Passar o Rubicão, ou o programa
do PS
Francisco Louçã /
22 de Abril de 2015 / PÜBLICO
“Uma década para
Portugal”, o relatório ontem apresentado por António Costa e Mário Centeno, é o
primeiro esboço do programa eleitoral do PS. Com alguma confusão, porque o
texto tanto é “um virar de página” como “não é uma Bíblia”. Em todo o caso, foi
galhardamente apresentado e não é um “cenário”, nem uma mera proposta à
consideração, é um plano concreto que marca mesmo o começo da campanha
eleitoral do PS.
Um plano de
horizonte curto e de nome equivocado: o título é “Uma década para Portugal”,
mas o plano é só para cinco anos. Evita assim a projecção dos seus números para
além de 2019. Mas ainda bem que foi publicado, porque era necessário desde há
muitos meses. Espero que os outros partidos façam o mesmo, contribuindo para o
debate público e para tornar evidentes as suas propostas, os seus custos e os
seus efeitos.
O entusiasmo deslumbrado
O texto
desencadeou um eflúvio de entusiasmos. Um jornalista bem preparado, Pedro
Santos Guerreiro, normalmente mais contido, foi desta vez impositivo: “Queriam
uma política de esquerda, anti-troika e centrada nos trabalhadores? Ei-la,
apresentada por um grupo de economistas no Largo do Rato. Nunca o PS foi tão
diferente do PSD. Depois disto, António Costa e Passos Coelho nunca poderão
estar no mesmo governo”.
Um blog
oficialista do PS conseguiu ser mais moderado, mas afinou pelo mesmo diapasão:
“O contraste entre o documento do PS e o DEO governamental é significativo. A
única coisa em comum é o respeito pelas regras europeias”.
Pedro Lains,
analista qualificado, desdobrou-se em parabéns aos autores, declarando mesmo
dispensar-se de conhecer o modelo: “Faltava a encomenda, que em boa hora
chegou. Já li, já gostei e gostei do conteúdo eminentemente político, assim
como da forma política como foi apresentado. Tão político que nem peço para ver
o modelo formal, que um dia deverá ser depositado em lugar público. Parabéns, é
a palavra certa”.
Lains tinha
gritado uns dias antes a sua angústia a propósito do ultraje que representa a
proposta do governo para a redução da TSU patronal, porque “a descida da TSU
beneficia sobretudo as maiores empresas, aquelas que mais aparecem nas
fotografias do Governo”. Nesse texto criticava o silêncio do PS e exigia uma
alternativa ao disparate da redução da TSU patronal: “Entretanto, o PS não
reage ou reage com pouca força. Um discurso aqui e outro ali não chegam. É
preciso uma equipa a repetir o sentimento de ultraje relativamente à medida proposta.
O tempo dos estudos, dos ‘modelos’, está a acabar. São precisas vozes.
Juntem-se, falem em conjunto, repitam a mesma palavra sempre que são ouvidos, a
ver se a mensagem de ultraje não passa para cá. Sem isso, o Governo não deixa
de fazer a agenda. Eles têm equipa, naturalmente. Queremos uma — e só uma — no
maior partido da oposição. E não é pedir muito. Afinal, trata-se de saber que
governo alternativo propõem, quem são as pessoas que lá vão pôr, quais são as
ideias que essas pessoas têm para o lugar que querem conquistar. A normalidade
democrática é isso mesmo. É demais, esta coisa da TSU, novamente. Se não for
desta que ouvimos vozes de ultraje generalizado, será quando?”.
Quando o PS
rompeu o silêncio e apresentou as suas propostas, terá Lains reparado que o
relatório, tão cheio de parabéns e cujo modelo nem precisa de ser lido, propõe
precisamente a redução da TSU patronal, sem que isso o ultrajasse?
