segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Azulejos de Lisboa (e não só) podem vir a ser vendidos apenas em antiquários




Azulejos de Lisboa (e não só) podem vir a ser vendidos apenas em antiquários
POR SAMUEL ALEMÃO • 29 JANEIRO, 2018 •

Depois do furto do painel de azulejos da Leitaria Anunciada, original do início do século XX, o Fórum Cidadania de Lisboa pediu à Câmara de Lisboa “tolerância zero” ao comércio ilegal destas peças. O movimento diz que a legislação “só protege os azulejos de fachada de projectos de reabilitação de imóveis, deixando, por isso, muitos de fora”. Apela, por isso, à necessidade de se fazer uma inventariação nos interiores. A autarquia da capital anunciou, entretanto, que está a estudar a instalação de um sistema de videovigilância junto a alguns painéis. O roubo de azulejos está a diminuir, mas a Polícia Judiciária (PJ) continua a ter dificuldade em confirmar a sua proveniência. E, por isso, quer levar ao parlamento uma proposta para restringir a venda às lojas de antiguidades. “Deixaria logo de haver uma venda descontrolada de azulejos e um esvaziamento das feiras”, diz a coordenadora do projecto SOS-Azulejo, da PJ. Nos últimos anos, a procura de azulejos tem vindo a aumentar, também, com o crescimento do turismo.

 Texto: Sofia Cristino

 Entre 2006 e 2017, o furto de azulejos diminuiu, drasticamente, em Lisboa. Para os defensores dos mosaicos identitários da cultura portuguesa e especialistas na área, contudo, ainda há muito a fazer no sentido de preservar o património azulejar. No centro histórico da capital portuguesa, continua-se a ver buracos nas paredes azulejadas e as vendas ilícitas prosseguem. A Polícia Judiciária (PJ) tem dificuldade em confirmar a proveniência dos azulejos vendidos em feiras e, por isso, vai levar à Assembleia da República uma proposta para restringir a venda de azulejos apenas às lojas de antiguidades.

 Em 2007, na sequência de uma vaga alarmante de furto de azulejos, o Museu da Polícia Judiciária criou o projecto SOS-Azulejo, para prevenir a criminalidade e aumentar a consciencialização da importância do património dos azulejos. Leonor Sá, coordenadora do projecto SOS-Azulejo, em declarações a O Corvo, diz que, passados dez anos da implementação do programa, o balanço é “muito positivo”.


“Verificou-se uma diminuição em mais de 80% do furto de azulejos registados, históricos e artísticos, na Directoria de Lisboa e Vale do Tejo da PJ. Este ano, houve apenas cinco furtos em Lisboa. No resto do país, só há roubos esporádicos. Há uma diminuição muito visível e drástica. Penso que o período em que o azulejo foi mais associado a furto já foi ultrapassado”, considera.

 Em agosto do ano passado, foi aprovada uma lei que proíbe a demolição de fachadas azulejadas e a remoção de azulejos das mesmas, na sequência de uma proposta do SOS- Azulejo apresentada, em 2016, ao parlamento e transformada num projecto de lei pelo PS. Os proprietários de imóveis passaram a ter de pedir uma licença camarária para demolir ou retirar azulejos. Uma conquista que, segundo Leonor Sá, constituiu “uma viragem na história da protecção dos azulejos”.

 “Conseguirmos que a lei fosse aprovada foi uma machadada muito grande nos ‘amigos do alheio’ do azulejo. Têm havido tantas remoções que, sem esta lei, rapidamente deixaríamos de ser o país com mais azulejos do mundo”, congratula-se. No entanto, ressalva, “ainda há muito por fazer”, sendo o próximo passo discutir outra proposta do SOS-Azulejo, de limitar e controlar a venda de azulejos antigos. Esta já tinha sido apresentada, em 2016, à Assembleia da República, não tendo sido, contudo, aprovada.

“Houve uma proposta que ficou de fora e queremos voltar a pegar nela. Hoje já existe uma obrigatoriedade das lojas de antiguidades de fazerem um mapa do que compram e do que vendem. A nossa proposta é de que as vendas se limitem a essas lojas. Deixaria logo de haver uma venda descontrolada de azulejos e um esvaziamento das feiras. Na altura, quem viu a proposta viu alguns impedimentos, mas nós temos dados concretos de que é exequível”, informa.

