MINISTÉRIO
PÚBLICO
Transparência e Integridade:
Caso Centeno “não é do foro criminal, mas ético”
Para o presidente
da TIAC, o crime de recebimento indevido de vantagem é de prova muito difícil e
de âmbito discutível neste caso, em que o código de conduta do Governo
“revelou-se totalmente inútil”.
LEONETE BOTELHO
30 de Janeiro de 2018, 7:17
O caso Centeno “é
uma trapalhada que devia ter sido evitada”, mas em termos judiciais “só serve
para empatar recursos da Justiça”. É a opinião de João Paulo Batalha,
presidente da Transparência e Integridade Associação Cívica (TIAC), sobre a
investigação do Ministério Público ao Ministério das Finanças que coloca o
ministro Mário Centeno, recém-eleito presidente do Eurogrupo, na situação de
suspeito.
Na sexta-feira,
magistrados da 9.ª secção do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP),
que investiga o crime económico, estiveram cerca de hora e meia a fazer buscas
naquele ministério, no âmbito de um inquérito por suspeitas de favorecimento a uma
empresa dos filhos do presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, num processo
de isenção de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) de um prédio.
De acordo com o
Expresso, em causa está o crime de recebimento indevido de vantagem, com a
Justiça a querer saber se há alguma relação com a isenção fiscal obtida junto
da Assembleia Municipal de Lisboa (e confirmada pela Autoridade Tributária) e o
pedido, feito pelo gabinete de Mário Centeno, de dois bilhetes para o camarote
presidencial do Estádio da Luz para o ministro e o filho assistirem ao jogo
Benfica-Porto a 1 de Abril do ano passado.
Para João Paulo
Batalha, a investigação criminal é frágil, desde logo porque o IMI é um imposto
municipal, não sendo decidido pelo Ministério das Finanças, mas também porque o
crime de recebimento indevido de vantagem contém em si mesmo uma exclusão para
“as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes”. Uma
“formulação vaga”, diz o também jurista e consultor de comunicação, “a não ser
que o Ministério Público queira abrir uma discussão interminável sobre o que é
socialmente aceite”, para mais tendo em conta que Mário Centeno alegou questões
de segurança para não ir para a bancada, como era seu hábito.
“É um erro querer
levar estas questões para o domínio criminal, porque o problema é ético, é
relativo a condutas eticamente condenáveis”, defende João Paulo Batalha,
considerando também que se “revelou totalmente inútil” o código de conduta do
Governo. É que estas regras impedem a aceitação de presentes e ofertas de
hospitalidade acima de 150 euros, mas os bilhetes oferecidos a Centeno não são
comercializáveis e não têm um valor facial. Em qualquer caso, os danos
reputacionais ao ministro “estão feitos”, até porque, na sua opinião, Centeno
“foi imprudente, não manteve um braço de distância” das suspeitas e agiu “como
se não percebesse o que estava em causa”.
“Continuamos a
discutir futebóis no Ministério das Finanças”, comenta o presidente da TIAC,
numa alusão a Fernando Rocha Andrade, antigo secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais e um dos três que se demitiram na sequência do chamado Galpgate – que
levou à demissão dos três secretários de Estado que aceitaram viajar para
França a convite daquela empresa para assistir a jogos do Euro 2016. Os três
foram constituídos arguidos por indícios do crime de recebimento indevido de
vantagem, o mesmo que levou agora o Ministério Público ao Terreiro do Paço.
Para João Paulo
Batalha, o problema está na ausência de um gabinete, uma estrutura que possa
monitorizar e prevenir este tipo de condutas, que faça estudos e emita
recomendações para o Governo e para os cargos políticos e altos cargos públicos
em geral, mas também tenha poderes para fazer uma censura ética. “Se a Entidade
da Transparência, que está a ser discutida no Parlamento, for de âmbito mais
alargado do que a proposta que está em cima da mesa, podia ter essa
responsabilidade”, defende. Seria uma forma de preencher esta “gigantesca
lacuna” sobre regras éticas concretas, defende.
OPINIÃO
“Caso” Centeno,
uma vitória do populismo
Evite-se a
tentação de dar à turba o que a turba mais deseja: cimento para a sua cultura
de ódio a quem nos representa.
Manuel Carvalho
31 de Janeiro de 2018, 6:42
Há uns anos, até
o mais despudorado dos jornalistas teria vergonha em publicar uma notícia sobre
a suspeita de favorecimento de um ministro que ousou pedir dois bilhetes para
um Porto-Benfica. Hoje esse assunto é manchete de jornais, notícia nas rádios,
abertura das televisões e um maná para as redes sociais exultarem com mais uma
“prova” da indecência dos políticos. E é assim não apenas por causa da
degradação do jornalismo ou pela persistente mania da gente da Justiça em
tornar público o que deve ser segredo: é-o também por directa responsabilidade
de quem nos representa. Quando um partido como o PS se dedica a criar “códigos
de ética” nos quais governantes e deputados são vistos crianças que precisam de
ser adestradas para resistirem a ofertas de bilhetes para espectáculos, está a
alimentar as suspeitas que pretende combater; quando a classe política deixa
subentender que nas suas consciências há lacunas de princípios que impedem a
separação entre o que se pode ou não pode fazer, estão escancaradas as portas
para o gérmen do populismo que transforma um bilhete para a bola num caso de
corrupção.
