Fábrica Braço de Prata. "Esta
bomba não rebentará"
Esta é a história de como um
professor de Filosofia transformou um espaço devoluto, desejado por
imobiliárias, num centro cultural onde o armamento foi substituído pela arte. E
que sobrevive há uma década na ilegalidade.
CRISTIANA FARIA MOREIRA 7 de Janeiro de 2018, 13:26
Por que é que nunca houve uma greve numa fábrica de
armamento? O que se passa para que a classe operária, tão capaz de lutas, não
tenha conseguido entrar nos portões de uma fábrica de armas? As questões
levantou-as José Saramago. E quem sabe as respostas a essas dúvidas estejam
projectadas nos primeiros três capítulos de um romance que conta a história de
amor entre uma pacifista e um trabalhador de uma fábrica de material de guerra.
Deixou-o por acabar, mas o enredo do romance ter-lhe-á
surgido após uma conversa com "um velho republicano espanhol" que lhe
contou sobre uma bomba que, em plena Guerra Civil, não explodiu. Quando a
desarmadilharam, encontraram um bilhete escrito em português onde se podia ler:
"Esta bomba não rebentará”.
Para Saramago, poderia até ter sido um operário da Fábrica
Braço de Prata, em Lisboa, a ousar fazê-lo. Quem nos conta esta história de
amor, misturada com a sabotagem da guerra, é Nuno Nabais, o professor de
Filosofia que, há dez anos, quis tornar parte de um antigo espaço de fabrico de
armamento num local em que as armas são a música, a literatura, a pintura ou a
escultura.
O livro chama-se Alabardas, foi publicado em 2014, e
apresentado, ali, na Fábrica, onde estiveram presentes, “rodeados por
guarda-costas”, o juiz espanhol Baltasar Garzón e o escritor e jornalista
italiano Roberto Saviano. Diz Nuno Nabais que terá sido o momento mais marcante
nestes dez anos de Fábrica Braço de Prata que, segundo conta, foi de facto o
cenário da obra do prémio Nobel da Literatura.
É que o escritor tinha ligações ao local por se ter formado
como serralheiro mecânico na Escola Industrial Afonso Domingues, em Marvila.
"O sonho de qualquer aluno daquela escola, nos anos 40 e 50, era ir
trabalhar para a Fábrica Braço de Prata", recorda Nuno. "Saramago não
conseguiu, mas vinha muitas vezes encontrar-se com os antigos colegas
aqui".
O edifício apalaçado ter-lhe-á ficado na memória, assim como
os mosaicos axadrezados do chão, a escadaria, a fachada com o escudo português
e as iniciais FBP, os símbolos alusivos ao trabalho e ao produto que ali se
fabricava. Este é hoje o cenário de um espaço cultural, que é uma livraria, com
salas de concertos, galerias de exposições, e um restaurante que serve bebida e
comida, à margem da lei. Que dez anos depois estará "em vias de formalizar
um acordo miraculoso” com a câmara de Lisboa para passar a poder vender
cervejas sem estar sujeito a multas.
É uma história de resistência e de amor, como veremos, entre
um filósofo e uma agente de bandas, com a música, os livros, a dança, a pintura
e a escultura. Com a arte.
Viajar pela arte de sala em sala
É fim de tarde de uma terça-feira de Outono quando nos
sentamos com Nuno numa das mesas da Fábrica. Está fechada, menos para os alunos
da Escola de Música, o seu mais recente projecto, e para os "amigos"
que vão chegando, a quem não é negada a entrada.
A Fábrica recebe-nos numa sala ampla, pé direito alto e bar
a um canto. Depois, é começar a percorrer as salas que vão desembocando noutras
salas, que tomam os nomes de filósofos, como Platão, Nietzsche, Arendt, de
escritores como Eduardo Prado Coelho e Saramago ou artistas como Kandinsky. São
13, no total, que não servem para uma coisa só.
Em dez anos, Nuno Nabais diz ter feito mais de 700
exposições de artistas plásticos, sendo que “nenhum artista expôs duas vezes”.
Acolhe cerca de 60 concertos, de vários estilos, por mês. Por vezes, há vários
na mesma noite e o objectivo é que se circule pela Fábrica, guiados pelas notas
que mais cativam, entrando e saindo, ao ritmo e vontade de cada um, sem
constrangimentos.
Aberta de quarta a sábado, não se pagam as entradas; dão-se
antes "donativos". No total, sublinha, mais de 1,6 milhões de euros
passaram “dos bolsos do público para os bolsos dos músicos”. “Todos recebem o
mesmo. Não é por banda, é por cabeça”, diz.
Salvador Sobral já ali tocou por várias vezes. A Fábrica
serve, inclusive, de pano de fundo ao videoclip de Excuse Me, tema que dá nome
ao primeiro álbum do músico. À sexta, ali costuma tocar o pianista e compositor
Júlio Resende, que também acompanha Sobral e com quem tem o projecto Alexander
Search. O que leva Nuno a dizer, orgulhosamente, que este é um dos melhores
locais para se ouvir jazz na capital.
