Não são apóstolos, mas são
crentes
PEDRO SOUSA CARVALHO 24/04/2015 / PÚBLICO
António Costa
encomendou a um grupo de 12 economistas a preparação de um documento que
servirá de inspiração para a elaboração do programa eleitoral dos socialistas. Agora
caberá aos órgãos sociais do PS fazer uma avaliação política. Na comissão
política nacional do partido já houve quem torcesse o nariz e olhasse para a
proposta do “despedimento conciliatório” como uma grande guinada neoliberal. Não
é de admirar. Grande parte das ideias do documento, sobretudo as relacionadas
com o mercado de trabalho, vem dos trabalhos e dos livros de Mário Centeno, um
economista que veio de Harvard com ideias liberais. Um académico que, por
exemplo, em relação ao salário mínimo nacional, tem uma opinião diametralmente
oposta à de António Costa. O que só abona em favor de Costa o ter contratado. Economistas
"yes-man" já os deve ter de sobra no Largo do Rato.
Mas como já
admitiu o secretário-geral do PS, “este é um relatório técnico, não é a Bíblia,
nem estes senhores, que são economistas, são os apóstolos”. São doze, mas é
mera coincidência. Não são apóstolos, mas são crentes. Se algum dos apóstolos
se chamasse Tomé e olhasse para as previsões do cenário macroeconómico do PS,
era capaz de desconfiar e de querer ver para crer. Desemprego de 7,4% no final
da década? E a maioria prevê 11,1%? Mas isto são previsões de economistas.
Valem o que valem, ou seja, valem muito pouco. Outros 12 economistas que não
estes seriam capazes de jurar a pés juntos que as previsões são outras e não
estariam a blasfemar.
Mas o que importa
são as medidas. Há boas, há umas assim-assim, e há outras que são um desastre. Vamos
por partes.
2. Mandar às
urtigas a reforma do IRC de António Lobo Xavier, que até foi aprovada com os
votos dos socialistas, é um disparate monumental. A grande vantagem dessa
reforma estrutural, além do factor competitividade, foi a de aumentar a
previsibilidade e garantir estabilidade ao investimento. Como diz António
Saraiva da CIP, “não se pode mudar as regras do jogo de dois em dois anos”. A
não ser que estejamos a jogar à roleta russa com a economia. O mesmo se podia
dizer da proposta para acabar com o quociente familiar. Ainda nem sequer se
passaram nove meses da aprovação da medida — nem sequer deu tempo para nascer
um único bebé — e já estão a tirar o tapete àqueles que acreditaram nesta
medida como sendo de promoção da natalidade.
3. Porquê baixar
a TSU das empresas? Ao dizer que vamos reduzir em quatro pontos percentuais a
contribuição para Segurança Social que é suportada pelas empresas estamos
implicitamente a admitir que os patrões em Portugal gastam muito com o factor
trabalho. Isto é contraditório com o que diz o próprio relatório que fez
questão de lembrar, e bem, os salários miseráveis que são pagos em Portugal. A
não ser que queiramos seguir a política de Manuel Pinho que há uns anos foi à
China e apresentou os baixos salários portugueses como sendo uma vantagem
comparativa. Ir à China “vender” salários baixos é como ir ao Alasca vender
frigoríficos.
4. Aumentar
salários agora para cortar pensões no futuro? É uma proposta para guardar na
gaveta, fechá-la à chave e atirar a chave para um lugar onde ninguém a
encontre. O que o grupo de trabalho propõe é uma redução em quatro pontos da
TSU suportada pelos trabalhadores durantes quatro anos, e em contrapartida os
beneficiários iriam ter pensões mais baixas no futuro. O que o PS estaria a
fazer seria aumentar salários dos trabalhadores com o dinheiro que já pertence
aos trabalhadores. Seria fazer uma espécie de PPP com a Segurança Social, ou
seja, pagar os benefícios presentes com rendimentos que se espera ter no
futuro. Além disso, aliada à descida da TSU das empresas, estaríamos a abrir um
buraco de dois mil milhões na Segurança Social. E para mais, como fez questão
de lembrar Bagão Félix, a medida até pode ser contraproducente, já que os
patrões vão dizer: “Aumentos salariais? Já os têm. O Estado fê-los à custa da
Segurança Social.”
5. António Costa
propõe a reposição dos mínimos sociais, ou seja, a reposição dos níveis de
apoio do RSI, do complemento para idosos e do abono de família. Ainda bem que
alguém se lembra de que, abaixo daqueles que têm salários baixos, existem
aqueles que pouco ou nada têm. A política social andava perdida algures nalguma
gaveta poeirenta no Terreiro do Paço. Mas é importante aproveitar uma herança
do passado, que foi o esforço meritório feito pelo actual Governo para fazer
depender ainda mais as prestações não contributivas da condição de recursos. O
importante é ajudar quem precisa e evitar que quem não precise receba de forma
indevida.
6. Por fim, Mário
Centeno propõe duas alterações estruturais de sinal contrário no mercado de
trabalho, mas que se complementam. A proposta passa por limitar os contratos a
prazo ao máximo, mas em contrapartida facilitar o despedimento daqueles que têm
contratos sem termo, criando uma nova modalidade de despedimento individual que
provavelmente tornará os despedimentos por extinção de posto de trabalho e por
inadaptação irrelevantes. É o chamado “regime conciliatório de cessação do
contrato de trabalho”, que na prática permite à empresa usar os argumentos mais
flexíveis do despedimento colectivo para despedir um trabalhador individual.
Esta medida
provavelmente não passará no crivo da ala mais à esquerda do PS, mas ao
contrário das alterações feitas em 2012 ao Código de Trabalho — cujo único
intuito foi o de embaratecer o factor trabalho (desde a contratação ao
despedimento) —, existe um racional implícito que é o de aumentar a
produtividade. A medida parte da premissa de que sem estabilidade laboral nem o
empregador nem o empregado assumem uma relação laboral produtiva de médio ou
longo prazo. E, na sua vertente mais liberal, diz que se a empresa estiver em
dificuldades económicas, a porta da rua é a serventia da casa. De que vale ter
um contrato para a vida se a empresa vai à falência? É um modelo sobre o qual
vale a pena reflectir.
Sem comentários:
Enviar um comentário