O facto é que,
uns por terem lido e outros por não terem lido, muitos correram a felicitar o
relatório e o seu relator, Mário Centeno, bem como a iniciativa patrocinada por
António Costa. No Expresso, Henrique Monteiro foi talvez a única excepção e
concluiu, com algum prazer, que esta escolha do PS é um corte com a esquerda,
“um corte claríssimo a partir deste documento”. Em contrapartida, o DN garante
que “o PS encosta à esquerda”. Em que ficamos então? “Uma política de esquerda,
anti-troika e centrada nos trabalhadores”, “encosta à esquerda” ou faz um
“corte com a esquerda”?
É o que vou
discutir de seguida, apreciando primeiro a escancarada ideologia do documento,
depois as suas medidas concretas e, finalmente, avaliando a sua viabilidade.
A ideologia do mercado
O relatório (com
as suas propostas) é claramente ideológico. Isso pode ser bom ou mau, ideias
são sempre precisas e ainda bem que são apresentadas com clareza. Mas o que
escreve não é o que estamos habituados a ler ou a ouvir, nem sequer no PS. Há
um deslizamento para posições que o leitor ou a leitora apreciarão por si.
Primeiro exemplo,
a função do Estado. Ouviu falar do Estado regulador, do Estado estratego ou de
investimento público? Esqueça tudo. O texto, logo quando apresenta os seus
objectivos, afirma que se pretende “Reforçar a credibilidade e a qualificação
do Estado concentrando‐o nas suas funções exclusivas de soberania (funções soberanas, regulação,
salvaguarda de interesses estratégicos nacionais) bem como nas de prestação de
serviços com relevância para a sociedade (educação e saúde) e no seu
insubstituível papel de redistribuição de riqueza e proteção contra os riscos”
(p.9). Investimento público? Nada. Porque “na actual conjuntura os meios de que
se pode dispor são extremamente limitados” (p.27).
Estado estratego?
Nem vê-lo. Não há no relatório nenhuma estratégia para conduzir ou influenciar
a economia e, por isso, a direita que ontem o criticou não tem razão: não há
qualquer regresso aos modelos de investimento em infraestruturas de José
Sócrates, nem qualquer outro e diferente investimento estratégico. Esqueçam
mesmo a herança do governo Sócrates ou qualquer alternativa para investimento
público qualificante. De facto, o relatório propõe a continuação da redução
significativa do investimento do Estado, seguindo Passos Coelho.
Segundo exemplo:
ouviu falar em crítica aos despedimentos e à ignomínia da política de promoção
do desemprego? Esqueça tudo. Já nem há despedimentos, há simplesmente
“separações entre empresas e trabalhadores” (p.10).
Terceiro exemplo:
ouviu falar de crítica à desvalorização interna, ou seja, ao corte nos salários
por via da prepotência das políticas governamentais e da troika? Esqueça esse
detalhe. É o mercado que se “ajusta”: “Importa ainda destacar que, ao contrário
do que é frequentemente referido, o mercado de trabalho revela capacidade de
ajustamento dos salários, registando-se no período mais recente reduções de
remuneração nominal na ordem do 20% quer por via dos novos contratos quer dos
trabalhadores que permanecem” (p.20).
Quarto exemplo:
ouviu falar de recuperação dos contratos colectivos, do valor da negociação e
do compromisso? Dispensável, o contrato colectivo já só deve servir para os que
recebem salário mínimo (que são precisamente os que têm o salário fixado por
lei e não por contrato): “Somente para os trabalhadores que auferem o salário
mínimo a contratação colectiva tem algum impacto e este deve ser acautelado”
(p.21.)
Quinto exemplo,
os despedimentos na função pública chamam-se “racionalização de efectivos”
(p.64). Onde é que já ouviu isto?
Sexto exemplo,
este de uma ideologia bizarra, porque dificilmente se entende o que quer dizer:
o documento defende a “criação de um sistema de relações laborais mais justo,
porque protege a rotação dos trabalhadores” (p.34), sendo que noutras páginas
se critica precisamente o excesso de “rotação” dos trabalhadores. Resultado de
umas páginas serem escritas por um e outras por outro, tudo passado a pente
fino pela ideologia.
