sábado, 20 de janeiro de 2018

Nada mudou e, no entanto, quase tudo mudou


Nada mudou e, no entanto, quase tudo mudou

“A questão não é saber se Trump foi pior ou melhor do que se esperava. A questão é que o pior ainda pode estar para vir.”

Teresa de Sousa
20 de Janeiro de 2018, 7:02

Em 2002, quando George W. Bush já preparava a invasão do Iraque e os aliados europeus enfrentavam a maior crise de sempre da Aliança Atlântica, o Reino de Marrocos decidiu erguer uma bandeira num pequeno rochedo junto à costa marroquina, apenas habitado por cabras. Acontece que o rochedo era território de Espanha e o então chefe do Governo de Madrid, José Maria Aznar, considerou a ousadia de Rabat  “um acto de guerra”. A União Europeia não pôde fazer mais nada senão apoiar a Espanha. Como? Ninguém sabia ou ninguém queria saber. Teria sido fácil, tendo em consideração a dependência económica de Marrocos. Colin Powell, então secretário de Estado de Bush, teve de pôr de lado os seus afazeres para, em meia dúzia de horas, resolver a crise. Desde a II Guerra que a Europa entregou a sua segurança ao aliado americano. A Aliança Atlântica sofreu várias crises de adaptação ao mundo que nasceu em 1991, com o fim da União Soviética e, posteriormente, com aquele, menos pacífico, que emergiu do 11 de Setembro. A mais grave terá sido a provocada pela guerra no Iraque, em 2003, que dividiu profundamente a Europa, mas que acabou por ser rapidamente superada pelos europeus e por um segundo mandato de Bush mais realista.

Em Junho de 2011, o então secretário de Estado de Obama, Robert Gates, veio à sede da NATO em Bruxelas despedir-se dos seus aliados europeus. Escolheu palavras duríssimas para os avisar de que chegaria o tempo em que o povo americano e as elites de Washington deixariam de entender as razões pelas quais tinham de pagar a segurança de um continente tão rico como os EUA, sobretudo depois de desaparecer a ameaça soviética. A América, disse ele, acabaria por encontrar alguém que transformasse esse sentimento numa nova política externa. As suas palavras foram premonitórias. Os europeus tinham aproveitado o fim da Guerra Fria para reduzir os respectivos orçamentos da Defesa. Como lembrou Gates, os aviões europeus que bombardeavam a Líbia nessa altura “tinham ficado sem munições ao fim de 11 semanas”.

A profecia de Gates
A eleição de Donald Trump para a Casa Branca, na qual ninguém acreditou até ao dia em que aconteceu, realizou a profecia de Gates. Não de forma negociada e gradual, mas numa viragem brusca de 180 graus. “Os Estados Unidos estavam envolvidos em todas as facetas da política europeia desde a II Guerra”, escreve Thomas Wright, da Brooking Institution. Eram uma potência europeia e o cimento que permitiu a integração. A sua eleição provocou um choque brutal entre os aliados, preparados para tudo menos para enfrentar um mundo em que a ordem internacional multilateral edificada pelos EUA está a ser destruída a ritmo acelerado pelos próprios EUA.

Sob liderança francesa, a União Europeia começou a pôr de pé uma “Cooperação Estruturada Permanente” para a segurança e defesa, de forma a reforçar as suas capacidades militares (há um compromisso na NATO para aumentar os orçamentos da Defesa até aos 2% em 2024), que está ainda a anos-luz de desempenhar o papel de segurança colectiva garantido pelo Artigo 5.º do Tratado de Washington. Mas os europeus perderam as ilusões sobre a garantia de segurança americana, como também perderam os japoneses, os sul-coreanos ou os países da Ásia Oriental, mesmo que o “inimigo principal” varie: na Europa é a Rússia ou a desestabilização do Médio Oriente; na Ásia-Pacífico é a China, disposta a conquistar a hegemonia regional para, depois, se afirmar a nível mundial.

