Pode uma
assembleia deliberativa ser uma boa ideia para melhor administrar Lisboa?
POR SAMUEL ALEMÃO
• 24 JANEIRO, 2018
Há quem ache que
as opiniões dos cidadãos da capital portuguesa poderiam ser aproveitadas de
forma mais inteligente. E ajudarem no processo de decisão política da Câmara
Municipal de Lisboa (CML). Defendem, por isso, a criação de assembleias
deliberativas na cidade, onde se sentariam pessoas escolhidas aleatoriamente,
para se pronunciarem sobre determinadas questões. Sempre com a ajuda de
mediadores e de peritos. Uma ideia avançada pelo colectivo cívico Vizinhos do
Areeiro, para quem esta seria uma forma de garantir maior transparência na
administração da capital. Evitar-se-ia assim, alegam, “a formação de lóbis e de
grupos de interesses coligados”. Males de que padecerão os tradicionais órgãos
democráticos e até outros instrumentos “alternativos”, como os orçamentos
participativos, apontam os defensores do processo. Seria uma forma de
aperfeiçoar o sistema democrático, alegam.
Texto: Samuel Alemão
Imagine que recebe, através de carta, de email
ou de sms, um convite da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para ser
pré-seleccionado para participar numa reunião onde estarão outros concidadãos
da capital portuguesa, num número que pode ir dos 25 aos 150, e ali discutir
algumas ideias e projectos a executar na cidade. Depois de demonstrar o seu
interesse, e tendo sido um dos escolhidos com base numa triagem feita através
de critérios de representatividade sócio-económica, vê-se sentado numa sala,
lado a lado com pessoas com as quais, muito possivelmente, tem poucas ou
nenhumas afinidades. Encetado o debate, sobre um tema ou conjunto de temas,
liderado por um ou vários mediadores, ou “facilitadores”, e ouvindo peritos
convidados, tentar-se-ia chegar a uma proposta comum, a votar pelo colectivo. A
mesma seria enviada à câmara, para que a executasse. Funciona assim uma
“assembleia deliberativa” e há quem a queira ver em prática em Lisboa.
“A prática da democracia deliberativa é o
resultado um impulso que muitas pessoas sentem de participar mais nas decisões
sobre a sua comunidade. Trata-se de uma variante da democracia participativa,
conhecida, por exemplo, pelos orçamentos participativos, mas com a grande
vantagem de corrigir os seus defeitos, ao não permitir a formação de lóbis e de
grupos de interesses coligados”, explica Rui Martins, a face mais visível do muito
activo movimento cívico Vizinhos do Areeiro, que lançou, nos primeiros dias
deste ano, o repto à CML para a implementação da ideia. Lisboa seria, assim, a
primeira capital europeia a fazer uso desta “ferramenta de assistência à
decisão política”, permitindo uma melhor auscultação dos desejos da população.
Além disso, alega o activista, a opção representaria um aperfeiçoamento na
gestão da coisa pública, ao “permitir que não haja uma ligação entre quem
apresenta uma proposta e quem a vai votar”.
Um cenário que, advoga Rui Martins, não está
de todo garantido com o mais conhecido, e cada vez mais popular em Portugal,
sistema de participação através de orçamentos participativos (OP) – sejam eles
concelhios, de freguesia ou até de âmbito nacional. Em muitos casos, explica,
verifica-se um “problema” relacionado com a existência de “colégios de voto”
informais, em que determinados grupos ou entidades apresentam uma proposta num
OP e, depois de a mesma ser validada e colocada a sufrágio popular, desenvolvem
uma muita bem organizada e agressiva campanha de comunicação, visando recolher
o maior número de votos. Uma perversão, afinal, do conceito de participação
cívica, considera o activista cívico. Estará ele a pensar, por exemplo, no caso
da freguesia de Carnide, que tem ganho sucessivamente as últimas edições do OP
Lisboa, fruto de tal estratégia?, questiona O Corvo. “Sim”, responde.
