"Santana dá tiros no pé. O vídeo do Menino Guerreiro
foi a marca de uma campanha falhada — e ainda seria acusado de fazer
comentários sobre uma alegada homossexualidade de José Sócrates que começou a
ser difundida na internet. Num almoço com mulheres, Santana diz que lhe soube
bem o apoio das mulheres, acrescentando que “outros têm outros empurrões,
outros colos.” Santana negou sempre que esta fosse uma indireta para Sócrates,
dizendo que era um “divorciado com filhos”, tal como Sócrates, e que não se
metia na vida privada de ninguém."
OBSERVADOR
As “trapalhadas” de Santana em 2004
(que Rio apoiou e Marcelo arrasou)
21 Dezembro 2017240
Rui Pedro Antunes
Rui Rio lembrou esta semana as
"trapalhadas" de Santana em 2004. Nessa época, Rio era o número dois
de Santana Lopes no PSD e uma das figuras que mais o apoiou publicamente. Já
Marcelo era demolidor.
As confusão na formação
de Governo
As férias em Ibiza e a
festa da Moda Lisboa em dia de Orçamento
Como Rio defendeu
Santana e culpou a comunicação social
O atraso na colocação
de professores, as taxas moderadoras e o ‘Barco do Aborto’
A saída de Marcelo, o
“anti-Santana” da TVI
A ida à discoteca, a
moeda de Cavaco e a demissão de Chaves
O “menino guerreiro”
com apoio de Rio até depois do fim
Pedro Santana Lopes sabia que este momento ia chegar quando
se apresentou como candidato à liderança do PSD e atirou por antecipação: “O
meu nome é Pedro Santana Lopes e assumo tudo o que fiz até hoje“. Rui Rio, seu
adversário nas diretas de 13 de janeiro para presidir ao partido, recordou
agora a curta experiência governativa do santanismo. A recente polémica sobre
os debates nas televisões durante a campanha levou a uma guerra de comunicados
entre os dois candidatos e o ex-autarca do Porto não perdoou ao homem de quem
foi vice-presidente no PSD: “Nisto dos debates ele está a fazer exatamente as
mesmas trapalhadas que fazia em 2004”.
Há um problema: olhando para trás, vemos que Rui Rio apoiou
esse mesmo Santana Lopes em 2004, de quem era o número dois, durante as tais
“trapalhadas” que agora critica — defendeu-o antes, durante e depois do mandato
do Governo. E há um detalhe: nesse mesmo período, um outro social-democrata,
Marcelo Rebelo de Sousa, agora Presidente da República, massacrava Santana nos
seus comentários de domingo na TVI, exatamente por causa das tais
“trapalhadas“.
Basta andar para trás na máquina do tempo. Falhas à parte,
Santana Lopes não teve vida fácil: nem antes, nem durante, nem depois de ter
sido primeiro-ministro. Nesses três momentos, teve o apoio do presidente da
câmara municipal do Porto Rui Rio e a crítica feroz do ex-líder do PSD e
comentador político Marcelo Rebelo de Sousa.
Quais foram essas “trapalhadas”? E o que disse cada um
deles?
As confusão na formação de Governo
Tudo começou logo na formação do Governo, com Marcelo a
registar cada um dos momentos infelizes do sucessor de Durão Barroso, que
seguiu para presidente da Comissão Europeia. Ainda antes de o Presidente da
República, Jorge Sampaio, admitir Santana como primeiro-ministro, no seu
comentário de domingo Marcelo descrevia Santana como “hiperdecisório” e que,
“como é muito intuitivo e pouco coordenado, tende a ter decisões múltiplas ao
longo do tempo”. O comentador acrescentava: “Eu diria que, neste aspeto, não é
um perfil mais indicado para um primeiro-ministro. Pergunto se não há várias
hipóteses além de Santana Lopes. Se no atual Governo não seria possível
encontrar uma solução de Governo”. Aviso à navegação: Santana teria ali um
opositor.
"Santana é muito intuitivo e pouco coordenado (...)
Diria que não é um perfil mais indicado para um primeiro-ministro. Eu pergunto
se não há várias hipóteses além de Santana Lopes. Se no atual Governo não seria
possível encontrar uma solução de Governo."
