É a excelência, estúpido
TERESA DE SOUSA
19/04/2015 – PÚBLICO
Mariano Gago olhava-se como um
servidor do Estado. Ou melhor, o Estado era para ser servido (de preferência
pelos melhores) e não para se servirem dele.
1. Pensava
escrever hoje sobre esta estranha tranquilidade que paira sobre a Europa nestes
últimos dias. A Grécia continua no olho do furacão, mas às vezes até dá a ideia
de que já ninguém se importa. Permanece a falta assustadora de visão política
que vai para além do discurso dos défices e das reformas. Não o farei.
Sou obrigada a
falar de Mariano Gago, que faleceu na sexta-feira aos 66 anos de idade. Há
algumas coisas que sinto o dever de dizer, mesmo que não sejam as mais
importantes.
Conheci-o na
revolta estudantil de 1969. Os laços de cumplicidade que se forjaram aí
resistem a tudo. Era presidente da Associação do Técnico, eu estava em
Económicas mas a convivência era constante enquanto durou a crise. Não era um
contestatário igual a muitos outros. Lia com certeza Marx e Engels, mas também
os clássicos da literatura. Já era o que sempre foi. Mais preparado, mais
inteligente, a ver um pouco mais longe do que a Grande Revolução Cultural
Proletária. São estas as minhas memórias mais longínquas. A última vez que
falámos foi no almoço de aniversário do dr. Soares, em Dezembro. Estava igual a
si próprio, sempre afável, nem dei por que estivesse doente. Ontem vi na
televisão um reconhecimento da sua obra bastante generalizado. Não consigo avaliar
com rigor o grau de hipocrisia de algumas das declarações, mas, pelo menos,
este reconhecimento do seu papel crucial para nos colocar em matéria científica
muito mais próximo do nível dos países europeu mais desenvolvidos, significa
alguma coisa. Por uma vez, o país teve sorte: Mariano Gago teve tempo para
consolidar a sua política através do critério imbatível dos resultados, porque
esteve doze anos, primeiro no Ministério da Ciência e, depois, da Ciência e do
Ensino Superior. A breve interrupção de dois anos (Barroso-Santana) não chegou
para destruir o que ele já deixara feito. Hoje, quando vemos os nossos
cientistas a brilhar lá fora, mas também cá dentro, nos centros de investigação
de excelência, ninguém pode negar aquilo que o país lhe deve. O mérito também é
dos chefes dos Governos a que pertenceu. Em primeiro lugar, de António
Guterres, com os Estados Gerais que organizou para lançar as bases do seu
programa de Governo. Foi aí que Mariano Gago apresentou as suas propostas
revolucionárias (é mesmo o termo, porque eram absolutamente contrárias ao
status quo universitário, fechado, hierarquizado, feito de capelas e capelinhas
que defendiam do alto das suas cátedras tudo o que os não pusesse em causa). A
maioria das políticas que apresentou foi realizada. Abriu a ciência e o ensino
superior ao mundo, incluindo a internacionalização da avaliação, apostou na
criação de uma nova elite científica preparada lá fora, que não aprendeu só a
ciência mas também o modo como ela era feita nos países mais avançados. Em
suma, colocou-nos no mapa científico europeu, vencendo resistências que
pareciam impossíveis de vencer tendo como meta a excelência. Hoje, se os miúdos
começam de pequenos a entusiasmar-se pelas coisas científicas, é graças ao
Ciência Viva. Sem alarde, deixou ao país um legado único e, verdadeiramente, a
coisa mais importante que pode ainda garantir um futuro aos nossos filhos e aos
nossos netos. Hoje, toda a gente lhe tece elogios, mas foi contestadíssimo
enquanto governou pelos mesmos que agora se curvam perante o seu contributo
nacional. Assisti a vários episódios desses. Lembro um. Quando Mariano Gago
lançou as parcerias com algumas grandes universidades americanas, como o MIT,
assisti de boca aberta, confesso, a críticas ferozes à sua mania das grandezas.
Como sempre acontece neste país, os que diziam isso deixaram de falar sobre o
assunto a partir do momento em que os resultados se tornaram óbvios.
