Nada mudou e, no
entanto, quase tudo mudou
“A questão não é saber
se Trump foi pior ou melhor do que se esperava. A questão é que o pior ainda
pode estar para vir.”
Teresa de Sousa
20 de Janeiro de
2018, 7:02
Em 2002, quando
George W. Bush já preparava a invasão do Iraque e os aliados europeus
enfrentavam a maior crise de sempre da Aliança Atlântica, o Reino de Marrocos
decidiu erguer uma bandeira num pequeno rochedo junto à costa marroquina,
apenas habitado por cabras. Acontece que o rochedo era território de Espanha e
o então chefe do Governo de Madrid, José Maria Aznar, considerou a ousadia de
Rabat “um acto de guerra”. A União
Europeia não pôde fazer mais nada senão apoiar a Espanha. Como? Ninguém sabia
ou ninguém queria saber. Teria sido fácil, tendo em consideração a dependência
económica de Marrocos. Colin Powell, então secretário de Estado de Bush, teve
de pôr de lado os seus afazeres para, em meia dúzia de horas, resolver a crise.
Desde a II Guerra que a Europa entregou a sua segurança ao aliado americano. A
Aliança Atlântica sofreu várias crises de adaptação ao mundo que nasceu em
1991, com o fim da União Soviética e, posteriormente, com aquele, menos
pacífico, que emergiu do 11 de Setembro. A mais grave terá sido a provocada
pela guerra no Iraque, em 2003, que dividiu profundamente a Europa, mas que
acabou por ser rapidamente superada pelos europeus e por um segundo mandato de
Bush mais realista.
Em Junho de 2011,
o então secretário de Estado de Obama, Robert Gates, veio à sede da NATO em
Bruxelas despedir-se dos seus aliados europeus. Escolheu palavras duríssimas
para os avisar de que chegaria o tempo em que o povo americano e as elites de
Washington deixariam de entender as razões pelas quais tinham de pagar a
segurança de um continente tão rico como os EUA, sobretudo depois de
desaparecer a ameaça soviética. A América, disse ele, acabaria por encontrar
alguém que transformasse esse sentimento numa nova política externa. As suas
palavras foram premonitórias. Os europeus tinham aproveitado o fim da Guerra
Fria para reduzir os respectivos orçamentos da Defesa. Como lembrou Gates, os
aviões europeus que bombardeavam a Líbia nessa altura “tinham ficado sem
munições ao fim de 11 semanas”.
A profecia de
Gates
A eleição de
Donald Trump para a Casa Branca, na qual ninguém acreditou até ao dia em que
aconteceu, realizou a profecia de Gates. Não de forma negociada e gradual, mas
numa viragem brusca de 180 graus. “Os Estados Unidos estavam envolvidos em
todas as facetas da política europeia desde a II Guerra”, escreve Thomas
Wright, da Brooking Institution. Eram uma potência europeia e o cimento que
permitiu a integração. A sua eleição provocou um choque brutal entre os
aliados, preparados para tudo menos para enfrentar um mundo em que a ordem
internacional multilateral edificada pelos EUA está a ser destruída a ritmo
acelerado pelos próprios EUA.
Sob liderança
francesa, a União Europeia começou a pôr de pé uma “Cooperação Estruturada Permanente”
para a segurança e defesa, de forma a reforçar as suas capacidades militares
(há um compromisso na NATO para aumentar os orçamentos da Defesa até aos 2% em
2024), que está ainda a anos-luz de desempenhar o papel de segurança colectiva
garantido pelo Artigo 5.º do Tratado de Washington. Mas os europeus perderam as
ilusões sobre a garantia de segurança americana, como também perderam os
japoneses, os sul-coreanos ou os países da Ásia Oriental, mesmo que o “inimigo
principal” varie: na Europa é a Rússia ou a desestabilização do Médio Oriente;
na Ásia-Pacífico é a China, disposta a conquistar a hegemonia regional para,
depois, se afirmar a nível mundial.
Onde estamos?
No fundo, como
escreve Wright, há três cenários de futuro sobre a relação transatlântica que
não podem ser descartados. “Tirar partido no curto prazo das divisões
europeias, mesmo que isso implique a desintegração; adoptar um desinteresse
benigno pelos problemas internos da Europa; ou, finalmente, o regresso ao seu
compromisso no destino de uma Europa que seja coerente, rica e capaz de pesar
no palco mundial”.