Francisco Queiroz, membro da Rede de Investigação em Azulejo há 22 anos, acredita que há lacunas no decreto-lei anunciado em agosto. “Não resolve metade dos problemas relacionados com o furto de azulejos. Essa lei vem apenas colmatar um buraco, ao proteger só os azulejos de fachada”, alerta, em declarações a O Corvo. O investigador considera, ainda, que “há muito desconhecimento nesta área” e que as entidades que têm competência para sensibilizar a população da importância do património português “não têm feito nada nesse sentido”.

“Há uma grande dificuldade das autarquias em passarem conhecimento para as pessoas. Isto acontece há muitos anos, por todo o país. A Câmara de Lisboa criou o Programa de Investigação e Salvaguarda do Azulejo de Lisboa (PISAL), entretanto extinto, que foi muito importante, mas não teve consequências visíveis. As pessoas não percebem o que se passa relativamente aos azulejos. Há, também, muitas pessoas a pagarem por réplicas e vai-se perdendo muitos dos azulejos originais”, observa, ainda.

 No final do século XX, o furto de azulejos intensificou-se, quando os vendedores ambulantes se aperceberam do valor comercial deste património. “Quando as pessoas perceberam o que os azulejos valiam lá fora começaram a furtar. A procura de azulejos também está a aumentar, com o turismo. Comprar azulejos é quase uma moda”, explica Leonor Sá.

Em dezembro de 2017, foi roubado um conjunto de azulejos que compunha um dos painéis azulejares da Leitaria Anunciada, um painel da autoria da companhia Cerâmica Lusitânia e datado de 1927, data da abertura da Leitaria. Na sequência deste furto, o Fórum Cidadania de Lisboa enviou um e-mail, a 4 de janeiro, ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), no qual insta a autarquia a dar “tolerância zero” ao comércio ilegal de azulejos através de uma campanha de sensibilização dirigida aos potenciais compradores.

 A Câmara de Lisboa não respondeu directamente ao Fórum Cidadania Lisboa, mas anunciou que está, neste momento, a estudar até que ponto é exequível a instalação de um sistema de videovigilância junto a alguns painéis figurativos de azulejos com valor patrimonial. Em declarações a O Corvo Paulo Ferrero, fundador do Fórum Cidadania Lisboa, diz que esta medida não chega para resolver “um problema que é muito complexo”.

 “Bastava porem um poster a dizer ‘tenha atenção quando comprar azulejos’, que já podia fazer a diferença”, sugere. “Quem tem azulejos não lhes dá a devida importância, há muita indiferença. Também há incúria por parte dos proprietários, que contratam pessoas que não sabem colocar os azulejos. Não é qualquer um que põe e tira azulejos, existe uma técnica específica para a sua recolocação. Um azulejo mal colocado parte rapidamente. Há poucos ateliês a fazerem boas réplicas”, acrescenta.

 Paulo Ferrero critica, ainda, a Polícia Judiciária por “só aparecer quando há denúncias”. “A Polícia Judiciária tem uma boa taxa de sucesso no universo em que actua – dos azulejos de fachadas –, que é um universo muito pequeno. Têm bons resultados quanto aos azulejos de palácios e monumentos, mas há mais azulejos”, alerta.

 Rita Gomes Ferrão, investigadora do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, diz que “as técnicas de restauro do azulejo exigem aprofundados conhecimentos técnicos e prática cerâmica”. “São necessários conhecimentos teóricos sobre a história do azulejo, os vários materiais e técnicas usados em cada época e região. O ideal é que tenha formação superior em conservação e restauro, no entanto, no caso da cerâmica e azulejaria, a experiência e a prática são fundamentais para o domínio das técnicas e dos materiais. Uma oficina ou restaurador com anos de prática atingirá resultados de melhor qualidade do que um recém-formado, sem prática. O ideal será conjugar as duas valências”, considera, em depoimento escrito a O Corvo.

 A investigadora explica, ainda, que a maioria dos proprietários dos imóveis em obras necessitam de aconselhamento técnico. “O que acontece muitas vezes é serem mal aconselhados ou optarem por orçamentos aparentemente vantajosos, com um resultado de péssima qualidade. Como aconteceu com os painéis exteriores do café Bola Cheia, em Lisboa”, diz, ainda.

 Rosário Veiga, investigadora no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) na área de revestimento de paredes de edifícios históricos, explica, em declarações a O Corvo, que o ideal é “intervir o menos possível” nas fachadas de azulejos e, para isso, é necessário que os mosaicos sejam bem colocados. “Um azulejo mal colocado não só dá à fachada um aspecto de remendo, como o próprio azulejo perde características próprias e valor. Estragamos o azulejo”, considera.

