A histórica Livraria Aillaud &
Lellos, na Rua do Carmo, fechou de vez as suas portas
POR SAMUEL ALEMÃO • 9 JANEIRO, 2018
A competência e a simpatia sem adornos de Teresa e de Isabel
já não estão disponíveis para quem as conhecia, há décadas, atrás do velho
balcão de madeira, sempre deferentes para quem ali rumava em busca daquele
livro. As duas funcionárias da Livraria Aillaud & Lellos, na Rua do Carmo,
deixaram de poder atender os clientes no último dia útil do ano passado, a 29
de dezembro, pondo assim um ponto final a uma estória iniciada em 1931. Apesar
de ter sido incluída, no ano passado, na recém-formada rede do programa “Lojas
com História”, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), a livraria terá
encerrado as suas portas definitivamente. A confirmá-lo, desde este
fim-de-semana, apresenta as montras cobertas por folhas de papel brancas e o
dizer “Encerrado” na porta, por detrás do vidro com o autocolante ostentando o
logótipo do “Lojas com História”. O desacordo entre o senhorio e a empresa
proprietária da loja quanto ao valor da renda terá sido a causa de tal
desfecho.
“Estou chocada, não
acredito”, repetia uma cliente de há três décadas, ao final da tarde desta
segunda-feira (8 de janeiro), os olhos a vogarem em memórias projectadas na
fachada de Art Déco, desenhada por António José Ávila do Amaral, colaborador de
Cassiano Branco, tal como o seu interior. “Está tudo a fechar, é uma vergonha,
não sei o que se passa com esta cidade. Mais uma livraria encerrada”,
desabafava a O Corvo Teolinda Alves, engenheira civil de 62 anos e uma confessa
generosa compradora de livros. “Há mais de 30 anos que aqui vinha comprar
livros. Esta casa, juntamente com a Livraria Portugal e a Sá da Costa, eram os
meus pontos de referência aqui, não percebo como é que uma coisa destas pode
acontecer”, revoltava-se a antiga cliente, nascida em Bragança e lisboeta por
décadas de vivência, evocando a qualidade do atendimento e, sobretudo, o
serviço inestimável prestado a todos os bibliófilos, naquela que era uma das
mais icónicas livrarias da capital portuguesa.
Isto porque, nos
últimos anos, para além das novidades, sempre expostas na montra esquerda, a
Livraria Aillaud & Lellos especializara-se em fundos de catálogo de algumas
das mais prestigiadas chancelas livreiras nacionais, a preços de desconto. “Se
eu quisesse alguma coisa da Cavalo de Ferro, da Teorema, da Antígona ou da
Cotovia, sabia que era aqui que podia encontrar. Aliás, muitas vezes, quando
gostava de uma certa obra e queria oferecer uma dezena de exemplares aos meus
amigos, vinha cá e pedia-lhes, que elas conseguiam sempre. A loja sempre
vendeu, não percebo como pode acontecer uma coisa destas”, afirma Teolinda,
possuidora de uma biblioteca privada de “milhares de livros”. Das suas
livrarias de eleição, resta a Sá da Costa, lá mais para cima, no topo da Rua
Garrett. “Noto uma mudança muito grande na cidade. É verdade que, até há pouco,
muito estava devoluto. É bom que se renove e recupere. Mas só vejo lojas
incaracterísticas e hotéis. Qualquer dia, esta bolha rebenta”, profetiza.