Apesar de críticos de peso como Marcelo, Jorge Sampaio
decidiu não dissolver o Parlamento e não convocar eleições antecipadas por
haver uma substituição na chefia do Governo. A 9 de julho, o Presidente da
República anunciou que o primeiro-ministro seria quem o PSD escolhesse. Ou
seja: Santana Lopes. Antes da posse do Governo, no seu comentário de domingo,
11 de julho, Marcelo voltaria a atacar: “Santana Lopes vai ter de engolir muita
coisa que disse na vida (…) Tornou-se conhecido, não como gestor, mas como
político puro anti-sistema e antipoder. (…) Como é que se adapta isto à
situação de ser poder?”
Neste contexto, Pedro Santana Lopes consegue numa semana, e
“em tempo recorde” — como o próprio admite –, formar Governo com vários pesos
pesados do partido, mas também com amigos como Rui Gomes da Silva e Henrique
Chaves (curiosamente, ambos responsáveis por episódios que contribuiriam para a
queda do Governo).
O comentador da TVI arranjaria forma de denunciar o
“amiguismo” no Governo, dizendo que Santana Lopes, “com a ideia de colocar
independentes, que todos desejam que entrem na vida política, companheiros de
percurso, amigos de sempre e colaboradores próximos no Governo, fez com que o
PSD, objetivamente, nas pastas cruciais, tenha sido o perdedor.”
O discurso atrapalhado de posse com parágrafos repetidos
Santana Lopes não esquece nem o que comeu ao almoço desse
dia: bife com batatas fritas e ovo estrelado. Antes de tomar posse a 17 de
julho de 2004, Santana sentou-se à mesa com Durão Barroso, o responsável pela
escolha da ementa, para afinar a passagem de pasta. Antes da cerimónia ainda
teve tempo para, sozinho, dar umas afinações ao discurso, que tinha sido
escrito — por sugestão do próprio — por Manuel Dias Loureiro.
Ainda introduziu pequenas alterações no texto e disse ao seu
colaborador Rui Ramos Lopes para as passar a computador e incluir no discurso.
Começou logo aí a correr mal: na impressão ficaram repetidos parágrafos em
várias páginas. “Coisas da informática“, justificaria Santana no livro que
escreveu sobre este período. Como se não bastasse, o discurso era longo. Em
pleno Palácio da Ajuda — quando já estava a ler o discurso — Santana decidiu
encurtá-lo, uma vez que, como conta no seu livro Perceções e Realidade, era de
uma “extensão absolutamente inapropriada para a temperatura de 40 graus que se
sentia nas salas do Palácio da Ajuda“. Apercebeu-se também que havia parágrafos
repetidos, o que, contou mais tarde, “dá uma sensação indescritível de
insegurança quanto ao que está a seguir”.
Estavam 40 graus na sala dos embaixadores no Palácio da
Ajuda e Santana Lopes sentia-se mal. Atrapalhou-se com o discurso. Saltou
parágrafos. Santana contava mais tarde: "Foi, de facto, um momento
embaraçoso, aquele em que tive de saltar páginas."
Santana sentia-se desconfortável e — apesar de não ter
desmaiado como outras pessoas na sala — tudo correu mal. A oposição aproveitou
o brinde. José Sócrates, que pouco depois se tornou líder da oposição, acusou
Santana de, literalmente, “andar aos papéis“. José António Saraiva, então
diretor do Expresso, escrevia no semanário dois sábados depois, a 24 de julho,
que aquele foi “o pior discurso que algum primeiro-ministro deve ter
pronunciado no ato de posse“. O próprio Santana admite no livro: “Foi, de
facto, um momento embaraçoso, aquele em que tive de saltar páginas.”
Por esta altura, Rui Rio era um dos apoios de Santana Lopes
no partido e seu número dois. Mas Marcelo não perdoava as falhas na cerimónia:
no dia seguinte, no comentário de domingo, aproveitou para denunciar a
negligência do primeiro-ministro na atrapalhação na tomada de posse, sugerindo
que nem sequer tinha lido o discurso antes: “O desleixo é que devia ter lido o
discurso antes porque perceberia que era longo de mais.”
