Há uma nova rede em Lisboa para fazer
frente aos despejos
Pela Rede de Solidariedade, um grupo
informal de apoio a pessoas com problemas de habitação, passam as histórias de
quem corre o risco de ficar sem tecto de um dia para o outro.
JOÃO PEDRO PINCHA 9 de Janeiro de 2018, 8:00
Nazaré nunca ganhou muito mais do que o salário mínimo, mas,
como tantos portugueses, queria ter uma casa a que pudesse chamar sua e não
teve grande dificuldade em convencer um banco a emprestar-lhe o dinheiro de que
precisava. Foi em 1997. “As condições eram boas naquele tempo, era diferente. E
como eu tinha emprego certo…”
Decidiu-se por uma casa na linha de Sintra e contraiu dois
empréstimos junto da Caixa Geral de Depósitos, um truque que lhe permitiu não
pagar a entrada de 20% normalmente exigida. Recebeu o equivalente a 72 mil
euros. Uns anos mais tarde, em 2004, Nazaré adoeceu e ficou desempregada.
Durante alguns meses não pagou a prestação. O problema resolveu-se com a
renegociação dos prazos e montantes dos empréstimos.
Em 2012, novo incumprimento, desta vez devido a problemas
familiares. Diz Nazaré que recebeu então uma carta a propor um aumento da
prestação dos 360 para os 420 euros e a extensão do prazo por mais trinta anos.
O novo montante era um fardo pesado porque Nazaré ganhava 485 euros naquela
época e pouco sobraria ao fim do mês. Ainda assim, começou a pagá-lo. Pouco
mais de um ano depois, viu que era impossível continuar e passou a pagar o que
podia, 150 euros umas vezes, 200 outras.
No ano passado, diz Nazaré, a Caixa pôs-lhe um processo em
tribunal. Ao contrário do que ela pensava, o acordo proposto na tal carta de
2012 não estava em vigor porque as duas partes nunca se sentaram à mesma mesa
para o assinar. “Eu estava a pôr o dinheiro em saco roto”, lamenta.
Perguntou aos advogados do banco se não havia forma de se
entenderem sem envolver tribunais e, sobretudo, sem a obrigarem a sair de casa.
“Disseram-me para falar com a gestora de conta, mas ela nunca me respondeu à
carta.” O processo desenrolou-se, a casa de Nazaré foi posta à venda em leilão.
Já esteve duas vezes em praça e não encontrou compradores – a última por 37 mil
euros, um pouco mais de metade do que ela custava em 1997. Nazaré afirma que
lhe foi transmitido oralmente que tem uma dívida de 129 mil euros, um valor que
ela não consegue compreender. “Fui fazer as contas e já paguei 85 mil euros por
uma casa de 72 mil”, diz. A Caixa Geral de Depósitos não quis comentar o caso
ao PÚBLICO, por estar sujeita ao dever de sigilo bancário.
“Eu tive falhas, mas podiam dar-me uma oportunidade.
Davam-me um prazo e tudo se resolvia”, afirma Nazaré. Foi para tentar encontrar
essa oportunidade que o caminho de Nazaré se cruzou com o da Rede de
Solidariedade, um grupo que procura ajudar pessoas com problemas de habitação.
“Vemos como os bancos, repetidas vezes, recebem segundas, terceiras, quartas
oportunidades”, comenta Duarte Guerreiro, da Rede. Enquanto isso, afirma,
pessoas como Nazaré “são tratadas como criminosas”.
"Nunca houve escolha"
Com cerca de dois anos de existência, a Rede de Solidariedade
reunia-se, até há pouco tempo, no terraço da Casa dos Amigos do Minho, na
Mouraria – uma colectividade que, como a maioria das pessoas apoiada pelo
grupo, se viu a braços com uma saída indesejada das instalações. Os problemas
que chegam à Rede são de natureza bastante variada, como o PÚBLICO constatou
numa reunião recente. Um homem recebeu ordem de despejo e diz que, desde então,
o senhorio faz barulho das sete da manhã às onze da noite. Um outro, também com
ordem de despejo, queixa-se de que lhe andam a roubar cartas da caixa de
correio, impedindo-o de saber em que dias tem de ir à Segurança Social renovar
apoios ou ao tribunal para esgrimir argumentos contra quem o quer ver fora do
prédio. Relata-se ainda a caricata situação de um homem que está em risco de
ficar sem casa porque a metade que pertencia à ex-mulher foi penhorada e posta
à venda em leilão.
“A assembleia não está cá para fazer caridade, é para
conseguir soluções”, explica Duarte Guerreiro. Acima de tudo, o grupo faz
pressão. “Muitas vezes, senhorios e bancos estão apenas a lidar com indivíduos,
com arrogância e soberba. É completamente diferente se, esperando nenhuma
resistência, um senhorio ou um banco encontrar um grupo organizado, com
reivindicações pensadas.”
Actualmente, entre as directamente afectadas pelos mais
diversos problemas habitacionais e outras que apenas se interessam pela causa,
a Rede consegue mobilizar pelo menos 60 pessoas. Podem fazer vídeos a denunciar
uma situação que considerem estar mal, podem escrever cartas com exigências
concretas, podem aparecer à porta de um senhorio ou banco a pedir para
negociar. É o que vão fazer esta quarta-feira, às 9h, quando se apresentarem na
sede da Caixa Geral de Depósitos para tentarem um acordo que permita a Nazaré
continuar na sua casa.
“A maioria dos despejos em Portugal é certamente por
incumprimento no pagamento dos empréstimos”, estima Duarte Guerreiro, que
lamenta a falta de estatísticas sobre o fenómeno. Nos dois anos da Rede, os
membros perceberam que este é um problema crescente nos subúrbios de Lisboa.
“Falhar um pagamento de habitação é quase um crime moral. As pessoas começam a
ser tratadas como criminosas”, critica.
E em muitos casos, acrescenta, elas foram encurraladas. Nos
anos 1990, com o mercado de arrendamento praticamente morto, a única opção para
muita gente era comprar casa – o Estado e os bancos incentivavam-no, ignorando
que muitas pessoas não tinham condições para pagar um empréstimo. “Nunca
tiveram escolha nenhuma. Aquilo que à partida é uma escolha, não o é
realmente.”
Nazaré, que há vários anos sobrevive com ajuda alimentar da
junta e da paróquia, talvez não consiga abdicar desse apoio tão cedo, mas tem a
esperança de que, pelo menos, a casa deixe de ser uma preocupação. Porque, diz
Duarte, ninguém tem de "escolher entre o crédito à habitação e dar comida
aos filhos"
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