"Há imensos esqueletos nos armários desta fábrica"
Pedimos que nos explique como é que sobreviveu ali, numa
zona da cidade que se diz agora na moda, quando, “há dez anos, ninguém ia para
o Poço do Bispo”, refém da memória das docas, da Fábrica Militar, da Fábrica
Nacional de Sabões, da Tabaqueira, dos fósforos, da borracha, dos armazéns de
vinho de Abel Pereira de Fonseca, do frenesim das horas de almoço onde os
trabalhadores saíam e preenchiam as ruas de Marvila.
Para isso, voltemos ao início do século XX, quando aquele
complexo industrial foi construído, para se dedicar ao fabrico de munições de
artilharia, sob a alçada do Arsenal do Exército.
"Há imensos esqueletos nos armários desta
Fábrica", desabafa Nuno. A Guerra do Ultramar foi o garante da fábrica,
com a produção intensiva de espingardas automáticas, morteiros, metralhadoras,
munições, fardamentos e outros artigos que equiparam as Forças Armadas
Portuguesas. Chegou a empregar cerca de 12 mil operários, que produziram também
armamento para a República Federal da Alemanha.
Já nos anos 90, a Fábrica acabaria por ser desactivada e
votada ao abandono, mas rapidamente seria revelado o interesse de construtores
imobiliários naqueles terrenos.
A história de Nuno com a fábrica começa à boleia da família.
“Somos cinco irmãos. Um deles é engenheiro civil e, em 1997, era membro da
administração de uma empresa de construção, a Somague”. Que se tinha associado
à Obriverca e criado a empresa Jardins de Braço de Prata. O objectivo era
comprar a antiga fábrica de material de guerra para construir aquilo que está,
finalmente, duas décadas depois, a ser construído - um empreendimento de
apartamentos de luxo, projectado pelo arquitecto italiano Renzo Piano (Prémio
Pritzker, co-autor do Centro Georges Pompidou, em Paris) em 1998.
Em 1999, outro irmão, advogado de profissão, “fez um
contrato de comodato com a empresa Jardins de Braço de Prata”, conta Nuno, o que
lhe permitia ocupar o edifício, sem pagar renda, ficando responsável pela
manutenção do edifício. Segundo refere o professor, a autarquia queria que o
edifício fosse sua propriedade, o que só aconteceria assim que “o
empreendimento estivesse concluído e a câmara tivesse passado as licenças de
habitação aos apartamentos”.
Ora, em 2002, a obra acabaria por ser embargada. Foram
surgindo outros planos para o local, mas nunca nada avançou. À data, além de
dar aulas de Filosofia na universidade tinha, no Bairro Alto, uma livraria
especializada em Filosofia e Teatro - a Eterno Retorno -, próxima da Ler
Devagar, de José Pinho. Em 2005, livraria de Pinho foi forçada a sair do
edifício que ocupava na Rua de São Boaventura. Em “solidariedade”, diz Nuno,
também fechou as portas. O plano era partilharem casa, o que ainda veio a
acontecer, na Galeria Zé dos Bois e na Rua da Rosa, mas sempre “com o
sacrifício da Eterno Retorno”, aponta.
"Uma livraria sem bar não funciona"
A parceria com a Ler Devagar acabou por não dar muito certo
e, sem sítio para pôr os livros, acabou por encontrar o espaço de que precisava
na Fábrica.
Entretanto outro irmão tinha montado uma galeria de arte num
dos salões da Fábrica, quando surge a ideia: “Por que não abrir um espaço das
artes na fábrica, com livraria, café e galerias de arte?", recorda o
professor, para quem “uma livraria sem bar não funciona”.
A ideia avançou com a ajuda dos alunos da faculdade, de
amigos músicos, que pintaram paredes, montaram móveis. Comprou um piano a
prestações, transformou casas de banho numa cozinha e o espaço passou de
livraria a sala de concertos, galeria de exposições e restaurante. Conta que a
Fábrica só está hoje de pé porque fez um crédito de “seis mil euros
milagrosos”, numa daquelas bancas à saída do metro.
A partir daí, foi uma corrida contra o tempo. Antes da
abertura, reatou a parceria com a Ler Devagar. Era assim apresentada uma nova
livraria em Lisboa: Ler Devagar/Eterno Retorno.
Acabou por inaugurar com o pretexto dos Santos Populares.
Sem possibilidade de desembolsar “centenas de milhares de euros” para fazer as
obras para licenciar o espaço como equipamento cultural, pediu à câmara uma
licença para fazer um arraial de Santo António. “Até hoje, é a única licença
que eu tenho, para o mês de Junho de 2007. Hoje, é um caso de estudo. Como é
que um espaço destes sobrevive dez anos na ilegalidade?”.
