“Não estamos aqui para viver
vidas úteis, mas vidas belas”
VANESSA RATO
26/04/2015 - PÚBLICO
O conhecido economista checo Tomás
Sedlácek vê o capitalismo como a nova religião global, com a sua própria
cultura corporativa e escola ético-moral – a do egoísmo. Os novos padres não
diferem muito das antigas videntes de feira a olharem para bolas de cristal,
diz ele
Em 2001, com
apenas 24 anos, tornou-se consultor do presidente Václav Havel e cinco anos
depois a Yale Economic Review apontava-o como um dos cinco melhores jovens
pensadores na área da economia. O autor de Economics of Good and Evil esteve em
Lisboa como orador do fórum O Lugar da Cultura, organizado pela Secretaria de
Estado da Cultura. Pôs a hipótese de estarmos a atravessar não uma crise, mas o
momento a seguir ao clímax em que temos de voltar a traçar objectivos. Pediu
também que deixemos de parte o imperativo capitalista de nos consumirmos em
“vidas úteis” – Sedlacék, que vê a economia como um sucedâneo das humanidades,
diz que o que temos de ter são vidas belas.
Na sua
conferência começou por questionar se não estaremos hoje a viver uma espécie de
“depressão pós-coito” em relação à União Europeia e ao capitalismo. O que é que
isto quer dizer, exactamente?
Se pensarmos bem,
as nossas queixas contra a União Europeia (UE) e o capitalismo são muito
semelhantes. Em ambos casos achamos que o sistema de certa forma funciona, mas
o sentimento é de alheamento, de que o sistema tem uma lógica técnica própria
que poucos, se é que alguns, entendem, de que tem a estrutura, os ossos e os
ligamentos, mas lhe faltam a alma humana, um propósito e por aí fora. Toda a
gente lê a [actual] situação [de crise] como se o capitalismo e a UE não nos
tivessem dado suficiente, mas e se pudermos ler de forma oposta? Que em larga
medida a UE e o capitalismo nos deram tudo o que puderam. Que em breve poderá
chegar o tempo em que esgotámos a possibilidade de reformas e de novas ideias,
que a economia ocidental não poderá já prosseguir a sua marcha de forma tão
impressionante e que a integração em breve estará completa. E se o
não-crescimento não for um percalço mas sim uma tendência? Em psiquiatria, um
dos espoletadores surpreendentes da depressão é o atingir dos nossos
objectivos. Porquê? Se nos focarmos de mais nos objectivos e os atingirmos,
deixamos de ter sonhos, deixamos de ter motivo para acordar cedo pela manhã. A
motivação perde-se não porque o objectivo fosse impossível de atingir, mas,
precisamente, porque foi possível. O objectivo foi conseguido, o desígnio está
morto. Precisamos de encontrar uma nova fantasia – mas não temos a certeza de
qual. Não é esta, de certa forma, a nossa actual situação?
A UE e o
capitalismo já cumpriram os seus objectivos?
Nada é perfeito.
Até um programa de computador – o mais perfeito sistema criado pela humanidade,
previsível, matemático, exacto – bloqueia de tempos a tempos e passa por um
período de crise. Portanto, não estou a dizer que a UE e o capitalismo sejam
perfeitos, mas essa também nunca foi a promessa.
Permita-me uma
parábola. Um homem está a mugir uma vaca. A dada altura, a vaca deixa de dar
leite. Por isso o homem começa a gritar com ela e a bater-lhe. Então,
magicamente, a vaca abre a boca e pergunta: “Porque é que me estás a bater? Já
te dei todo o meu leite! E tu nem sabes quantos baldes! A única coisa que sabes
é que queres mais. Mas alguns dos teus baldes estão perdidos, outros a
apodrecerem, a entornarem-se... E bates-me por não te poder dar mais leite?” É
isto que tenho em mente. Que queremos medir o desenvolvimento – ou seja: o
leite fresco –, mas nem temos as estatísticas correctas nem queremos saber
quanto é que já temos. Tanto o capitalismo como a UE já nos deram muito leite,
mas criticamo-los por não nos darem mais. Isto não é uma crise do capitalismo,
é uma crise de crescimento do capitalismo. Eu olho para o capitalismo como olho
para a UE: não é um sistema muito bom, mas é o melhor que temos. Ponto número
um. Ponto número dois: a democracia precisa de estímulo, protecção e cultura
constantes para se manter democrática; a democracia é constituída por leis, mas
mais ainda pela cultura da democracia. O mesmo é verdade para o capitalismo.
Ambos morrem se não forem cuidados.
O capitalismo e a
UE já cumpriram os seus objectivos? O problema é que não sabemos realmente
quais são esses objectivos. Em relação à UE era a paz através do comércio. A
paz era o objectivo primário, o comércio o secundário. E temos paz dentro da UE
e temos comércio – o Norte da Finlândia faz trocas comerciais com o Sul da
Grécia com uma facilidade sem precedentes. Quanto ao capitalismo, nunca
discutimos objectivos. Até que o façamos ele nunca os vai cumprir.