É fácil perceber
qual é o cenário preferido de Trump. Como ele próprio disse por diversas vezes,
a integração europeia é apenas uma forma de garantir a hegemonia alemã sobre o
continente. Em matéria de segurança também se sabe o que pensa: a Europa tem de
pagar aos EUA pelos serviços prestados ou, então, prescindir deles. Os seus
amigos europeus estão entre os partidos nacionalistas e populistas a que a
Europa também não é imune. Mais difícil, sublinham alguns analistas, é
antecipar um cenário pós-Trump num mundo em mutação vertiginosa. O afastamento
da Europa é uma tendência estrutural que acabará por aprofundar-se seja qual
for a Administração? Ou é apenas um episódio, explicado em boa medida por um
personagem que nunca ninguém imaginou que pudesse presidir à nação mais
poderosa do mundo? As respostas variam.
A mudança maior
E, no entanto,
como é fácil de comprovar, nada mudou de significativo na relação
transatlântica, a não ser o clima de desconfiança criado entre os dois lados do
Atlântico e os efeitos colaterais da condução errática da política externa
americana no mundo. Não foi Trump o primeiro a avisar a Europa de que teria de
participar mais na sua defesa. Um novo “burden sharing” já era defendido por
Clinton ou por Obama. O “momento unilateral” da América, no primeiro mandato de
George Bush, teve a sua expressão política na “coligações de vontade” de Donald
Rumsfeld, que dividia os europeus entre os que seguiam os EUA e os que lhe
faziam oposição. Acabou o seu segundo mandato regressando à Europa e aos
aliados. Obama veio tornar tudo mais fácil, recuperando com a sua simples
eleição a credibilidade internacional da América. O seu “pivô” para o Pacífico
enervou os europeus, mesmo que tivesse alguma lógica: o maior desafio à ordem
ocidental viria da ascensão da China. A crise ucraniana, que explodiu
inesperadamente em Dezembro de 2014, colocou a Europa perante uma nova ameaça
para a qual não estava preparada. A resposta exigia a coordenação com os EUA.
Mas a mensagem de Obama talvez não tivesse sido ouvida com a atenção devida. A
América quer continuar a liderar o mundo, contando cada vez mais com os
aliados, mas vai abandonar a política preferida de Washington: “apertar o
gatilho” de cada vez que há um problema internacional. Os teóricos das relações
internacionais chamam-lhe “retraimento estratégico”. Corolário: os europeus já
sabiam que tinham de assumir mais responsabilidades, incluindo na resolução das
crises internacionais, nomeadamente aquelas que estão na sua vizinhança mais
próxima. O Irão foi negociado nessa fórmula e resultou. Os atentados
terroristas que atingiram brutalmente a França e outros países europeus, foram
mais um sinal de alarme.
Trump pensa
exactamente o contrário de Obama. Aliás, há quem diga que a única política
externa que entende é desfazer o que fez o seu antecessor. Desde os acordos
comerciais ao acordo nuclear iraniano, passando pelo Médio Oriente, onde uma
simples visita a Riade, no início da sua presidência, alterou radicalmente os
equilíbrios de poder que os EUA construíram, tomando partido pela Arábia
Saudita na perigosa competição regional entre xiitas e sunitas. Quando visitou
a NATO para a sua primeira cimeira, cortou uma frase no discurso que reafirmava
a fidelidade ao Artigo 5.º do Tratado de Washington. Corrigiu o tiro mais
tarde. E, no entanto, até hoje, nada aconteceu. A Aliança, apesar da crise de
adaptação a um mundo cada vez mais em desordem, continua a fazer o que sempre
fez. A presença militar americana não foi reduzida. Os Estados Unidos estão
presentes nas missões militares destinada a tranquilizar alguns países de Leste
que fazem fronteira com a Rússia e temem a sua política agressiva. Na Polónia
ou nos Bálticos. A chamada “European Reassurance Initiative”, criada por Obama,
continua a funcionar. Mais ainda, a nova Doutrina Nacional de Segurança,
assinada por Donald Trump no final do ano passado, não altera nada de
substancial na relação transatlântica. “O documento elogia as virtudes das
alianças e a sua importância para manter a vantagem na competição geopolítica
de hoje”, escreve Jeremy Shapiro do European Council on Foreign Relations. “A
doutrina segue o modelo da política externa típica dos republicanos”.