O facto de os participantes nas assembleias
deliberativas serem escolhidos de forma aleatória, a partir de uma base de
dados dos cidadãos registados na cidade, garantirá um certo grau de
distanciamento e isenção. É essa a presunção do colectivo Vizinhos do Areeiro,
autor da proposta para a capital portuguesa. Além disso, cada pessoa só poderia
ser convocada para uma determinada assembleia deliberativa, extinguindo-se a
sua participação a partir do momento em que se produzisse a deliberação.
Estas são, aliás, características que têm
muito em comum com o que sucede no sistema de grandes júris dos tribunais
norte-americanos, onde os cidadãos são chamados a pronunciarem-se sobre casos
judiciais concretos – ajudando os juízes na tomada de uma decisão. No fundo,
trata-se de obter decisões que se aproximem o mais possível do sentimento da
comunidade. Rui Martins defende que, através de um processo de selecção
cuidado, será sempre possível “ter uma amostra suficientemente grande”. No
caso, o número ideal, como base em experiências análogas, seria a de
assembleias constituídas por 25 pessoas, se bem que se admita que tal número
possa crescer, até a um máximo absoluto de 150.
Se aos olhos de
alguns tal proposta poderá parecer algo estranha, bizarra até, bastará pôr os
olhos em algumas das experiências que se vão fazendo lá fora para colocar as
coisas em perspectiva. Os Vizinhos do Areeiro até dão uma ajuda, apontando para
o que está a ser feito na República da Irlanda, a nível nacional. Naquele país,
a assembleia deliberativa funciona como câmara consultiva do parlamento
nacional e é constituída por uma centena de elementos, 99 deles escolhidos
aleatoriamente entre os cidadãos – de forma a serem “largamente representativos
do eleitorado irlandês” -, a que se lhes junta um mediador indicado por aquele
órgão. O objectivo é pronunciarem-se sobre os principais assuntos relacionados
com o futuro daquela nação, sendo que para cada um deles se forma uma
assembleia deliberativa. A discussão resulta em relatório ou recomendações, a
serem discutidas nas duas câmaras do parlamento (câmara de representantes e
senado).
Mas existem outros exemplos, até mais
aproximados do que agora se sugere aplicar na capital portuguesa. É o caso da
cidade canadiana de Toronto, que possui um painel consultivo de cidadãos
escolhidos aleatoriamente – num processo baptizado como “lotaria cívica” . No
primeiro mandato, iniciado em 2015 e terminado a 18 de novembro passado, o
Toronto Planning Review Panel era constituído por 28 membros. Mas, no novo
mandato, a iniciar em breve, haverá mais quatro, aumentando o painel para 32, a
fim de aumentar a representatividade do mesmo. “Este é um bom exemplo do que
poderíamos vir a ter em Lisboa. Se assim fosse, poderíamos vir a ser a primeira
capital europeia a ter uma assembleia deliberativa e a ser um bom exemplo, uma
vez que este método promete aprofundar os processos democráticos”, diz a O
Corvo Manuel Arriaga, autor do livro “Reinventar a Democracia – Cinco Ideias
Para Um Futuro Diferente” e fundador do Fórum dos Cidadãos.
Arriaga
considera, à imagem do colectivo Vizinhos do Areeiro, a aplicação este tipo de
solução na capital portuguesa “traz a promessa de ter um painel de cidadãos
espelhando de forma mais fiável a diversidade da população lisboeta, porque o
sorteio assegura que não são as vozes do costume”. O professor na Stern School
of Business da New York University (NYU) não tem dúvidas de que “as formas tradicionais
de consulta pública trazem consigo um conjunto de enviesamentos, porque há
cidadãos que se fazem representar mais activamente que os demais, seja porque
têm mais tempo e recursos ou até opiniões mais vincadas”.
Uma realidade verificável, alega, pela forma
como algumas dessas pessoas se mobilizam de forma bem mais clara do que as
restantes, sempre que lhes é dada tal oportunidade. O docente e investigador
vê, por isso, nas assembleias deliberativas uma excelente forma de
aperfeiçoamento da democracia, sobretudo ao nível das câmaras municipais, “que
são mais abertas à participação dos cidadãos”. “Estes processos geram ideias e
propostas muito diferentes, porque são muito mais estruturados e pensados e
também por se afirmarem como algo mais próximo do cidadão comum”, avalia Manuel
Arriaga.
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