Governantes que desconheciam a pasta que iam tutelar
O líder do segundo partido (o CDS) que sustentava o Governo,
Paulo Portas, terá ficado surpreendido com as pastas (ou pelo menos com a
designação delas) que lhe foram atribuídas. O caso serviu para ridicularizar o
Governo.
“Paulo de Sacadura Cabral Portas, ministro de Estado, da
Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar” — quando ouviu estas últimas palavras,
no momento da posse, Portas deu sinal de estar surpreendido. A cara era de
espanto e desconforto.
No livro Perceções e Realidade, Santana Lopes garante que
falou com Portas sobre a designação do ministério e que “a única surpresa que o
ministro Paulo Portas pode ter sentido foi sobre a ordem dos elementos
constitutivos da designação do seu cargo. Mais nenhuma”. Sampaio confirma a
versão de Santana. No segundo volume da biografia do ex-Presidente, da autoria
de José Pedro Castanheira, é revelada uma conversa telefónica entre Portas e
Sampaio no dia anterior, às 18h30. Conta Sampaio: “[Portas] veio, a título
pessoal, e só para mim, dizer que (…) os Assuntos do Mar ficavam ligados ao
Ministério de Estado — única maneira de salvar, por exemplo, estaleiros tendo
como clientes a Defesa Nacional.”
Também Bagão Félix desconhecia que a sua pasta teria uma
referência à “Administração Pública”, mas não fez um ar surpreendido. Isso não
significa, porém, que não tenham existido outros “episódios rocambolescos”,
como lhes chama o Expresso, no processo de formação do Governo. David Justino,
por exemplo, era ministro da Educação de Barroso e ter-lhe-ão perguntado se
queria continuar no cargo, mas depois não lhe voltaram a dizer mais nada.
Justino passou então a ser dos maiores críticos no PSD da governação de Santana
e, atualmente, coordena a moção de Rui Rio ao congresso de fevereiro. É assim
uma das figuras da candidatura de Rio, que enfrenta Santana. Salter Cid,
ex-secretário de Estado de Cavaco Silva, também terá sido convidado e logo
depois desconvidado por alguém ter dito a Santana que era “mendista” — uma vez
que Marques Mendes era um dos maiores opositores daquela sucessão de Durão
Barroso.
Marcelo dá eco a esta desorganização total no seu partido.
No comentário do domingo seguinte, define o Governo como sendo uma “manta de
retalhos” e diz que foi formado “às pinguinhas”. O comentador dizia ainda que
Santana teria de “arrepiar caminho” e que “impressiona a sensação de que as
pessoas, várias delas com valor, não têm nada a ver com as funções que vão
desempenhar.”
Nova confusão com os secretários de Estado
Na tomada de posse dos secretários de Estado — que teve
lugar dias depois do discurso falhado, a 21 de julho –, Maria da Graça Carvalho
só terá percebido naquele momento que também tutelava a Inovação. Pior
aconteceu com Teresa Caeiro, como contava o Público no dia seguinte. Dias antes
da posse, a centrista não tinha a garantia se seria secretária de Estado da
Cultura. Mas, na véspera da posse, foi enviada uma lista para Belém (divulgada
então pela Lusa) que a dava como certa na secretaria de Estado adjunta do
ministro da Defesa e dos Antigos Combatentes — com a estranha justificação de
que era “filha e neta de militares”. Ao final do dia, afinal, acabaria por
tomar posse como secretária de Estado das Artes e Espetáculos.
A maioria divergia quanto ao que se passou. Fontes do CDS
terão dito ao Público que foi Santana em cima da hora que achou que era demasiado
Portas ter três secretários de Estado e então desviou Teresa Caeiro para a
Cultura, onde a ministra lhe tinha pedido reforços. Já o PSD contava outra
história: Santana não assegurou o lugar que Portas tinha pedido para Teresa
Caeiro, na Cultura, e o líder do CDS colocou-a no ministério que tutelava. Na
véspera, porém, com os protestos discretos de chefias militares, o
primeiro-ministro conseguiu garantir o lugar na Cultura e só não conseguiu
contactar o centrista porque ele estaria a viajar de helicóptero de Viana do
Castelo para Lisboa.
