História social da
"cunha"
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 18/04/2015 - PÚBLICO
A origem das “cunhas” cobre todas
as classes sociais e todas as áreas da sociedade.
Nos espólios que
tenho organizado relativos ao século XX português há uma constante que os
atravessa a todos, sejam de que natureza for, que é a presença maciça de
“cunhas”. Literalmente milhares de “cunhas”, que aumentam quanto mais poderosas
forem as funções daquele a quem se pede um favor.
Mas esta regra
não é assim tão evidente, visto que há também muitas centenas de “cunhas” para
pessoas que não tendo altas funções na burocracia do Estado estão colocados
numa situação estratégica para concederem favores pessoais de emprego e de
carreira. Dada a natureza dos espólios em que tenho trabalhado, a maioria das
“cunhas” exerce-se em relação ao Estado e aos seus corpos e, depois do 25 de
Abril, aos partidos políticos ou por via dos partidos políticos tendo também
como destinatário o Estado. Os partidos políticos tornaram-se com o tempo e a
democracia o lugar da “cunha”, com maior enfâse para os que acedem ao poder
político central, mas também com grande dimensão ao nível autárquico.
Tendo lido muitas
destas “cunhas” em cartas clássicas, notas de telefonemas, notas pessoais, etc.
não tenho dúvidas em afirmar que quem não dá um papel central na história
social portuguesa à “cunha” não conhece Portugal. Faça-se a justiça de dizer
que o nosso país não é caso único, a “cunha” e o patrocinato estão muito mais
disseminados pela Europa, mais a Sul do que a Norte, do que se pensa. Acrescento
mais: penso que o papel da “cunha” pouco diminuiu na sociedade portuguesa, como
alguns pensam. Só mudaram os processos e os destinatários, e com o declínio de
muita da nossa economia, em particular na indústria, o Estado tornou-se o
verdadeiro centro das “cunhas” e os aparelhos partidários o seu principal
veículo.
Trato aqui
essencialmente da “cunha” individual, a favor do próprio, quase sempre
associada ao emprego ou a movimentos numa carreira, nomeações e retribuições, e
nalguns casos recompensas, condecorações, para o próprio ou para os seus
próximos, familiares, amigos, correligionários e conhecidos. “Pedidos” de outra
natureza implicando benesses, interesses, negócios, também são comuns, mas são
em muito menor número e só raramente estão no limite do tráfico de influências
ou da corrupção sugerida ou tentada. Tal tem a ver com a natureza dos
interlocutores, mas pode também estar sub-representado pelo facto de estarmos
ainda num mundo em que o papel, a carta e a correspondência, são quase o meio
único de contacto, o mundo antes do email. E há coisas que não se colocam num
papel.
Os espólios que
tenho em mente, dois são de personalidades de relevo político na vida pública
depois do 25 de Abril, um Primeiro-ministro e um Presidente da Assembleia da
República, outro é um advogado oposicionista, abastado e de uma família com
meios, que também prosseguiu a sua actividade política depois do 25 de Abril e
os outros, mais antigos no tempo, um é de um militar de carreira, de patente
média, mas colocado no Estado-Maior, outro de um ministro do Estado Novo. Com
excepção deste último, que é de menor dimensão, todos incorporam milhares de
documentos, correspondência, etc. e cobrem desde a primeira república até ao
início do século XXI. E todos estão cheios de “cunhas”
A origem das
“cunhas” cobre todas as classes sociais e todas as áreas da sociedade. Há
algumas “cunhas” que se percebem ter origem em pessoas muito “humildes” e há
“cunhas” vindas de pares do destinatário e nalguns casos de seus superiores. Do
mesmo modo, não há uma diferenciação significativa entre as “cunhas” de pessoas
quase analfabetas, que lutam com a caligrafia para escrever uma simples carta,
e professores universitários e intelectuais: todos exercem a activa tarefa de
meter “cunhas”.