“Nuno, aguente-se na ilegalidade”
Em 2008, a obra do empreendimento dos Jardins de Braço de
Prata acabaria por ser desembargada. Adivinhava-se o fim daquele espaço, mas um
artigo do The New York Times, de Julho, intitulado Lisbon comes alive (Lisboa
ganhou vida, em tradução livre), acabaria por “salvar” a Fábrica, acredita
Nuno. O texto arrancava com a referência à “fábrica de armas durante os
sombrios anos da ditadura em Portugal, com as instalações há muito abandonadas,
[que] renasceu para ser o mais recente e ambicioso espaço cultural de Lisboa”.
É uma visita guiada à Fábrica por Nuno, que naquela altura
fazia tudo: "Vendia os bilhetes, vendia a cerveja, tudo". O chamariz
da noite - e do jornalista - era Michel de Roubaix, artista do sapateado e do
acordeão que ali actuava.
Dias depois, numa reunião da assembleia municipal, a
deputada Helena Roseta levou uma proposta acompanhada daquele artigo, que
consistia em passar o edifício para equipamento cultural, assim que aquelas
instalações passassem para propriedade da câmara. E, na gestão do espaço, em
nome do município, permaneceria Nuno Nabais.
Nada avançou, a primeira pedra do empreendimento ainda foi
lançada, em 2010, 12 anos depois de o projecto ter sido apresentado, visando
retomar o processo de regeneração urbana iniciado com a Expo 98. Mas a
Obriverca acabaria por abrir falência e a obra foi, mais uma vez, parada.
“Aqui temos estado estes dez anos, vulneráveis a qualquer
inspecção. Sempre que cá vem ASAE sou multado", lamenta. "Contesto a
contra-ordenação, vou para o tribunal. Em tribunal os juízes percebem que é um
acontecimento cultural, absolvem-me ou reduzem-me a multa”, partilha resignado.
"Pagamos tudo, apesar de sermos ilegais. Pagamos IVA,
IRC, à Sociedade Portuguesa de Autores, à Inspecção Geral Das Actividades
Culturais (IGAC). Não pagamos a renda, mas de resto pagamos tudo”, admite.
Diz que a câmara ainda se meteu nas negociações com os
proprietários, sem grandes resultados. Tentou depois fazer um acordo com Nuno
que este recusou, por não conseguir pagar a renda que lhe pediam. Mas assegura
que a autarquia o tem animado e resistir: “Nuno, aguente-se na ilegalidade”. A
solução parece ter chegado.
Um acordo "miraculoso"
Ainda no ano passado, em Fevereiro, no mesmo ano em que
comemorou uma década de existência, a câmara propôs-lhe um acordo: passaria a
ter um contrato de arrendamento, desde que garantisse a integração da
comunidade local nas suas actividades.
“Estamos em vias de formalizar um acordo miraculoso”, diz
Nuno, explicando que a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural
(EGEAC) encarregar-se-ia de montar uma “estrutura no exterior para espectáculos
ao ar livre”. “Eles [a EGEAC] usam essa estrutura 60, 70 dias por ano, nos
outros usamos nós. E se aceitássemos, não precisávamos de pagar renda”,
detalha.
Nuno está responsável por tratar do texto da proposta de
protocolo onde deve “incluir um conjunto de contrapartidas” que a fábrica dará
à cidade: propinas grátis para a escola de música aos miúdos de Marvila,
concertos gratuitos nas escolas da freguesia, sessões de leituras, edição de
obras. O PÚBLICO tentou, sem sucesso, obter mais informações junto da
autarquia.
Depois de assinado o protocolo, terá um contrato de
arrendamento. “E finalmente vou pedir alvará para, finalmente, poder vender
cervejas sem estar sujeito a multas”.
Neste momento, emprega 14 funcionários. É precisamente a
parte da fábrica que não está legal que lhes permite sobreviver: o restaurante
e bar. Já que, “100% da bilheteira é para os músicos, 100% do valor das obras
de arte que se vendem é para os artistas”.
“Só nos sustentamos - que não sustentamos - porque todos os
meses temos que entrar com 500, 1000 euros para o orçamento da fábrica”, diz.
“Se eu não continuasse a dar aulas, a Fábrica não existia. Sobrevivi a tudo
isto. Já não sinto a fome que sentia naqueles meses. Já não sinto a angústia de
ir para tribunal". É tudo parte de "um grande romance" que conta
às pessoas quando lhe perguntam porque se meteu nesta embrulhada.
A co-protagonista deste romance rocambolesco é Sílvia, que é
a responsável pela produção musical, e a mãe de dois filhos de Nuno, o Gabriel
e a Violeta, "100% made in Fábrica Braço de Prata". “Conheci a Sílvia
aqui. Ela era agente de uma banda rock. Depois convidei-a para trabalhar comigo
e nasceram estes filhos”.
Com a construção do empreendimento de luxo, que se vai
estender pela frente ribeirinha, "a malta pobre vai ficar a olhar para uma
barreira de betão armado", considera Nuno Nabais. "E nós vamos ficar
aqui como um enclave, rodeados de prédios de luxo. Um enclave com memórias do
25 de Abril, com funcionamento ilegal assumido, com 60 concertos por mês, sete
exposições, uma livraria”. Como parte de um romance inacabado.
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