Na véspera da posse foi enviada uma lista para Belém,
divulgada então pela Lusa, que dava Teresa Caeiro certa como secretária de
Estado adjunta do ministro da Defesa e dos Antigos Combatentes. Porém, acabou
por tomar posse como secretária de Estado das Artes e Espetáculos.
O livro de posse foi bastante rasurado pelas alterações de
última hora e a cerimónia atrasou-se. Mas houve mais: o secretário de Estado
dos Assuntos Europeus, Mário David, faltou à tomada de posse porque ninguém o
avisou da cerimónia. Acabaria por tomar posse, sozinho, dois dias depois.
O Governo voltaria a não escapar às críticas de Marcelo,
que, no domingo seguinte, afirmou que os secretários de Estado tinham “um nível
melhor do que o dos ministros”, que eram de uma qualidade “claramente inferior
às escolhas de Barroso”. A ideia era descredibilizar os governantes. Nesta
altura, Rui Rio continuava no Porto a desempenhar as funções de autarca e só
descia a Lisboa para reuniões da comissão política na sede na São Caetano à
Lapa.
As férias em Ibiza e a festa da Moda Lisboa em dia de
Orçamento
“Pouco barulho! Santana está aqui!“. Este era o título de um
artigo do jornal 24 Horas, a 7 de agosto de 2004, um dos mais duros para com
Santana Lopes, que dava conta que, “19 dias depois de ter tomado posse”, o
primeiro-ministro tinha tirado férias numa “vivenda cheia de luxos na Quinta do
Lago” e que as obras tinham sido interrompidas só para que o chefe de Governo
não fosse incomodado. O estilo de vida de Santana noticiado pela imprensa dava
uma imagem de displicência e negligência de um “bon vivant” que governava o
país.
Durante esses fins-de-semana de férias, o primeiro-ministro
almoçou com o futebolista Ricardo Sá Pinto e com a piloto Joana Lemos e teve
direito a um editorial do diretor do Jornal de Negócios, Sérgio Figueiredo, a
referir que eram estes os “conselheiros” de Santana Lopes. Mais tarde, no seu
livro, Santana queixava-se desta abordagem da imprensa e dos comentadores:
“Nunca vi isto acontecer a ninguém”.
Semanas depois, Santana parte para Ibiza, como o próprio
conta no livro, para umas férias “num barco de amigos” que já o tinham
convidado em anos anteriores. O próprio justifica que estava “extenuado” e que
já tinha anulado as férias “marcadas” para o final de junho devido ao processo
que o conduziu a primeiro-ministro.
Santana alega no seu livro que ainda trabalhou nos “quatro
dias de Ibiza”: “Aproveitei para ter um almoço de trabalho com o presidente do
Governo das Baleares e trocar mensagens com Zapatero, que também lá estava,
normalmente, de férias com a família num iate“. Foi, a este propósito, atacado
por Correia de Campos, que num artigo de opinião o acusou de gastar dinheiros
públicos na deslocação, o que Santana negou.
Santana alega no seu livro que ainda trabalhou nos quatro
dias de férias Ibiza": "Aproveitei para ter um almoço de trabalho com
o presidente do Governo das Baleares e trocar mensagens com Zapatero, que
também lá estava, normalmente, de férias com a família num iate".
Todos estes episódios ajudaram a fragilizar a imagem do
primeiro-ministro. E a apresentá-lo como alguém sem perfil para o cargo de
primeiro-ministro. Anos mais tarde, numa entrevista à Sábado em 2014, o próprio
mordomo de S. Bento, Fernando Silva confirmava que Santana não era um
formalista, mas estava muito longe de ser um Berlusconi: “Festas não havia. Mas
ele recebia pessoas. Às vezes eram 21h ou 22h, apareciam ministros ou pessoas
amigas. Ficavam até às 3h ou 4h. Ou 5h. Era conforme. E a gente tinha de lá
estar. Eu ou outro colega. Nessa altura, tinha mais dois colegas que faziam o
mesmo: serviam whisky, cafés e chás. Nessa fase gastava umas duas caixas de
whisky JB por mês, de seis garrafas cada uma”, sobretudo para os amigos que
frequentavam a residência oficial, não propriamente para o primeiro-ministro.