É o mercado, meus
amigos. Nunca o PS escreveu, em particular sobre o “mercado de trabalho”, um
texto tão acentuadamente liberal na ideologia e liberal na política.
O que lá não está
Dirão os leitores
mais desconfiados com a inclinação política ou económica deste cronista: lá
está ele a pegar por frases ou ideias, o que importa é o que o PS quer fazer e
vai fazer, acabar com a austeridade. Uma beleza. Terá razão o protesto, porque
importa mesmo o que se faz mais do que o que se diz. Vamos então ver a política
concreta do relatório. Começo pelo que lá não está, antes de verificar o que
está.
Os funcionários
públicos esperavam as 35 horas? Nada. Esperavam a devolução dos dias de férias?
Nada. Esperavam a restituição do valor do salário? As decisões do Tribunal
Constitucional não são cumpridas, o PS limita-se a propor uma restituição em
dois anos, ao contrário dos quatro do PSD e CDS.
Os desempregados
esperavam a reconstituição das indemnizações por despedimento ou dos valores
dos subsídios de desemprego? Não pense nisso.
Os trabalhadores
esperavam os feriados de volta? Nada. Os reformados esperavam o seu nível de
pensão reposto? A decisão do Tribunal Constitucional não é cumprida, esperem
dois anos.
Os cidadãos
esperavam a rejeição da privatização da TAP? Nada, até são prometidas mais
privatizações, embora o PS se tenha dispensado de nos dizer quais.
Mas o que também
não está é a reestruturação da dívida
No entanto, o
ponto essencial é a falta de qualquer ideia – e antes a confirmação da rejeição
– de reestruturação da dívida pública. Com este relatório, o PS põe uma pedra
sobre o assunto e corta as pontes de diálogo com a esquerda. Não haverá nenhuma
iniciativa nem proposta para corrigir o peso da dívida pública e da dívida
externa.
António Costa já
o tinha dito, não se mete nisso porque levaria com a porta na cara em Bruxelas.
Mas tinha apresentado duas alternativas: uma “leitura inteligente” do Tratado
Orçamental e um pedido de financiamento europeu para um programa de
recuperação. O pedido de financiamento desapareceu, nem resta sombra dele. A
leitura “inteligente” ficou reduzida à expectativa de uma “redução dos spreads
dos países mais afectados” (p.25) e de que não seja contabilizada em défice a
perda de receitas com a segurança social (p.49). Não existe qualquer proposta
para uma negociação sobre interpretações ou regulamentos do Tratado Orçamental,
ou normas ou o que quer que seja que permita imaginar que sejam aliviadas as
imposições drásticas de um Tratado que é incumprível.
Pelo contrário,
as regras do Tratado Orçamental são para aplicar à letra, para atingir “o quase
equilíbrio estrutural das contas públicas e a redução do endividamento” (de
acordo com o Tratado, p.11). Durante vinte anos, teremos austeridade e
obediência.
Chama igualmente
a atenção o facto de não haver uma palavra sobre o sistema de crédito. A banca
não existe para o relatório. BCP, BPN, BPP, BES, BPI, Montepio, não existem,
não se passou nada, não se passa nada. O balanço dos bancos, a sua dívida, os
seus riscos, esse é um “mercado” que não é incomodado nem sequer referido pelos
autores deste programa económico. Não faz nada, tudo ao molho e fé em Deus.
Depois, o
relatório faz contas sobre o Orçamento mas não existe Serviço Nacional de
Saúde. Não entra na conta. Não entra nas preocupações nem nas prioridades. Não
se muda nada neste domínio. Ausência estranha e preocupante, considerando a
orientação liberal do relatório e a importância que o tema assumiu na nossa
vida colectiva.
Finalmente,
nenhuma alteração da estrutura do IRS, a não ser terminar a sobretaxa (p.47).