Onde estamos?
No fundo, como escreve Wright, há três cenários de futuro sobre a relação transatlântica que não podem ser descartados. “Tirar partido no curto prazo das divisões europeias, mesmo que isso implique a desintegração; adoptar um desinteresse benigno pelos problemas internos da Europa; ou, finalmente, o regresso ao seu compromisso no destino de uma Europa que seja coerente, rica e capaz de pesar no palco mundial”.

É fácil perceber qual é o cenário preferido de Trump. Como ele próprio disse por diversas vezes, a integração europeia é apenas uma forma de garantir a hegemonia alemã sobre o continente. Em matéria de segurança também se sabe o que pensa: a Europa tem de pagar aos EUA pelos serviços prestados ou, então, prescindir deles. Os seus amigos europeus estão entre os partidos nacionalistas e populistas a que a Europa também não é imune. Mais difícil, sublinham alguns analistas, é antecipar um cenário pós-Trump num mundo em mutação vertiginosa. O afastamento da Europa é uma tendência estrutural que acabará por aprofundar-se seja qual for a Administração? Ou é apenas um episódio, explicado em boa medida por um personagem que nunca ninguém imaginou que pudesse presidir à nação mais poderosa do mundo? As respostas variam.

A mudança maior
E, no entanto, como é fácil de comprovar, nada mudou de significativo na relação transatlântica, a não ser o clima de desconfiança criado entre os dois lados do Atlântico e os efeitos colaterais da condução errática da política externa americana no mundo. Não foi Trump o primeiro a avisar a Europa de que teria de participar mais na sua defesa. Um novo “burden sharing” já era defendido por Clinton ou por Obama. O “momento unilateral” da América, no primeiro mandato de George Bush, teve a sua expressão política na “coligações de vontade” de Donald Rumsfeld, que dividia os europeus entre os que seguiam os EUA e os que lhe faziam oposição. Acabou o seu segundo mandato regressando à Europa e aos aliados. Obama veio tornar tudo mais fácil, recuperando com a sua simples eleição a credibilidade internacional da América. O seu “pivô” para o Pacífico enervou os europeus, mesmo que tivesse alguma lógica: o maior desafio à ordem ocidental viria da ascensão da China. A crise ucraniana, que explodiu inesperadamente em Dezembro de 2014, colocou a Europa perante uma nova ameaça para a qual não estava preparada. A resposta exigia a coordenação com os EUA. Mas a mensagem de Obama talvez não tivesse sido ouvida com a atenção devida. A América quer continuar a liderar o mundo, contando cada vez mais com os aliados, mas vai abandonar a política preferida de Washington: “apertar o gatilho” de cada vez que há um problema internacional. Os teóricos das relações internacionais chamam-lhe “retraimento estratégico”. Corolário: os europeus já sabiam que tinham de assumir mais responsabilidades, incluindo na resolução das crises internacionais, nomeadamente aquelas que estão na sua vizinhança mais próxima. O Irão foi negociado nessa fórmula e resultou. Os atentados terroristas que atingiram brutalmente a França e outros países europeus, foram mais um sinal de alarme.

Trump pensa exactamente o contrário de Obama. Aliás, há quem diga que a única política externa que entende é desfazer o que fez o seu antecessor. Desde os acordos comerciais ao acordo nuclear iraniano, passando pelo Médio Oriente, onde uma simples visita a Riade, no início da sua presidência, alterou radicalmente os equilíbrios de poder que os EUA construíram, tomando partido pela Arábia Saudita na perigosa competição regional entre xiitas e sunitas. Quando visitou a NATO para a sua primeira cimeira, cortou uma frase no discurso que reafirmava a fidelidade ao Artigo 5.º do Tratado de Washington. Corrigiu o tiro mais tarde. E, no entanto, até hoje, nada aconteceu. A Aliança, apesar da crise de adaptação a um mundo cada vez mais em desordem, continua a fazer o que sempre fez. A presença militar americana não foi reduzida. Os Estados Unidos estão presentes nas missões militares destinada a tranquilizar alguns países de Leste que fazem fronteira com a Rússia e temem a sua política agressiva. Na Polónia ou nos Bálticos. A chamada “European Reassurance Initiative”, criada por Obama, continua a funcionar. Mais ainda, a nova Doutrina Nacional de Segurança, assinada por Donald Trump no final do ano passado, não altera nada de substancial na relação transatlântica. “O documento elogia as virtudes das alianças e a sua importância para manter a vantagem na competição geopolítica de hoje”, escreve Jeremy Shapiro do European Council on Foreign Relations. “A doutrina segue o modelo da política externa típica dos republicanos”. Acrescenta que Trump não a deve ter lido antes de assinar.