Quando acaba de dizer
estas palavras, a dois metros de si está Carla Figueiredo, 55 anos, também ela
suspensa pela incredulidade, mesmo em frente à porta que, ainda há pouco, era
franqueada por muitos dos que procuravam algumas obras descatalogadas ou fora do
circuito dos escaparates das livrarias mais chamativas. Não seria o seu caso,
assume, embora lá tenha ido algumas vezes, mas o encerramento de “mais uma loja
histórica” deixa-a entristecida. “Isto faz-me doer a alma, parece que todas
estes estabelecimentos que davam a identidade da nossa cidade estão a fechar
portas. Esta foi à vida, como outras também irão, lamentavelmente”, desabafa a
funcionária pública, enquanto acaba de comer um gelado. O travo amargo, esse,
vai ficar, garante. “A Câmara de Lisboa devia ter poderes para impedir uma
coisa destas, para salvar isto. Não sei como, mas devia. Daqui a uns anos, o
que vamos ter aqui serão lojas de bugigangas e de marcas internacionais, sem
nada que as distinga. As coisas vão-se perdendo. O que prevalece é a lei do
cifrão, cada vez mais”, diz, antes de, a passo lento, continuar a descer a Rua
do Carmo.
É mais uma que fecha na Baixa:
Livraria Aillaud & Lellos desmancha a casa
Histórica livraria da rua do Carmo,
no Chiado, fechou as portas no virar do ano por causa do aumento “brutal” da
renda que o proprietário não está disposto a comportar. E nem a distinção no
programa “Lojas com História” da câmara de Lisboa impediu que as estantes se
esvaziassem definitivamente.
CRISTIANA FARIA MOREIRA 9 de Janeiro de 2018
Um cartaz improvisado onde se lê “Encerrado” denuncia o fim
da histórica Livraria Aillaud & Lellos na rua do Carmo, em Lisboa. O jornal
online O Corvo deu conta do fecho da casa na segunda-feira e a confirmação
chegou ao PÚBLICO assim que batemos à porta da livraria. Já de portas fechadas,
Teresa, Isabel e Conceição, que ali trabalham há décadas, estão a desmanchar um
espaço que ajudaram a construir.
É mais uma casa quase centenária, que ali abriu em 1931 pela
mão de duas famílias livreiras - os Lello e os Aillaud -, a fechar de vez as
portas por conta do aumento “brutal” da renda, imposto pelo senhorio, e que o
proprietário da livraria não está disposto a pagar.
São "muitas, muitas mesmo” as pessoas que, por estes
dias, lhes têm batido à porta, diz Teresa Alemão, 61 anos, dos quais 25 foram
dedicados aquela casa. "Temos clientes que quando souberam saíram daqui
com os olhos rasos de água", conta.
A decisão de encerrar a livraria foi-lhes comunicada no
início de Novembro pela família Lello, que detém também a célebre livraria
homónima no Porto, junto à Torre dos Clérigos, por causa do “aumento brutal” da
renda, imposto pelo senhorio, para aquele espaço. O PÚBLICO entrou em contacto
com a Lello Editores, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Foram dizendo aos clientes mais antigos, que se tornaram
amigos, de que iam fechar. "As pessoas batem à porta e dizem: 'Tenho muita
pena'", partilha Isabel Ferreira, 62 anos, que ali está há 44.
O último dia de abertura ao público foi a 30 de Dezembro, mas
os últimos dias têm sido ocupados a esvaziar as estantes da livraria. Sem
possibilidade de os transferir para outro lugar, os livros vão sendo
encaixotados, grande parte para serem devolvidos às editoras. No dia 15, contam
ter a casa vazia para com “muita mágoa e muita tristeza”, a entregarem ao
senhorio.
Conceição Fernandes, 57 anos, chega a meio da conversa
porque esteve a contar a uns fregueses que a livraria ia mesmo fechar.
"Agora que estamos a chegar ao fim, está a ser muito doloroso. Começamos a
tomar isto como se fosse a nossa casa", diz a funcionária que ali
trabalhou durante 27 anos.
As dificuldades pelas quais o mercado livreiro atravessa não
deixam de ser tema de conversa. As grandes cadeias e a Internet ameaçam as
casas mais pequenas. O mês de Dezembro, por exemplo, aponta Teresa, “foi um
fracasso, ao contrário dos outros anos”.