Se esperava a aplicação do princípio constitucional do englobamento dos
rendimentos, de modo que as mais-valias ou rendimentos de capital paguem como
os rendimentos do trabalho, não será nunca com esta proposta. Tudo igual.
Como se muda ou
não muda noutros domínios, é o que se vai ver a partir daqui.
Milagre no emprego: trezentos mil
empregosO texto
garante uma gigantesca criação de emprego: 300 a 350 mil empregos até
2019, reduzindo o desemprego “oficial” para metade em quatro anos, mesmo que
para um nível que o anterior primeiro-ministro considerava “inaceitável”. Essa
criação de emprego depende de um milagre: o aumento do investimento “em 25% até
ao fim da legislatura” (p.93), ou 2019. O número exacto é 31,4%, mesmo assim só
conseguindo repor o nível anterior à crise. Mas porque é que o relatório
presume que vai haver este entusiasmo de investimento por parte das empresas?
A primeira
hipótese é que o PIB real cresça imenso: aproximadamente 12,6% até 2019. Mas
isso, sendo uma expectativa manifestamente optimista, pois não há memória de a
economia portuguesa ter crescido assim nos últimos vinte anos, mesmo antes do
euro, e não é suficiente para induzir um tal crescimento do emprego. A projecção
é irrealista, não tem precedente histórico nem tem instrumentos para a tornar
possível.
A segunda
hipótese é que a redução dos “custos do trabalho” (em 4%), conjugada com as
alterações das relações laborais, favoreça a confiança das empresas e dos
investidores. A minha interpretação é que o relatório considera que este é o
factor decisivo.
Facilitar os
despedimentos colectivos
Como já
assinalei, o relatório propõe prosseguir, sem interrupção nem perturbação, a
política de Passos Coelho e de Portas para o mercado de trabalho. Não há
restituição de horas de trabalho, de feriados, de dias de férias, não há
alteração das regras para os despedimentos, nem dos subsídios de desemprego,
nem das indemnizações pela “separação entre os trabalhadores e as empresas”.
Mas o relatório
apresenta uma ideia nova: facilitar os despedimentos colectivos, através de um
“regime conciliatório e voluntário, em que as empresas podem iniciar um
procedimento conciliatório, em condições equiparadas às dos despedimento
colectivo” (p.31). A troca é esta: neste caso, e só neste caso, os despedidos
ficam com uma indeminização maior, aceitando um processo mais expedito e sem
recurso ao tribunal.
Mário Centeno é
defensor de um “contrato único” que possa responder às “dificuldades dos jovens
no mercado decorrem da legislação de proteção ao emprego” (O Trabalho, Uma
Visão de Mercado, p.69), pelo que, contrariando a “ilusão protecionista”, será
necessária uma reforma que “reduza os custos do despedimento (monetários e
processuais), avance no sentido de uniformizar as diferentes formas contratuais
e universalize o seguro de desemprego”. Em consequência, propõe um “contrato
único” com “períodos experimentais longos” e “mecanismos de pré-aviso de
despedimento que facilitem a procura de um novo emprego” (idem, p.89 e 18).
Esse “contrato único” chama-se “contrato para a equidade laboral” no relatório
do PS e o seu autor acredita que esta norma é suficiente para desencadear a
confiança dos empresários, o investimento e o milagre dos 300 mil novos empregos.
Como seria de
esperar, o resultado desta política é a redução dos salários: a remuneração por
trabalhador cresce nominalmente 0,7% durante todo o período, ou seja, reduz-se
em termos reais em 7%, enquanto o PIB real cresce 12%. Para onde vai o resultado
deste crescimento, não é difícil de adivinhar. Chama-se transferência de
rendimento do trabalho para o capital. Com o PS, os trabalhadores vão perder o
equivalente a um mês de salário.
Reduzir as
pensões e aumentar a idade da reforma
O relatório propõe depois quatro
novas ideias para o sistema de segurança social.