Há um tom crítico do mordomo, mas o próprio reconhece que não assistiu a festas
em S.Bento. De qualquer forma, havia um estilo de vida diferente do que é
habitual na chefia do Governo.
Em outubro, há ainda uma notícia do Expresso a dar conta de
que Santana Lopes terá ido dormir uma sesta a S.Bento — desmentida então pelo
Governo (citada pela TSF como “alegada sesta”) — após o debate do Orçamento do
Estado e antes de seguir para uma festa da Moda Lisboa.
Como Rio defendeu Santana e culpou a comunicação social
Marcelo ia registando, domingo após domingo, cada falha de
Santana, mas Rio continuava a defender o líder do partido. A 1 de agosto,
Marcelo é particularmente corrosivo, afirmando que “no debate parlamentar do
Programa de Governo ficou patente que este Executivo não tem uma causa.”
Marcelo vai ainda mais longe ao levantar dúvidas sobre as competências do
primeiro-ministro: “Santana Lopes, que não sabe muito de economia, deve fazer o
mesmo que Durão Barroso e estudar os dossiês, até porque deste debate parlamentar
não ficou uma única frase decisiva deste primeiro-ministro“.
"Santana Lopes, que não sabe muito de economia, deve
fazer o mesmo que Durão Barroso e estudar os dossiês, até porque deste debate
parlamentar não ficou uma única frase decisiva deste primeiro-ministro."
Apesar destas notícias que debilitavam a imagem de Santana
Lopes e das críticas de vários setores do PSD (como Marcelo em público ou
Ferreira Leite em privado), Rui Rio, que passara a número dois do PSD, defendia
Santana em público. Numa entrevista concedida à revista Visão a 12 de agosto de
2004, Rui Rio dizia que Santana Lopes tinha “mais consistência do que a imagem
que têm dele” e que era uma pessoa com “seriedade, lealdade e frontalidade”.
Rio, então vice-presidente do PSD, afirmava mesmo: “Só posso
dizer bem de Santana. O meu estilo não tem o exclusivo da competência e do
sucesso“. Atribuía ainda ao então primeiro-ministro uma “sensibilidade social
que muitos militantes do PCP e do Bloco de Esquerda não têm.”
As notícias sobre as férias de Santana saíam nesta altura e
mostravam algum desnorte no Governo, mas Rio culpava os jornalistas: “Este
Governo e o primeiro-ministro merecem uma avaliação justa. E não merecem o que
a maior parte da comunicação social está a fazer. Ainda o programa de Governo
não estava aprovado e já as críticas eram mais que muitas.”
Num agosto quente para o Governo — em que Rio é das poucas
vozes que se atravessa por Santana Lopes — Marcelo não desarma. A 22 de agosto,
confessa que a subida dos preços do petróleo o levou a pensar “onde o país
poderá parar” e antecipou que o Governo podia não cumprir o défice de 3%, “o
que seria muito preocupante.” No domingo seguinte — após Santana dar a primeira
entrevista como primeiro-ministro — o comentador diz que o primeiro-ministro
“não fez história” e que a entrevista “não foi muito marcante.”
"Este Governo e o primeiro-ministro merecem uma
avaliação justa. E não merecem o que a maior parte da comunicação social está a
fazer. Ainda o programa de Governo não estava aprovado e já as críticas eram
mais que muitas"
O atraso na colocação de professores, as taxas moderadoras e
o ‘Barco do Aborto’
Rio não via (ou não queria ver), mas as “trapalhadas”
continuavam. Na Educação, o ano escolar não arrancou da melhor forma para o
Governo de Santana Lopes. Houve atrasos na colocação de professores e o Governo
foi forçado a recorrer à colocação manual dos docentes, alegando a existência
de problemas informáticos no sistema. A 22 de setembro só 62% dos
estabelecimentos de ensino se encontravam em atividade e Jorge Sampaio — que
também não deu tréguas a Santana — manifestou publicamente “muita preocupação”
com o atraso. O próprio vice-presidente da bancada do PSD, Gonçalo Capitão,
falava em resolver o problema dos professores primeiro e depois apurar “até às
últimas consequências” as responsabilidades.