Uma tomada de
consciência relativamente recente em termos colectivos na sociedade ocidental é
a da “inumanidade do capitalismo”. Parecemos querer o capitalismo, mas com um
rosto mais humano. É possível?
Sim. O capitalismo
será cada vez mais humano se trabalharmos nisso. Mas nunca será completamente
humano – pela simples razão de nem os humanos serem completamente humanos. Há
20 anos o capitalismo era muito diferente do que é hoje, não tinha quaisquer
preocupações ecológicas, nenhumas soft skills, e tinha Recursos Humanos muito
primitivos. Mas era, assim mesmo, capitalismo. Mudou por dentro. Há 100 anos, o
nosso capitalismo tinha trabalho infantil, mulheres completamente discriminadas
e protecção laboral zero – nem a mais extrema direita política quer isto hoje! O
capitalismo e a democracia precisam de massa crítica para funcionar melhor.
Na sua
conferência questionou também a hipótese de ao centro do capitalismo estar não
um vazio ético, como parece, mas, antes, uma escola moral muito forte. Que
escola é essa?
Pois, achamos que
a economia não tem ética nem cultura, que ao centro do sistema há um vácuo
moral e cultural, um vazio. Mas a realidade é bastante mais complexa. A
economia e os negócios já têm uma ética e uma cultura próprias: a ética do
egoísmo, de não querer saber do impacto das nossas acções porque a
misteriosamente invisível mão do mercado alegadamente toma conta disso, a
crença de que as pessoas existem para aumentar a sua utilidade, a postura de
que os mercados são racionais e se auto-regulam, etc. Isto compõe uma escola
ética muito forte. E que é contrabandeada para dentro do nosso sistema de
valores disfarçada de ciência com bases matemáticas. Na verdade, é uma
ideologia, uma nova religião global com a sua própria cultura corporativa,
ética, crenças e padres.
É uma escola
totalitarista? Por outras palavras: permite a existência de outras escolas de
pensamento ou é mais como uma religião proselitista e que não concebe a
coexistência de várias verdades?
Está entre as
duas coisas. É bom notar que os economistas acreditam na liberdade humana, no
livre arbítrio. Aos estudantes de Economia é que não é dada escolha entre
escolas, crenças, etc. Para mim, a Economia é um sucedâneo das humanidades e
deveria ser ensinada como tal. Imagine-se que numa área como a Filosofia apenas
uma escola de pensamento era ensinada aos estudantes! Muitas escolas de
Economia nunca usaram devidamente, ou usaram muito pouco, as ferramentas de
análise matemática disponíveis. Pense-se em Keynes, Hayek ou Schumpeter…
E qual o lugar da
arte no contexto de uma religião que concebe apenas a utilidade? Foi encandeados
por essa religião que começámos, por exemplo, a medir o impacto da arte e da
cultura no PIB dos países? Sim, como aconteceu com outros valores do passado, a
arte tornou-se num subproduto da economia – só é permitida se tiver uso
económico. Mas eu sempre pensei que a arte estava isenta do imperativo da
utilidade económica. Nem tudo na vida tem de ser útil, não me parece que
estejamos aqui para viver vidas úteis, mas sim para viver vidas belas e que
ofereçam o mesmo à maioria das pessoas.
Na sua conferência
comparou os modelos da economia contemporânea às antigas bolas de cristal das
videntes de feira. É esse o seu grau de desconfiança neles?
Até hoje os
teólogos debatem se Deus é ou não um ser omnipresente e com conhecimento
perfeito do futuro. Muitos acham que não. Então porque haveriam os economistas
de conhecer o futuro quando nem as entidades divinas o conhecem? E porque não
podem conhecer? Porque isso quebraria a possibilidade da verdadeira e
imprevisível liberdade humana. O paradoxo é que essa imprevisível liberdade é
uma das crenças centrais da Economia. Um modelo basicamente diz isto: se tudo
acontecer da maneira que esperamos, acontecerá da maneira que esperamos. Nunca
podemos antecipar as mudanças importantes, apenas escrever o prólogo das tendências.
Além disso, as estatísticas sobre o PIB só são estabelecidas
retrospectivamente, às vezes à distância de dois anos. Portanto, nem os
gabinetes de estatística sabem qual é o actual PIB de um país, quanto mais o
seu futuro PIB. Mas todas as religiões precisam de ter os seus profetas, os
seus videntes, aqueles a quem se pede que antecipem e interpretem o futuro.
E o que podem
esses videntes dizer com segurança sobre o papel da arte e da cultura?
Que a democracia
sem cultura morre, à semelhança do que aconteceu à economia como a conhecíamos.
Podemos ter dois países exactamente com as mesmas leis. Se um tiver homens de
negócios cultos, compreensivos e conscienciosos, esse país estará bem (mas,
mesmo assim, viverá flutuações na economia, é inevitável). Se o outro país
tiver as mesmas leis mas não tiver cultura, apenas egoísmo cego e autista, nas
artes, na economia, na política, esse país será um sítio mau e triste onde
viver.
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