A primeira,
aumentar a idade da reforma. Mais uma vez, é a continuidade de Passos Coelho. A
coisa é apresentada de modo alegórico: “a reavaliação do fator de
sustentabilidade face às alterações ocorridas, quer de contexto (quais? ) quer
legislativas, nomeadamente fortalecendo a eficácia do fator e a sua articulação
com a idade da reforma” (p.40). É um modo muito rebuscado, mas quer dizer
exactamente isto: aumentar a idade da reforma.
A segunda,
reduzir as pensões, excepto as mínimas, durante os cinco anos previstos:
“congelamento dos valores nominais salvo para as pensões de valores mais
baixos” (p.38). Congelar os valores nominais quer dizer que as pensões são
reduzidas em termos reais pelo valor da inflação, que o relatório calcula que
seja 8% durante estes cinco anos. Se é reformado ou reformada, tome nota: com
esta política, perderá 8% da sua pensão no final do período.
A terceira ideia
é reduzir o desconto dos trabalhadores com menos de 60 anos em 4% até 2018
(p.48–9). O efeito é que a sua pensão será mais pequena (menos 2,6%). O
relatório pretende deste forma aumentar o rendimento disponível actual, a troco
de menor rendimento no futuro. O sistema de segurança social perde agora 1050
milhões de euros em receitas, mas vai pagar menos no futuro.
A quarta ideia é
a redução da contribuição patronal em TSU em 4%, no que incide sobre contratos
permanentes. Assim, a segurança social deixa de receber 850 milhões, segundo o
cálculo do relatório. Ou seja, concretiza a ideia que Passos Coelho anunciou,
declamando que Portugal precisa dela “como do pão para a boca”: o governo das
direitas ameaça, o PS aplica. Este défice orçamental será coberto por novas
receitas: um imposto sobre heranças, a restituição do nível do IRC que o actual
governo reduziu e uma taxa que pune a “rotação excessiva” de trabalhadores. Mas
só será coberto parcialmente, ficará um buraco, mesmo aceitando que estas
receitas hipotéticas se concretizem: o resto será pago pelo aumento das
receitas fiscais porque o texto declara que vai tudo correr bem.
Sobre o efeito
desta medida, já aqui escrevi, bem como Bagão Félix, e as contas são
conclusivas: tem um efeito marginal nas contas das empresas e, se pensa que é
assim que se estimula o investimento para a criação de emprego, a inocência não
faz mal a ninguém mas também não resolve problemas.
Uma miscelânea de ideias
Há boas ideias no
documento, mas com aplicações limitadas e até, em alguns casos,
discriminatórias: uma (ligeiríssima) reposição de abonos de família (40 milhões
de euros, p.41), reposição do Complemento Solidário para Idosos (abrangendo
alguns dos que perderam o direito e com o custo de 8 milhões, p.42), um
complemento salarial para os rendimentos abaixo do salário mínimo nacional
(p.35), a punição dos contratos a prazo típicos, a velha ideia do agravamento
do IMI para casas desabitadas (p.53), a redução do IVA da restauração (p.52).
Noutros temas, é
a visão tradicional. Não haverá mais emprego na função pública, mesmo que o PS
tenha protestado contra despedimentos impostos por Passos Coelho e Portas (e os
700 trabalhadores da segurança social ficam esquecidos?). O número global de
funcionários públicos fica congelado e pode mesmo haver despedimentos em
algumas áreas: “Isso não significa que em certas áreas da governação não seja
promovida a racionalização de efetivos, compensada com o aumento noutras áreas”
(p.64). A “racionalização de efectivos”, pode adivinhar o que quer dizer.
O relatório
acrescenta ainda uma nova ideia: para haver rejuvenescimento do emprego no
Estado, haverá um exame de avaliação ao fim de 15 anos (p.65). Uma proposta
curiosa que não é sequer explicada. Mas, como se trata de rejuvenescer os
quadros, percebe-se o que quer dizer este exame. Alguns ou muitos desses
trabalhadores serão substituídos, ou “racionalizados”.