No mesmo mês, o Governo de Santana também teve problemas com
as taxas moderadoras, que Santana Lopes preferia que fossem “diferenciadas”:
quem tinha mais rendimentos, deveria pagar mais. O primeiro-ministro chegou a
indicar que, para isso, existiriam cartões de utentes diferentes. Depois,
recuou nessa ideia e, muitas vezes, entrou em contradição com o ministro da
saúde. A 14 de setembro, o Jornal de Negócios chegaria a escrever que o
“ministro da Saúde desconhece proposta de Santana sobre taxas.”
As notícias que iam saindo sobre as nomeações governamentais
também não ajudavam. A 21 de agosto, o Expresso escrevia que “Santana tem mais
membros no gabinete do que o número de ministros” e, três dias antes, no
Correio da Manhã, dizia-se que a “equipa supera o número de ministros”. No seu
livro, Santana alega que as 39 nomeações ficavam, por exemplo, abaixo das 59 de
António Guterres.
O recém-empossado primeiro-ministro, sem direito a “estado
de graça”, teve ainda problemas com o chamado “Barco do Aborto”, que entrou em
águas portuguesas para desafiar um Governo de direita. O Tribunal
Administrativo de Coimbra decidiu impedir o barco de atracar na costa
portuguesa, o que foi um alívio para Santana já que o ministro da Defesa, Paulo
Portas — a quem Santana delegou a gestão do caso — iria apresentar a demissão
caso a decisão judicial fosse em sentido contrário. A situação acabou com o
chefe do Governo a admitir alterações à Lei do Aborto.
A primeira viagem oficial, ao Brasil, também não ajudou a
melhorar a imagem do primeiro-ministro. Os títulos do 24 Horas demonstram-no:
“Santana não abdica dos 16 seguranças na primeira visita oficial” ou “Mulheres
não o largam“.
A saída de Marcelo, o “anti-Santana” da TVI
Um dos comentários que mais irritaria Santana — que enumera
todas estas críticas domingueiras no livro Perceções e Realidade — foi a 3 de
outubro, após ter concedido “ponte” aos funcionários públicos a 4 de outubro
(uma segunda-feira) devido ao feriado de 5 de outubro (à terça-feira). A partir
da Ilha Terceira, de onde fez o comentário, Marcelo atirou que “a tolerância de
ponto de que os funcionários públicos hoje beneficiam foi um péssimo exemplo
dado pelo Governo de Pedro Santana Lopes (…) Isto é pior do que o pior de
Guterres“. Rui Gomes da Silva, o ministro dos Assuntos Parlamentares que era
mais santanista do que o próprio Santana, haveria de contra-atacar.
"A tolerância de ponto de que os funcionários públicos
hoje beneficiam foi um péssimo exemplo dado pelo Governo de Pedro Santana Lopes
(...) Isto é pior do que o pior de Guterres"
Marcelo Rebelo de Sousa, a 3 de outubro de 2004, na TVI
Por ironia, é a comparação a Guterres que deixa o Governo
fora de si. Rui Gomes da Silva — um dos ministros mais visados por Marcelo nos
comentários semanais — reage com estrondo: “Em toda a Europa trata-se de um
caso único. Não há país algum com uma pessoa a perorar 45 minutos sobre
política, sem ser sujeita ao contraditório e apenas a defender os seus
interesses pessoais. Sinto-me revoltado com as mentiras e as falsidades que são
proferidas todos os domingos, por um comentador que tem um problema com o primeiro-ministro”.
Gomes da Silva denuncia que “não há rigorosamente qualquer
contraditório” e que estranha que “a Alta Autoridade para a Comunicação Social
esteja em silêncio”. Acrescenta ainda que “nem o PS, o PCP e o Bloco de
Esquerda, juntos, conseguem destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao
Governo como esse comentador que, sob a capa de comentário político, transmite
sistematicamente um conjunto de mentiras com desfaçatez e sem qualquer
vergonha.”
O proprietário da TVI, Miguel Pais do Amaral sugere a
Marcelo que seja mais brando com o Governo. Marcelo ainda carrega mais. Pais do
Amaral comunica a Marcelo que “isto assim não pode continuar”. E o comentador
prepara-se para sair da TVI com estrondo.