Acrescenta que Trump não a deve ter lido antes de assinar.
O meu botão é
maior do que o teu
Nada pode deixar
a Europa indiferente, mesmo quando as crises irrompem em lugares distantes,
como a Ásia, onde a influência europeia é limitada. A crise na Península da
Coreia veio lembrar que o pesadelo nuclear ainda não foi eliminado e demonstrar
até que ponto o desnorte americano abre espaço à crescente influência da China.
A recente troca de ameaças entre Kim Jong Un e o Presidente americano, por mais
ridícula que possa parecer, é uma sombra demasiado séria sobre o mundo para ser
ignorado. Kim anuncia que tem o “botão nuclear” em cima da secretária. Trump
responde que também ele tem um, “que é muito maior e mais poderoso e que
funciona mesmo”. Poucos dias depois, a 13 de Janeiro, o alerta de ataque de
míssil ao Hawai (que durou 38 minutos até ser declarado falso), mostrou até que
ponto o risco nuclear voltou a pesar sobre a comunidade internacional.
Entretanto, a
China de Xi Jinping, que não é a mesma China de Hu Jintao, vai ocupando
tranquilamente o lugar da América. Iniciou um diálogo com Seul (até recentemente
impensável), enquanto as duas Coreias fazem desfilar em conjunto os seus
atletas olímpicos nos Jogos de Inverno em PyeongChang. Sem o apoio americano, a
Coreia do Sul não tem condições para negociar com o Norte. Mas o problema é o
mesmo: os aliados da América na Ásia Oriental, da Coreia do Sul ao Japão,
passando pelo Vietname ou pelas Filipinas, perderam a confiança nas garantias
de defesa americanas.
Uma crise na Ásia
terá repercussões brutais sobre a Europa, em primeiro lugar de natureza económica.
Estamos a falar da região do mundo cujo crescimento económico e populacional é
mais rápido e onde a ascensão da China provoca a maior corrida aos armamentos
de que há memória desde o fim da Guerra Fria. Como aconteceu com a Rússia, os
europeus vão ter de encontrar rapidamente uma estratégia comum face à China.
Não será fácil. A Europa corre o risco de ver o investimento chinês no Leste e
no Sul tornar-se moeda de troca para a sua influência política.
A nova postura
nuclear
A Rússia é um
problema ainda maior. Na quinta-feira passada, o Pentágono enviou para a Casa
Branca os dois documentos que completam a sua Doutrina de Segurança Nacional: a
Doutrina de Defesa Nacional e a Estratégia Nuclear (Nuclear Posture Review). Os
documentos não são conhecidos mas as habituais fugas para a imprensa já revelam
alguma coisa. A Rússia e a China (mais do que o terrorismo) são os dois grandes
desafios estratégicos que os EUA enfrentam. Duas frases são fundamentais:
“expandir as alianças na região do Indo-Pacífico”; “reforçar a NATO”, vital
para a segurança dos EUA. Quanto à estratégia nuclear, a novidade parece ser a
sua utilização, em caso extremo de um ciber-ataque que danifique as
infra-estruturas fundamentais da economia, do abastecimento energético e a
capacidade militar americana.
Os analistas
dizem que “repete os elementos essenciais da política de Obama”, incluindo o
uso de armamento nuclear em “circunstâncias extremas”. Mas inverte o
compromisso do anterior Presidente com a redução do papel e da dimensão do arsenal
nuclear americano. Nada disto é estranho à percepção europeia. Mas, mais uma
vez, a Europa não sabe exactamente com o que pode contar, mesmo que, na
prática, nada tenha mudado de substancial. Ou mudou tudo? A única certeza pode
ser aquela que Elizabeth Saunders escreveu na Foreign Affair: “A questão não é
saber se Trump foi pior ou melhor do que se esperava. A questão é que o pior
ainda pode estar para vir.”
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