Haverá mais
privatizações (p.73), sujeitas ao superior critério da “clarificação do
conceito de ‘setor estratégico nacional’”, que o relatório não faz o obséquio
de clarificar. Sobre a TAP, a privatização que será assinada pelo próximo
governo, nem uma decisão, o texto assinala só o “risco enorme”. Esperava-se um
pouco mais, que determinasse se esse “risco enorme” é para cumprir ou para
rejeitar.
O mistério
europeu
Para um partido
tão devotamente obediente em relação ao euro e à União Europeia, a discrição
com que é tratada a questão europeia não pode deixar de revelar um incómodo.
No início do
texto, são apresentados dois “cenários adicionais”: tudo corre bem na Europa e
tudo corre mal na Europa (p.24–6). Para que servem estes cenários, os leitores
não podem sequer adivinhar.
Mas é-nos dito
que no primeiro cenário, o da “credibilidade reforçada do projecto europeu”,
haverá “políticas pró-cíclicas sincronizadas” e “redução dos spreads dos países
mais afectados pela crise da dívida soberana”, uma apreciação do euro da ordem
dos 20% e um “cenário particularmente benigno para a economia portuguesa”
(p.25).
No segundo
cenário, o de uma “crise europeia profunda e prolongada”, teremos “a
institucionalização da possibilidade de expulsão dos países da área do euro”,
aumento dos spreads da dívida, e, “neste quadro, particularmente associado a
uma eventual saída da Grécia da zona euro, com o peso da dívida pública a
crescer de forma desmesurada, poria inevitavelmente em questão a permanência de
Portugal na zona euro e eventualmente poria em causa a própria existência do
euro tal como hoje o conhecemos” (p.26). Este cenário não é explicado. Nem
muito menos, perante a hipótese sombria, é indicado o que deveria fazer o
governo português – ou o que pretende fazer o PS – para o evitar ou corrigir.
De facto, no resto do texto nunca mais emerge qualquer preocupação com o assunto.
Assume-se tranquilamente que tudo corre bem, que a Europa não é questão, que
Portugal cumpre o Tratado e que não se passa nada, que a Grécia não existe e
Berlim também não. Parece imprevidente, parece desconexo desta análise de
riscos, mas é o que é.
E os resultados?
alternativaAssim,
o relatório indica um caminho económico. É a sua virtude. É claro nas escolhas,
mesmo que algumas das suas contas sejam relativamente incipientes, indicativas
ou até imaginativas (ou propagandísticas, vd. o gráfico ao lado, publicado por
um blog oficialista do PS, Câmara Corporativa, tentando explicar que tudo é
fácil). Onde é ideológico, mostra um entusiasmo pela soluções liberais para o
“mercado de trabalho” que o PS nunca tinha expressado. Abandona a ideia do Estado
estratego, reforça o primado do mercado nas escolhas sociais. Diz ao que vem.
Onde é concreto, confirma essa ideologia:
Abandona qualquer
ideia de reestruturação da dívida soberana,
Ignora as
sugestões anteriores do PS sobre a “leitura inteligente” do Tratado Orçamental
e recusa uma intervenção para o corrigir ou ajustar,
Ignora a questão
da estabilidade e confiança no sistema de crédito e da consistência dos
balanços dos bancos,
Garante a
continuidade das políticas de trabalho do governos das direitas, rejeitando a
devolução de direitos retirados,
Recusa a decisão
do Tribunal Constitucional, adiando a reconstituição de salários e pensões,
Propõe a redução
do valor real das pensões em 8%, excepto das pensões mínimas,
Indica o aumento
da idade da reforma, de modo não especificado,
Conduz à redução
da remuneração média por trabalhador em 7%.
Não define uma
escolha sobre a privatização da TAP.
Aqui tem o que
pretende ser o governo do PS. Já passou o seu Rubicão. A direita tem todas as
razões para ficar preocupada: apareceu uma alternativa que quer fazer o mesmo,
mas aplicando mais eficientemente a receita, cedendo o mínimo possível aos
mínimos sociais.
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