Ricardo Salgado, amigo de Marcelo, oferece-se para
interceder: “Eu amanhã tenho um encontro marcado com o Pedro Santana Lopes e
vou-lhe dizer que isso é uma estupidez. Vai arranjar o sarilho da vida dele.
Eles não têm noção da popularidade com que tu estás…” Santana sabia-o bem. É
por isso que nesse dia terá dito a Salgado: “Ele que não saia da TVI”. Mas o
homem-forte do BES já não vai a tempo de impedir Marcelo.
Santana pede a Ricardo Salgado que convença Marcelo a não
abandonar o espaço de comentário: “Ele que não saia da TVI”
Em nota enviada à Lusa, quase em simultâneo com a reunião
entre Santana e Salgado, Marcelo anuncia a saída da televisão: “Na sequência de
uma conversa da iniciativa do presidente da Media Capital, Miguel Pais do
Amaral, decidi cessar, de imediato, a colaboração na TVI, a qual sempre pude
livremente conceber e executar durante quatro anos e meio.” Ao dizer “conversa
da iniciativa do presidente”, Marcelo sugere assim que estava a ser pressionado
para ser menos crítico de Santana e do Governo. O primeiro-ministro estava
debaixo de fogo: falou-se em “censura”. Sampaio chamou Marcelo a Belém, ouviu-o
antes do próprio primeiro-ministro, e deu ainda mais força ao caso.
Santana ainda faria um congresso em Barcelos — a 12, 13 e 14
de novembro — o da sua entronização como líder. Mantém como secretário-geral
Miguel Relvas e tem nas suas vice-presidências nomes como Rui Rio, Nuno Morais
Sarmento, José Luís Arnaut ou Pedro Pinto. A presidir à mesa do Congresso está
Manuel Dias Loureiro.
Neste congresso — em que o PSD cerra fileiras para se
aguentar no poder — Rui Rio dá a cara por Santana e cimenta o seu lugar como
número dois do partido. Como consta da segunda parte da biografia de Jorge
Sampaio, da autoria de José Pedro Castanheira: “[Após o Congresso] chefiada por
Rui Rio, a nova direção transmite a Sampaio o parecer ‘unânime’ do congresso de
que a coligação deve manter-se até 2006 e ‘depois se verá’…”.
A ida à discoteca, a moeda de Cavaco e a demissão de Chaves
A saída de Marcelo da TVI força a mexidas no executivo, que
o acabariam por fazer cair. Para proteger Rui Gomes da Silva — que tinha
criticado o espaço de comentário do professor — Santana passa o seu ministro
dos Assuntos Parlamentares para Adjunto no final de novembro. O problema é que
deixa Henrique Chaves, que era o ministro adjunto, apenas com a tutela do
Desporto.
Já estamos em novembro de 2004, num fim de semana (27 e 28
de novembro) que Santana Lopes considera “horribilis“. Nesse sábado, Cavaco Silva
publica um artigo no Expresso onde explicava que em economia a “má moeda”
expulsava a “boa moeda” e que em política devia ser ao contrário, embora cada
vez mais fosse difícil aos partidos manter os melhores. “Os agentes políticos
incompetentes afastam os competentes. Segundo a lei de Gresham, a má moeda
expulsa a boa moeda”, escrevia Cavaco. O nome de Santana Lopes nunca é
mencionado. Mas o artigo está cheio de segundos significados e o alvo é o
primeiro-ministro e o seu Governo.
Santana sobre a ida à discoteca: "Não em demorei mais
de meia hora, tendo saído para me deitar o mais cedo possível, uma vez que, no
dia seguinte, às sete e meia da manhã, tinha de estar a caminho de
Trás-os-Montes."
Nesse mesmo sábado, Santana vai a um aniversário (festa privada)
numa discoteca em Alcântara de, segundo conta mais tarde no livro, “alguém que
tinha ajudado muito” uma irmã sua. A versão de Santana era bem diferente da
contada nos jornais: “Não me demorei mais de meia hora, tendo saído para me
deitar o mais cedo possível, uma vez que, no dia seguinte, às sete e meia da
manhã, tinha de estar a caminho de Trás-os-Montes”. A Rádio Renascença, por
exemplo, noticiava de madrugada que “Santana Lopes irrompeu esta noite por uma
discoteca de Lisboa com a sua segurança“.
