Por
isso, ainda hoje em França, o berço do estatismo europeu, o ensino superior é,
na prática, exclusivamente público: pertence ao Estado e às suas elites
dirigentes, aos tais “bandos” que também dele se apropriaram no Portugal do
passado, e que tanto e tão justamente incomodavam V.P.V. O que, no fim de
contas, está aqui em causa é a educação enquanto liberdade.
Em relação à
Universidade Lusófona, por causa da intimação do ministério para que a
instituição regularize administrativamente algumas dezenas de processos de
equivalências, o que o próprio secretário de Estado já veio informar que está a
ser feito, V.P.V. desafia, sem mais, o ministro a “fechar imediatamente a
Lusófona e entregar o caso à Procuradoria-Geral da República” (“Écrasez l'infâme!”,
diria Voltaire). E reforça mesmo este seu exaltado pedido chamando à colação a
desgraça que vitimou na Praia do Meco seis jovens alunos e licenciados daquela
universidade, fazendo-o de um modo que desmerece os seus pergaminhos
intelectuais. De facto, escrever, como escreveu, que esse trágico acidente foi
devido a práticas da universidade que “floresceram” graças à “absoluta
ignorância da gente em posições de autoridade, a quem incumbia garantir a saúde
e a segurança das crianças (porque eram crianças) que lhes tinham confiado”,
raia o surreal, porque seria patético e risível, não fora a dimensão da
tragédia que vitimou seis jovens por quem o autor dessas linhas demonstra um
desprezo pouco mais do que instrumental aos seus preconceitos. A não ser que Vasco
Pulido Valente, que também foi professor universitário, seja capaz de nos
convencer que no exercício dessa profissão zelava paternalmente pela “saúde”
das “crianças” que lhe foram “confiadas”, ao longo dos anos, enquanto alunos. Mas
custa-nos a creditar que alguém que foi um académico exemplar se tenha então
deixado levar por um zelo moral digno de um cura de aldeia.
Rui de
Albuquerque
Professor da
Universidade Lusófona
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