 “Quanto menos houver necessidade de intervir nas fachadas de azulejos melhor. Não é necessariamente mais caro pôr um restaurador especializado a fazer o trabalho de recolocação dos azulejos, porque, se puserem uma pessoa que não tenha conhecimento, acabam por perder mais tempo. O segredo é planear bem os trabalhos de restauração, de forma a diminuir os custos e valorizar o património. Uma intervenção mal feita constitui um problema muito grave para a conservação do património”, reforça.

Rosário Veiga diz, ainda, que há muitas pessoas a falar de azulejos mas percebe-se que, afinal, até não estarão dentro do assunto. “É um tema recente e, apesar da sensibilização ter aumentado, ainda é muito baixa. Há um longo trabalho por fazer ainda”, refere.

 Na Feira da Ladra, encontram-se à venda painéis de azulejos em quase todos os postos de venda. Surgem no meio de roupa e livros em segunda mão e velharias. Os preços variam entre um euro por azulejo e 15 a 20 euros por um conjunto de quatro azulejos figurativos. Há placas informativas indicando que estes datam do século XVII e XVIII. Alguns vendedores ambulantes seduzem os visitantes para a compra de azulejos pombalinos.

 “Compro a colegas e há quem me venha aqui vender. Tenho de ganhar a vida”, explica uma feirante, que não se quis identificar, quando questionada pelo O Corvo sobre a proveniência dos azulejos. “Vendemos aqui azulejos há anos e não vamos deixar de vender”, garante outro feirante.

 Paulo Ferrero diz que “toda a gente sabe que os azulejos à venda na Feira da Ladra podem ter origem ilícita”. No entanto, “é muito difícil a polícia actuar, porque não tem forma de o comprovar”. “Muita gente nem tem licença para lá estar. Tem de se combater a venda ilegal e só vai ser possível fazê-lo com a obrigatoriedade de um certificado da proveniência dos azulejos aos vendedores. Os azulejos são das poucas coisas que identificam a nossa cultura, não se podem menosprezar”, reforça.

 “A lei só protege os azulejos de fachada de projectos de reabilitação de imóveis, deixando, por isso, muitos de fora. É bom, mas não chega. É, também, necessário fazer uma inventariação das fachadas de interiores, que não estão contempladas na lei”, considera, ainda.

Francisco Queiroz partilha da mesma opinião. “Só se está a intervir numa parte, existe um grande vazio na legislação. A polícia não tem forma de confirmar a proveniência dos azulejos e continuamos num ciclo vicioso. Isto tem de ser feito ao contrário: quem vende é que tem de provar onde adquiriu os azulejos, a venda tem de ser regulada. Os azulejos só deviam ser vendidos se tivessem um certificado de proveniência. É património nosso e é altamente cobiçado”, observa o especialista.

 A coordenadora do projecto SOS-Azulejo explica que “é muito difícil comprovar que os azulejos são furtados”. “Sabemos de fonte segura que os azulejos roubados circulavam com tanta facilidade que, às vezes, já eram passados para uma quinta ou sexta pessoa, sendo muito difícil perceber a sua proveniência”, explica.

 Nas lojas de antiguidades da Rua de São Bento, todos os antiquários dizem que, hoje, são mais selectivos na compra de azulejos. “Quando as pessoas não nos inspiram confiança, não compramos. Também já vendo menos, para não ter chatices, porque os antiquários é que pagam as favas. As pessoas acham que os comerciantes compram tudo e não é bem assim”, diz Luís Lopes, 64 anos, proprietário de uma loja de antiguidades.

“A lei aprovada o ano passado acabou por ter um efeito negativo, porque, como os proprietários têm de pedir uma licença à câmara para realizarem obras, no período de tempo de espera pela licença, quem furta fica a saber que existem ali azulejos históricos e vai lá”, aponta, ainda. “E há muita procura?”, questiona O Corvo. “Já houve mais pessoas a procurar por azulejos. Vinham muitos italianos. Agora há menos”, informa.

Félix, 71 anos, antiquário na Rua de São Bento, diz que também já não tem vontade de vender azulejos. “Cada vez há mais fiscalização, não tenho interesse em vender azulejos há muito tempo. Muitos dos azulejos roubados vão para Espanha e é muito difícil de descobri-los. Continua a haver muito interesse no furto”, comenta. Manuela Fonseca, 70 anos, antiquária do outro lado da rua, é da mesma opinião. “Não sabemos de onde vêm os azulejos e não os compramos. Também já perguntaram mais por azulejos, agora praticamente não perguntam. Os portugueses nem procuram, só um estrangeiro ou outro, que é também quem vem aqui”, diz.