O meu botão é maior do que o teu
Nada pode deixar a Europa indiferente, mesmo quando as crises irrompem em lugares distantes, como a Ásia, onde a influência europeia é limitada. A crise na Península da Coreia veio lembrar que o pesadelo nuclear ainda não foi eliminado e demonstrar até que ponto o desnorte americano abre espaço à crescente influência da China. A recente troca de ameaças entre Kim Jong Un e o Presidente americano, por mais ridícula que possa parecer, é uma sombra demasiado séria sobre o mundo para ser ignorado. Kim anuncia que tem o “botão nuclear” em cima da secretária. Trump responde que também ele tem um, “que é muito maior e mais poderoso e que funciona mesmo”. Poucos dias depois, a 13 de Janeiro, o alerta de ataque de míssil ao Hawai (que durou 38 minutos até ser declarado falso), mostrou até que ponto o risco nuclear voltou a pesar sobre a comunidade internacional.

Entretanto, a China de Xi Jinping, que não é a mesma China de Hu Jintao, vai ocupando tranquilamente o lugar da América. Iniciou um diálogo com Seul (até recentemente impensável), enquanto as duas Coreias fazem desfilar em conjunto os seus atletas olímpicos nos Jogos de Inverno em PyeongChang. Sem o apoio americano, a Coreia do Sul não tem condições para negociar com o Norte. Mas o problema é o mesmo: os aliados da América na Ásia Oriental, da Coreia do Sul ao Japão, passando pelo Vietname ou pelas Filipinas, perderam a confiança nas garantias de defesa americanas.

Uma crise na Ásia terá repercussões brutais sobre a Europa, em primeiro lugar de natureza económica. Estamos a falar da região do mundo cujo crescimento económico e populacional é mais rápido e onde a ascensão da China provoca a maior corrida aos armamentos de que há memória desde o fim da Guerra Fria. Como aconteceu com a Rússia, os europeus vão ter de encontrar rapidamente uma estratégia comum face à China. Não será fácil. A Europa corre o risco de ver o investimento chinês no Leste e no Sul tornar-se moeda de troca para a sua influência política.

A nova postura nuclear
A Rússia é um problema ainda maior. Na quinta-feira passada, o Pentágono enviou para a Casa Branca os dois documentos que completam a sua Doutrina de Segurança Nacional: a Doutrina de Defesa Nacional e a Estratégia Nuclear (Nuclear Posture Review). Os documentos não são conhecidos mas as habituais fugas para a imprensa já revelam alguma coisa. A Rússia e a China (mais do que o terrorismo) são os dois grandes desafios estratégicos que os EUA enfrentam. Duas frases são fundamentais: “expandir as alianças na região do Indo-Pacífico”; “reforçar a NATO”, vital para a segurança dos EUA. Quanto à estratégia nuclear, a novidade parece ser a sua utilização, em caso extremo de um ciber-ataque que danifique as infra-estruturas fundamentais da economia, do abastecimento energético e a capacidade militar americana.


Os analistas dizem que “repete os elementos essenciais da política de Obama”, incluindo o uso de armamento nuclear em “circunstâncias extremas”. Mas inverte o compromisso do anterior Presidente com a redução do papel e da dimensão do arsenal nuclear americano. Nada disto é estranho à percepção europeia. Mas, mais uma vez, a Europa não sabe exactamente com o que pode contar, mesmo que, na prática, nada tenha mudado de substancial. Ou mudou tudo? A única certeza pode ser aquela que Elizabeth Saunders escreveu na Foreign Affair: “A questão não é saber se Trump foi pior ou melhor do que se esperava. A questão é que o pior ainda pode estar para vir.”

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