Lembrarmo-nos
disto tudo é tanto mais importante quanto a mentalidade da maioria que nos
governa vai em sentido contrário e muita gente que lhe é afecta tenta
convencer-nos todos os dias que criámos doutorados a mais e para nada. Olham
para a ciência como uma fábrica de salsichas, que se liga ou desliga conforme
as necessidades e ignoram um facto primordial: a ciência precisa de uma massa
crítica vasta e sólida para produzir a excelência e competir lá fora. É o mesmo
com a educação. Os países que hoje são ricos e desenvolvidos, acabaram com o
analfabetismo no início do século XX. Nós, sem esse efeito acumulado e
irrepetível, temos um esforço muito maior a fazer. E como não temos (nem
podemos ter) salários mais baixos do que Marrocos ou o Vietname, também não
temos grande alternativa a não ser utilizar aquilo que acumulámos. Perceber
isto é quase intuitivo. Quando ouço pessoas a brandir contra o excesso de
doutorados (nem sequer comparam com a média europeia, da qual só agora nos
estamos a aproximar), alegando que não têm emprego, dá-me vontade de sacar,
metaforicamente, da pistola. Sejam quais forem as dificuldades, esses
doutorados sabem pelo menos que dispõem de ferramentas que mais tarde ou mais
cedo lhes serão fundamentais para construir um futuro melhor. O saber que
adquiriram é-lhes útil, mesmo para fazer outras coisas. Quando Passos Coelho
vai ao Japão dizer que a nossa economia se prepara para ser um das mais
competitivas do mundo (fiquei de boca aberta), não está a pensar nos
doutorados, está a pensar nos salários baixos. O risco é que um dia destes as
famílias, que compreenderam que deviam investir na educação dos filhos mesmo
com imensos sacrifícios, comecem a achar que não vale a pena.
2. Perguntei a
Manuel Castells, há já um bom par de anos, qual era o factor principal do poder
norte-americano. Ele respondeu sem a menor hesitação: as suas universidades.
Pode ser que um dia seja assim também por cá. O essencial está feito. Também já
está parcialmente feita a outra parte, mais difícil, que é a transmissão do
saber para as empresas. Valente de Oliveira e Mira Amaral, no final dos
governos de Cavaco, tiveram a visão suficiente para criar a Agência de Inovação
(1993) dedicada a essa transmissão. Era apenas uma instituição embrionária.
Durante os doze anos que Mariano esteve no Ministério, ela funcionou com
resultados verdadeiramente notáveis. Há hoje incubadoras nas melhores
universidades para fomentar esta transferência. Os resultados acabarão por
chegar.
Quando o país
regressar à superfície, temos pelo menos um sólido ponto de partida para
reconstruir a economia. Com as empresas descapitalizadas, com a quebra brutal
do investimento público e privado, esta capacidade científica e tecnológica é o
que nos resta para atrair o investimento estrangeiro de que precisamos como de
pão para a boca. E é também o único caminho decente que nos resta para alimentar
a esperança no futuro. O mérito nunca é só de um homem. Muita gente contribuiu
para pôr em prática as suas políticas. Teve com certeza defeitos e até pode ter
errado em alguma coisa. Fez o que era preciso.
Mas há outro lado
da vida de Mariano Gago que é ainda mais raro, mesmo que comum a outras pessoas
que conheço da sua geração. Olhava-se como um servidor do Estado. Ou melhor, o
Estado era para ser servido (de preferência pelos melhores) e não para se
servirem dele. E o Estado era ou devia ser uma coisa séria e um instrumento
estratégico para ajudar a pensar o país. Pensava assim e a sua vida foi assim,
mesmo quando essa visão era esmagada por uma moda ideológica que via no Estado
um obstáculo burocrático e dispendioso. Era um grande cientista e tinha uma
vasta cultura. Vale a pena reler o seu Manifesto para a Ciência em Portugal.
Está lá quase tudo para perceber o que somos como país. Regressando a 1969,
talvez seja também importante dizer que, antes de tudo, para ele era preciso
conquistar a liberdade.
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