No caso do militar
referido, que coleccionava meticulosamente a correspondência que recebia
atando-a com um cordel, e que atingiu a patente de coronel, há um número
significativo de “cunhas” de militares com patente superior, com uma boa
representação de oficiais-generais. Ele acelerava os “processos”, autorizava ou
impedia transferências e isso tinha muito valor. No caso do advogado é pedida
muitas vezes a sua “recomendação” para um colega ou amigo, visto que o meio que
frequentava o colocava em contacto com pessoas que eram “dadoras” de emprego.
As cunhas aos
políticos de topo ou são “pedidos” de anónimos que pretendem ver rectificada
uma situação que pensam ser prejudicial e injusta, ou são, “pedidos “ vindos de
personalidades partidárias que usam essa condição para pedirem, ou em muitos
casos reivindicarem, lugares como os de deputado, ou lugares tidos como sendo
de confiança política, na administração central e local. As “cunhas” para
lugares de deputados, associados a muita intriga contra outros pretendentes ao
mesmo lugar, são reivindicadas em nome da biografia e fidelidade partidária: eu
que fiz isto e aquilo pelo “nosso” partido tenho direito a ter este lugar ou
esta nomeação. Outra fórmula muito comum, é “essa” administração (de uma
empresa pública, por exemplo) é constituída pelos “outros”, que não fazem outra
coisa que não seja prejudicar os “nossos”, pelo que deve ser mudada e aqui
estou eu disponível. Para a Caixa, para a CP, para a TAP, para o Porto de
Lisboa, para este Hospital, para estes Serviços Municipalizados, etc.
Pensava eu que
havia algum incómodo e vergonha em pedir “cunhas”, mas parece tão natural que
não espanta quem pede, nem quem a recebe. Pedir uma “cunha” é colocar-se numa
situação de ficar a dever um favor e presumia eu que havia um factor de
humilhação em fazê-lo. Mas isso não impede que haja pessoas que metem “cunhas”
a seu próprio favor como quem respira. Aliás a generalização da “cunha” a todos
os níveis sociais como uma prática não só consentida como aceite com
normalidade, é um dos factores mais decisivos para a baixa qualidade dos
serviços públicos e da burocracia portuguesa.
A massificação
desses serviços, com o aumento dos funcionários, depois do 25 de Abril teve o
efeito positivo de diminuir a relevância da “cunha” individual, embora não a
afastasse das carreiras e hierarquias. Tive ocasião de conhecer bem, antes do
25 de Abril, uma instituição, uma grande biblioteca municipal, em que
praticamente toda a gente, do director aos funcionários que recebiam as
requisições e iam buscar os livros, estava lá por “cunha”, naquilo que era tido
como um prémio de um trabalho fácil, sentado a dormitar a um canto. O pesadelo
que isso representava para os leitores comuns era enorme. Como era também regra
nesses tempos, quando o leitor era um amigo do director ou alguém de relevo na
micro-sociedade do Estado Novo, os salamaleques e a diligências eram penosas de
se ver.
Depois do que li
nesses papéis, uns mais antigos e outros menos, coloquei-me a dúvida: será que
nada mudou? E inclino-me para responder que não, pouca coisa mudou. A “cunha”
continua a ser crucial na vida portuguesa, embora hoje tenha outros nomes e
outra circulação. Mas a proximidade ao poder, a qualquer poder, continua a ser
uma vantagem enorme na obtenção de vantagens injustas e no bloqueio ao mérito
Os
“facilitadores” vivem desse mundo e olhando para certas carreiras mesmo no topo
do estado a pergunta é como é que chegaram lá. Como é que meia dúzia de pessoas
sem qualquer carreira, saber académico, experiência de vida, trato do mundo,
podem mandar nalguns casos mais do que um Primeiro-ministro ou um Presidente da
República, ao deterem o controlo dos partidos?
A resposta é:
meteram muitas “cunhas” e prestaram muitos serviços numa fase da vida, e
facilitaram muitas “cunhas” noutra. São espertos e hábeis. Conhecem-se entre si
e sabem melhor do que ninguém as regras do jogo. Uns sofisticaram-se, outros
não, mas há “espaço” para todos. Mas o seu efeito na vida pública é baixar os
níveis de qualidade, estiolar a competição política, controlar o seu território
com mão de ferro, e gerar à sua volta um círculo de iguais. E pôr em risco a democracia.
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