As Lojas
tradicionais da Baixa: Desafios Presentes e Futuros / António Sérgio Rosa de
Carvalho / Baixa Pombalina: Bases para uma Intervenção de Salvaguarda / Pgs.
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Príncipe Real Enxovais, Lisboa
“Venho encomendar um
enxoval”
ALEXANDRA PRADO
COELHO (Texto) e MÓNICA CID (Ilustração) / PÚBLICO
Vieram princesas,
rainhas e estrelas de Hollywood, todas para comprar os bordados de Maria
Cristina de Castro. Uma loja mundial no Príncipe Real.
Imagine-se o que
seria 30 mulheres numa casa, cada uma agarrada ao seu bordado, ponto disto,
ponto daquilo, conversas infindáveis, rendas de bilros, meninas concentrem-se,
ai enganei-me… uma confusão. Era assim a casa de Vítor Castro quando ele era
criança. “Nasci praticamente debaixo das saias das bordadeiras”, gosta de
dizer. Ele não borda, mas sabe tudo daquela que foi toda a vida a profissão da
mãe, Maria Cristina de Castro, e que deu fama mundial à loja de que hoje toma
conta (a mãe morreu há três anos), a Príncipe Real Enxovais, na Rua da Escola
Politécnica.
De tal maneira
Vítor faz parte desta história que, recorda, foi ele quem um dia, passando por
aquela rua que percorria todos os dias com os amigos a caminho do Liceu
Francês, reparou que a alfaiataria que há muito se habituara a ver ali estava
fechada e tinha na porta um cartaz com uma cruz. O alfaiate morrera e o espaço
era perfeito para aquilo que a mãe precisava: uma loja onde pudesse mostrar o
seu trabalho.
Meteram mãos à obra e procuraram os móveis
certos para a decorar. Olhamos em volta enquanto ouvimos as histórias de Vítor
Castro e reparamos melhor nesses móveis, cor verde-água e florzinhas pintadas,
nichos onde se empilham, cuidadosamente dobradas, toalhas, lençóis,
guardanapos, camisas de noite. Vítor Castro regressa ao passado, a uma noite de
1960 em que, já fora de horas, terminavam de arrumar tudo na loja,
preparando-se para a inauguração do dia seguinte, quando, de repente, começam a
aparecer pessoas. Vinham do Teatro de São Carlos, tinham notado a luz na montra
e queriam comprar tudo o que Maria Cristina de Castro tinha para vender. Não
podiam ter desejado um início mais auspicioso.
Houve outro dia
em que, de repente, a loja dos enxovais foi inundada de flores. Maria Cristina
não entendia porque é que chegavam tantas flores em seu nome e ainda por cima a
elogiar a forma como tinha cantado. “Nunca a ouvi cantar tão bem, foi
sensacional”, diziam os cartões — e logo a ela, que não cantava. Só depois
percebeu que havia uma cantora lírica que tinha o mesmo nome que ela e as duas
tornaram-se até cúmplices — quando Maria Cristina, a cantora, recebia em sua
casa tecidos de qualidade para bordar já sabia que tinha de avisar a sua
homónima para os ir buscar.
A loja foi um
sucesso. Vieram as senhoras da alta sociedade, Champalimaud, Mello, Espírito
Santo — “a madame Mary Espírito Santo trazia aqui muita gente” — grande parte
delas já clientes de Maria Cristina, e espalharam a notícia. Espalharam-na
tanto que vieram até rainhas e princesas de terras distantes. Vítor Castro
conta, orgulhoso, que entre as clientes dos enxovais que a mãe fazia estiveram
Grace Kelly e a filha, Carolina do Mónaco, a rainha Sofia de Espanha, a rainha
Ana da Bélgica e, claro, estrelas de Hollywood — “o maior enxoval que até hoje
se fez aqui foi o da primeira mulher de Michael Douglas, Diandra”.
Eram tempos em
que havia 10, 20, 30 encomendas de enxovais num mês. Hoje essa frase “venho
encomendar o enxoval” já quase não se ouve. Não é só a crise. É a concorrência
dos produtos industriais, que não dão trabalho a passar a ferro. “Estas lojas
estão todas a fechar. Neste momento, em artigo bordado manual somos únicos no
país. O resto é artigo de fábrica.”
Vítor Castro
levanta-se, abre uma gaveta de um dos armários que escolheu com a mãe quando
tinha 12 anos e tira um pano bordado com flores e pássaros. Quando uma das suas
clientes — neste caso uma condessa — lhe pede um trabalho como este, ele vai à
procura das bordadeiras antigas, as que ainda sabem fazer renda de bilros ou
bordar com um bastidor, para que o direito e o avesso fiquem exactamente
iguais, e pede-lhe por favor que, apesar dos 70 anos e da vista fraca, faça
mais estes bordados. Porque se há coisa que ele aprendeu foi que “o bordado não
tem nacionalidade, ou é bom ou é mau, e para ser bom o avesso tem de ser igual
ao direito”.
Será este um
mundo que está a acabar? Vítor Castro acredita que não, que a filha mais nova,
que tem o mesmo nome da sua mãe, vai dar continuidade ao negócio, que a antiga
loja, “de carácter e tradição”, vai sobreviver e que voltarão a entrar pela
porta mães e avós, prontas a casar as filhas e netas, e a anunciar, como num
eco de outros tempos: “Venho encomendar um enxoval.”
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