Henrique Chaves, após falar com a família, considera a
passagem para a pasta do Desporto uma “despromoção” e demite-se com estrondo
dias depois de ter aceitado tomar posse. Santana sabe pela Lusa. No comunicado
de demissão, Chaves é violento com Santana: “Não concebo a vida política e o
exercício de cargos públicos sem uma relação de lealdade entre as pessoas”. Diz
ainda que houve uma “grave inversão dos valores e da lealdade“. Henrique Chaves
era amigo pessoal de Santana Lopes. A imagem que passou foi: se nem o amigo
segurou, é porque não tem mão no Governo. Jorge Sampaio dissolveu a Assembleia
da República e o Governo de Santana caiu.
O “menino guerreiro” com apoio de Rio até depois do fim
Já não serão “trapalhadas” de 2004, como define Rui Rio, mas
foram erros de 2005. Após a dissolução da Assembleia da República, Santana
Lopes entra em campanha para ir novamente a votos. Do outro lado está José
Sócrates, pelo PS. Santana dá tiros no pé. O vídeo do Menino Guerreiro foi a
marca de uma campanha falhada — e ainda seria acusado de fazer comentários
sobre uma alegada homossexualidade de José Sócrates que começou a ser difundida
na internet. Num almoço com mulheres, Santana diz que lhe soube bem o apoio das
mulheres, acrescentando que “outros têm outros empurrões, outros colos.”
Santana negou sempre que esta fosse uma indireta para Sócrates, dizendo que era
um “divorciado com filhos”, tal como Sócrates, e que não se metia na vida
privada de ninguém.
A campanha foi desastrosa. Em fevereiro de 2005, o PS
consegue a sua primeira maioria absoluta e o PSD tem um péssimo resultado, com
apenas 28,77% dos votos. Santana demite-se, anuncia que não é recandidato à
liderança do partido, e convoca um congresso extraordinário. Porém, faz um
aviso à navegação: “Não vou estar por aqui mas vou andar por aí”.
Marcelo tinha perdido o seu espaço de comentário na TVI
(voltaria em 2005, mas na RTP), mas Santana também perdia o poder. O PSD estava
desfeito. Já Rui Rio continuava como presidente da câmara municipal do Porto e
uma das figuras de referência no partido.
Mesmo já depois da queda do Governo de Santana Lopes, antes
do congresso de abril de 2005, Rui Rio assumia em entrevista à revista Sábado
ser um defensor da ida do agora adversário para o poder. “Vamos ser claros: em
julho, ajudei a viabilizar a solução que o partido esmagadoramente queria para
substituir Durão Barroso”, lembrava.
Rui Rio recordava ainda que, com Durão “na Comissão
Política, era formalmente o número três”, mas com a saída de Barroso se torna,
“por essa via, número dois”. Ao que acrescenta: “Uma vez que o número dois do
Governo, Manuela Ferreira Leite, não apadrinhava a solução, a minha posição era
algo decisiva. Não tenho dúvidas que a esmagadora maioria do partido, não era
uma curta maioria, não queria eleições antecipadas e queria que o sucessor do
Governo fosse Santana Lopes.”
Vamos ser claros: em julho, ajudei a viabilizar a solução
que o partido esmagadoramente queria para substituir Durão Barroso (...) Na
Comissão Política eu era formalmente o número três e tornei-me, por essa via,
número dois. Uma vez que o número dois do Governo, Manuela Ferreira Leite, não
apadrinhava a solução, a minha posição era algo decisiva (...). Hoje voltaria a
dar corpo a essa solução".
Rui Rio, em entrevista à revista Sábado a 8 de abril de 2005
Mesmo após o que hoje chama de “trapalhadas”, em abril de
2005, Rio destacava que, embora os estilos fossem “muito diferentes”, tinha de
interpretar a vontade do partido e não se arrependia do apoio. “Hoje voltaria a
dar corpo a essa solução“, disse. Rio apoiou Santana até ao fim. Mesmo depois
de todos estes episódios serem conhecidos. Marcelo — que muitos acreditam que
prefere Santana a liderar o PSD e que tentou dar esse sinal com um almoço em
Belém antes do anúncio da candidatura — arrasava Santana domingo após domingo.
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