Os últimos anos não têm sido fáceis para o sector livreiro
em Portugal. Em Fevereiro do ano passado, o PÚBLICO dava conta do encerramento
da Livraria Rodrigues, situada entre as ruas do Ouro e dos Sapateiros. Já em
2012, a Livraria Portugal, aberta em 1941, fechou as portas para dar lugar a
uma loja de brindes também na rua do Carmo. Assim como a Livraria Barateira,
desde 1914 na rua Nova da Trindade, que também fechou nesse ano. No Rossio, a
livraria do Diário de Notícias (de 1938) foi substituída, em 2013, por uma loja
de tecidos.
Mas a crise chega a outros sectores, apontam as funcionárias
da livraria, referindo o desaparecimento de mais duas lojas antigas na rua, só
nos últimos três meses: a Sapataria Hélio e a Camisaria Trezentos.
Uma “Loja com História”
A rua do Carmo é testemunha de muito da história do comércio
de Lisboa. A agora de portas fechadas Livraria Aillaud & Lellos está frente
a frente com a Luvaria Ulisses e a Joalharia do Carmo. Estas três fazem parte,
aliás, do programa “Lojas com História”, promovido pela câmara de Lisboa, para
“preservar e salvaguardar os estabelecimentos [de comércio tradicional] e o seu
património material, histórico e cultural”.
Mas nem essa distinção “safou" a Aillaud & Lellos.
"A câmara disse-nos que não podia fazer nada porque o senhorio queria um
aumento de renda e não podiam intervir", explica Isabel.
Questionada pelo PÚBLICO, a câmara de Lisboa referiu que
quando teve conhecimento do fecho de portas da Livraria Aillaud & Lellos,
“já existia acordo entre o senhorio e o inquilino para o encerramento do espaço
no final do ano”. Ainda assim, acrescentou a autarquia, “o grupo de trabalho
das Lojas com História, reuniu, por um lado, com a entidade que explorava a
Livraria, e com o senhorio, tentando sensibilizá-lo para a perda da distinção
da loja caso não se preservassem os elementos que deram origem à distinção”.
Sem o fausto da livraria do Porto, a Aillaud & Lellos
organiza-se em torno de uma coluna central, que é também uma estante, e um
friso que emoldura a quase totalidade da loja. Mas é a fachada, trabalhada em
mármore, por António José Ávila do Amaral, colaborador de Cassiano Branco, para
que se assemelhasse à lombada dos livros, que dá nas vistas. Nas colunas que
ladeiam a porta de entrada, além dos motivos que aludem aos livros, estão
gravados nomes de autores portugueses, como Camilo Castelo Branco ou Eça de
Queiroz.
A par dos clássicos da literatura portuguesa, a livraria
detinha obras de editoras “que noutro lado eram difíceis de encontrar”, como a
Colibri ou a Antígona, aponta Isabel.
"Depois tínhamos sempre muitas promoções, livros muito
em conta que não se arranjavam em mais lado nenhum", completa Teresa. A
clientela já tinha alguma idade, mas, no Verão, a livraria animava quando
chegavam os estrangeiros.
Já chegaram a ser sete funcionários, sobraram “as três da
vida airada”. Que, entre caixotes e estantes vazias, lembram os clientes mais
inusitados que por ali entraram, como um "senhor alto, todo bem
composto" que chegava à estante central e rasgava sempre uma folha de um
livro. "O senhor fazia sempre aquilo, até que um dia descobrimos. Acho que
o senhor tinha problemas de cabeça e um dia veio-nos pedir desculpa porque não
sabia porque fazia aquilo”, recorda Teresa.
Serão obrigadas agora a ir para o desemprego, depois para a
reforma. Houvesse capital disponível e ainda fundavam as três uma nova
livraria, atira Conceição. “Se saísse o Euromilhões, pode crer que abríamos”.
Sem comentários:
Enviar um comentário