O lamentável episódio
que por estes dias envolveu o ministro Mário Centeno é por isso um sintoma de
que a turba demagógica e populista que acredita num mundo de relações
bacteriologicamente puro por força de normas e códigos de normas está a ganhar
terreno. Os políticos estão a deixar de ser sérios até prova em contrário para
passarem a ser corruptos por natureza. É este preconceito subliminar que
determina a feitura de mais e mais códigos, a emissão de mais e novas regras
para os impedir de dar largas à sua duvidosa estatura ética ou à sua débil
responsabilidade cívica. Mário Centeno não trata directamente de
insignificâncias como o reconhecimento da isenção do IMI? De pouco interessa.
Mário Centeno pediu bilhetes para ir ao jogo porque, na sua condição de figura
pública, não pode nem deve ir para o meio dos No Name Boys ou dos Super
Dragões? De nada vale. O que vale é uma suposta violação do “código de ética”
aprovado pelo Governo depois das viagens de secretários de Estado ao Mundial de
Futebol. A Caixa de Pandora foi aberta. Agora vale tudo.
Bem sabemos que
quem por estes dias se arrisque a dizer que a política é um exercício nobre de
cidadania corre o risco de ser defenestrado. É verdade que o espaço mediático
está infestado de casos reais e de muitas suspeitas de venalidade no exercício
de cargos públicos e políticos. No caso do PS, o trauma de ver um dos seus
secretários-gerais e ex-primeiro-ministro acusado num caso horrendo de
corrupção gerou um efeito de má consciência e de vulnerabilidade ao instinto
punitivo do politicamente correcto que o partido tenta sublimar com mais
regras. Mas, por um momento, era bom que se parasse para tentar perceber o
caminho que essas regras abrem para o futuro. Porque uma coisa é verificar se o
aparelho legal montado para prevenir e punir desmandos dos políticos existe e é
eficaz; outra, muito diferente, é ceder à pressão dos que dizem que eles são
todos iguais, quer dizer, todos corruptos e desatar um nó de medidas para
acalmar essa ansiedade.
Quando se tratam
os deputados como mentecaptos que precisam que lhes faça um desenho para não
caírem na tentação, está-se a degradar a nobreza da função parlamentar e a
projectar sobre eles uma imagem de imbecilidade que não só os desprestigia como
desprestigia a democracia. Quando se decreta que “os governantes devem recusar
convites para assistirem a eventos sociais, institucionais ou culturais, que
possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas
funções e que tenham valor estimado superior a 150 euros” não se defende a
transparência nem se garante a defesa do interesse público – apenas a gula dos
que olham para os políticos como quem olha para um saco de boxe. Um deputado
digno desse nome tem o dever de saber distinguir as prendas interessadas e as
prendas cordiais ou institucionais, custem 149 ou 151 euros. Se por acaso
precisarem de instruções assim com este nível de detalhe, deixarão pura e
simplesmente de ser homens livres, a condição fundamental para nos defenderem.
Passarão a ser “sacerdotes vestais”, como denunciou o deputado Sérgio Sousa
Pinto, que agem em função daquilo que o chefe prescreve e a multidão exige, até
em domínios essenciais da personalidade como a ética.
Quando se chega a
este ponto, quando a classe política se dispõe a apoucar-se de uma forma assim
tão crua, tudo pode acontecer. Depois de se censurar um pedido de bilhetes para
a bola, hão-de verificar-se os menus dos restaurantes onde jornalistas, homens
da cultura ou dos negócios conversam com deputados ou secretários de Estado. Os
preços do menu principal hão-de começar a ser escrutinados até ao vintém, e as
cartas de vinhos dos restaurantes mais caros tornar-se-ão um maná para o
jornalismo sanguessuga ou para a magistratura que se acredita investida da missão
de regenerar o país. O ridículo gerará uma cultura inquisitorial e a cultura
inquisitorial será apenas suportável pela malta das jotas habituadas a anos e
anos de indigestão causada pelas patifarias políticas. Nenhum homem ou mulher
livre, decente, inteligente, culto e dono de saberes próprios ousará meter um
pé num esterco dessa profundidade.
Razão tem a
deputada socialista Isabel Moreira, quando nas jornadas parlamentares do PS que
discutiram o famigerado código para os parlamentares declarou: "Podemos
salvar o regime da bandalheira, dos corruptos e dos saqueadores da democracia.
Isso é indispensável à sobrevivência do regime, mas também temos de salvar o
regime dos salvadores do regime". Para o fazer, os deputados, a classe
política em geral, tem de dar o peito às balas e dizer o que toda a gente sabe
mas não diz por medo do populismo e da demagogia do politicamente correcto: que
há nos corpos legislativos mecanismos mais do que suficientes para detectar as
venalidades de potenciais ovelhas negras e, principalmente, para as punir.
Que se legalize o
exercício do lobbying, que se criminalizem as omissões ou “os esquecimentos” em
torno das declarações obrigatórias dos bens patrimoniais dos políticos no
Tribunal Constitucional, tudo bem. Mas evite-se a tentação de dar à turba o que
a turba mais deseja: cimento para a sua cultura de ódio a quem nos representa.
Seguindo esse caminho, o da cedência, o da cobardia e o do medo de enfrentar o
fel que se derrama das redes sociais, acabaremos por ter de viver todos os dias
com epifenómenos como o que afecta Mário Centeno. E então a democracia não
agonizará pelo mal mas pela sua suposta cura.
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