“Ora, os
partidos não se limitam a ser os gestores do Estado: são o próprio Estado, que
funciona como o aviário dos seus dirigentes e clientelas.”
Os partidos não precisam de nós
Rui Ramos
2/1/2018, 0:52385
Os partidos são a prova de que em Portugal quem tem o
Estado, tem tudo: financiados com dinheiro público, não precisam da nossa
militância, nem do nosso afecto nem sequer do nosso respeito.
Para perceber o que está verdadeiramente em causa na lei de
financiamento dos partidos, é preciso recuar no tempo, até 1975 e à Assembleia
Constituinte. Portugal não esteve parado desde então. A sociedade portuguesa
mudou provavelmente mais do que em qualquer outro momento da sua história. Mas
na Assembleia da República, é como se o ano fosse eternamente 1975. Com uns
deputados a mais ou a menos, os mesmos partidos permanecem nos mesmos lugares,
com o BE como herdeiro da velha UDP e os Verdes como novo MDP-CDE. Poucas
assembleias representativas europeias terão um ar tão retro. Até um velho
Partido Comunista ainda lá está, indiferente à queda do muro de Berlim em 1989.
É como se Portugal não fizesse parte da Europa que nos últimos anos viu emergir
o En Marche de Macron, o Front National, o Podemos, os Ciudadanos, o Movimento
5 Stelle, a AfD, o Syriza ou o Labour Party de Jeremy Corbyn.
A razão pela qual os partidos portugueses parecem
invulneráveis a tudo – crise do Euro, acusação a José Sócrates, revolta contra
a globalização, etc. — não é misteriosa. Em 1974, havia um grande medo da
democracia. Ninguém sabia o que os portugueses iriam escolher em eleições
livres, nem como os eleitos se iriam comportar. Daí, um sistema, apoiado pelo
MFA, que reservou o monopólio da representação política a um pequeno número de
partidos, e que salvaguardou a hegemonia dos dirigentes dentro de cada partido.
O modelo de financiamento público foi no mesmo sentido: tornou a actividade
partidária fundamentalmente dependente do Estado e assegurou desse modo que
dificilmente em Portugal apareceriam organizações políticas dotadas para
desafiar os partidos pagos com o dinheiro dos impostos.
Os actuais partidos parlamentares transformaram-se assim em
partidos dominantes sem nunca terem precisado de ser movimentos de massas, como
os partidos sociais democratas ou democrata-cristãos da Europa ocidental. Em
Portugal, os partidos tiveram sempre muito poucos militantes a pagar quotas em
relação ao número de votantes, por comparação com os seus correligionários
europeus. O Estado dispensou-os, em geral, do trabalho de inscrever cidadãos.
A elaboração discreta e anónima da última lei de
financiamento é reveladora. Os líderes partidários não têm ilusões sobre a
conta em que são tidos. Mesmo com a actual onda de prosperidade, menos de um
quarto dos portugueses confia nos partidos. Mas ninguém espera que votem
noutros. Em quarenta anos, a sociedade portuguesa nunca pareceu prestes a sair
da camisa de forças partidária que o MFA lhe vestiu (uma breve excepção à
regra, em 1985, foi propiciada pelo presidente da república). Portugal
enriqueceu, mas uma grande parte da riqueza é hoje controlada por um Estado
cuja despesa subiu de cerca de 25% para 50% do PIB. Ora, os partidos não se
limitam a ser os gestores do Estado: são o próprio Estado, que funciona como o
aviário dos seus dirigentes e clientelas. Eis porque as crises e os escândalos
não geram Podemos nem Ciudadanos deste lado da fronteira. Os partidos são a
prova de que em Portugal quem tem o Estado, tem tudo: não precisam da nossa
militância, nem do nosso afecto nem sequer do nosso respeito. Que ainda assim
tentem salvar as aparências, com leis escondidas no sapatinho de Natal, é quase
comovedor.
O actual regime é uma mistura de democracia eleitoral e de
autocracia partidária. Numa sociedade envelhecida, endividada e dependente do
Estado, a alternativa aos partidos tem sido a abstenção: de 8,5% em 1975 para
44,1% em 2015. É muito fácil simular indignação nas redes sociais e exigir
vetos ao presidente. É mais difícil saber se o regime em Portugal pode ser
outra coisa.
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