 Miguel Arruda, 34 anos, começou recentemente a trabalhar na loja de antiguidades do pai e diz que só compra azulejos em lojas oficiais. “As fontes têm de ser fidedignas, é essa a melhor forma de nos defendermos. Só compramos azulejos em particulares, vamos lá e vemos”, explica.

 Lisboa é a cidade com mais azulejos do mundo, uma das marcas identitárias do país, mas tal evidência não impediu que fossem desvalorizados ao longo dos anos. Estão a acontecer, todavia, transformações no que diz respeito à consciencialização da prevenção do património azulejar português.

 “Quando começámos a actuar, as pessoas nem falavam sobre azulejos e quero acreditar que falarem mais poderá ser resultado do nosso trabalho. Temos meios muito limitados e não temos orçamento, só parceiros, mas, ainda assim, acho que temos feito um grande trabalho”, afirma Leonor Sá. “As pessoas têm o hábito de só valorizar o que é raro. Só protegemos aquilo que valorizamos. Não há outro país que tenha azulejos com esta profusão. Já me disseram que há azulejos aos ‘pontapés’ e acho que a desvalorização poderá vir daí. Contudo, essa realidade tem vindo a mudar. Há mais pessoas a partilharem nas redes sociais painéis de azulejos furtados”, explica, ainda.

 No âmbito do Dia Nacional do Azulejo, instituído a 6 de Maio do ano passado, cerca de 15 mil pessoas de escolas de todo o país participaram na “Acção Escola SOS-Azulejo 2017”, proposta pela equipa do SOS-Azulejo. O objectivo destas acções, segundo a directora do Museu da Polícia Judiciária, é “incutir o gosto pelos azulejos desde cedo”. “Começamos, também, a atribuir prémios de boas práticas nesta área, em 2010, que acredito que também esteja a encorajar pessoas a adoptarem boas práticas”, indica.

 Com o aumento da exposição dos azulejos furtados em várias plataformas na internet, nomeadamente em sites criados para o efeito, Leonor Sá considera que “as pessoas também começaram a ficar com mais receio em comprar”. “A partir do momento que os painéis de azulejos furtados são expostos, já ninguém os quer vender, porque pode ficar em maus lençóis. Há aqui consequências dissuasoras. Este último furto, na Leitaria Anunciada, só foi bom nesse aspecto. Às vezes, também há a percepção de que há mais furtos, porque as pessoas confundem a visibilidade das ocorrências com as ocorrências propriamente ditas”, comenta.

 O projecto SOS Azulejo tem como parceiras várias entidades, entre as quais universidades, a Associação Nacional de Municípios Portugueses e a Direcção-Geral do Património Cultural. Para além da travagem do furto de azulejos, a equipa pretende salvaguardar o património azulejar de forma a que não deixe de ser uma marca identitária do país.

 “Gostávamos que o azulejo continuasse a ser uma característica típica de Lisboa. Os arquitectos também têm apostado em formas de reinventar o azulejo, mais modernizadas, como é o caso do revestimento do MATT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, porque percebem que é um elemento incontornável da história de Portugal”, explica Leonor Sá. Quando ao risco do azulejo deixar de ser uma peça identitária da cultura portuguesa, Leonor Sá garante que está “mais optimista” relativamente a esse risco.

Francisco Queiroz ressalva que “há apenas uma autarquia do país a trabalhar na conservação e restauro do azulejo”. “A Câmara Municipal de Ovar tem um Atelier de Conservação e Restauro do Azulejo a funcionar desde 2001 e é a única do país a fazer este trabalho. Tem uma equipa de técnicos que andam na rua e, se virem uma fachada sem um azulejo, tocam à porta da casa e reportam a situação. Reconheço que em Lisboa é mais difícil fazer este controlo, mas, uma vez que o turismo também está a crescer, acho que deveria haver um esforço no sentido de aumentar a sensibilização para a protecção deste património”, remata o especialista em azulejos.


Paulo Ferrero deixa, ainda, em aberto, a possibilidade de elaborar uma petição contra a venda ilegal de azulejos. “Estamos a pensar fazer uma petição para entregar na Assembleia da República, mas, sinceramente, não sei se mexe com as pessoas. Deveria haver mais legislação para proteger o azulejo”, conclui o fundador do movimento cívico Fórum Cidadania Lisboa.

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