Turistificação do
centro histórico de Lisboa poderá ficar “insustentável”, avisa estudo
POR SAMUEL ALEMÃO
• 22 JANEIRO, 2018 •
É um alerta,
baseado num diagnóstico das profundas alterações relacionadas com a
intensificação da actividade turística e do investimento imobiliário, vividas
sobretudo nos últimos cinco anos, no centro histórico de Lisboa. E vem
acompanhado de muitas recomendações. Apesar de todos os benefícios relacionados
com ambas as actividades, patentes na revitalização de uma área da capital há
muito padecendo de perda demográfica e de profunda degradação dos imóveis, “o
principal cenário tendencial mostra ser, no caso de uma relativa ausência de
intervenção política, um cenário consideravelmente insustentável”. Quem o diz é
o estudo encomendado, em conjunto, pelas juntas de freguesia da Misericórdia,
Santa Maria Maior e São Vicente – todas elas com executivos liderados pelo PS
-, cujas conclusões foram divulgadas na tarde deste sábado (20 de janeiro). É
preciso agir, e rapidamente, sugere o trabalho de diagnóstico, intitulado
“Novas Dinâmicas Urbanas no Centro Histórico de Lisboa”.
O estudo, elaborado por uma equipa de
especialistas ao serviço da consultora Quaternaire Portugal, e coordenada por
Artur Costa, faz um levantamento das radicais mudanças sentidas, nos últimos
anos, no coração da cidade, reconhece-lhes os inegáveis méritos regeneradores,
e até admite que as actuais dinâmicas vieram para durar. Mas lança avisos para
o perigo da sobrespecialização no turismo, cujo crescimento meteórico, apesar
de ser uma fonte de riqueza e dinamização económica do centro histórico, diz a
pesquisa, tenderá a colocar numa posição de particular fragilidade os
residentes de longa data. Associada às conhecidas alterações na legislação do
arrendamento, tal dinâmica continuará, cada vez mais, a empurrar para fora do
centro os tradicionais moradores daquelas zonas e as suas famílias, por regra
de estratos sociais desfavorecidos. E, claro, a sua substituição por classes
afluentes. Ou seja, são sintomas do que se costuma diagnosticar como
gentrificação.
Mas tal não tem
de ser uma inevitabilidade, avisam os autores do estudo, propondo uma maior
intervenção pública, em primeiro lugar, sem esquecer o papel de todos os
restantes agentes, num segundo plano. Algo descrito como “Uma Visão de
Compromisso para uma Estratégia de Sustentabilidade” e explicado desta forma:
“Será necessário, mesmo urgente, que as instituições políticas, bem como a
sociedade em geral – os cidadãos, as instituições colectivas e os agentes do
“mercado”, sejam os proprietários de imóveis ou empresas, investidores e
empreendedores de todas as dimensões – procurem pontos de maior equilíbrio nas
suas acções. Para tal, é necessário que assumam uma visão, conjuntamente
debatida e comprometida para o futuro”. O que é que isto significa, ao certo?
Os responsáveis pelo diagnóstico propõem 17 medidas, incluídas em seis “linhas
de intervenção”, norteadas pela defesa de uma maior intervenção do Estado
enquanto regulador do que vêem como uma disfuncionalidade do mercado.
O referido pacote de acções, proposto pelos
investigadores, abarca medidas tão abrangentes como as seguintes: “monitorizar
as dinâmicas urbanas” (incluída na primeira das linhas de intervenção, denominada
“Planeamento e monitorização”); “Promover a vizinhança entre residentes antigos
e novos e a cultura e valores locais junto dos visitantes” (linha de
intervenção “Promoção de uma cidade diversa e multifuncional”); “melhorar a
oferta de transporte colectivo” ou “reforçar os serviços de gestão urbana”
(linha de intervenção “Reforço e qualificação dos serviços públicos”); elaborar
operações de reabilitação urbana específicas para determinadas áreas do Centro
Histórico de Lisboa e “reforçar a protecção do arrendamento de inquilinos em
situação de fragilidade” (linha de intervenção “Revisão da política municipal
de habitação e reabilitação urbana”); a criação de um Fundo Municipal de
Reabilitação Urbana (linha de intervenção “Reforço financeiro das autoridades
locais para responder às novas exigências”) ou o conferir aos municípios a
capacidade de intervenção no registo de unidades de Alojamento Local (integrada
no capítulo dedicado à “revisão do enquadramento jurídico do alojamento
local”).
Todas estas prescrições são antecedidas por um
claro diagnóstico: as mudanças ocorridas, nos últimos anos, no centro histórico
de Lisboa têm, em grande medida, sido positivas para o seu rejuvenescimento,
mas existem elevados riscos. “As dinâmicas em curso, se não reguladas e melhor
controladas, gerarão as condições para uma futura inversão de ciclo,
entrando-se numa nova fase recessiva em termos urbanos”, alertam, receosos das
eventuais consequências negativas. Ou seja, a “perda, eventualmente
irreversível, dos elementos que (hoje e sempre) valorizam o centro histórico: a
sua identidade cultural, o seu tecido social, as suas especificidades
construtivas e o seu padrão urbano e funcional”. No fundo, alertam, são essas
as características que justificam a atractividade turística de Lisboa.
Admitindo como
“improvável” a ocorrência de uma inversão no que qualificam como “dinâmicas
disruptivas” – sobretudo através da “chegada de fluxos financeiros e residentes
estrangeiros e com maior poder de compra” e a massificação do turismo -, os
consultores responsáveis pelo estudo enumeram quatro riscos principais:
descaracterização e perda de identidade; perda de valor a ela associada;
agravamento de fenómenos de exclusão social (idosos, imigrantes, famílias de
menores recursos económicos) e espacial (alguns bairros ou sectores urbanos); e
ainda a perda de qualidade de vida dos residentes, resultante do ruído, da
insegurança dentro dos edifícios ou da degradação do espaço público, mas também
da sobrecarga dos sistemas e dos serviços e no ambiente e funcionalidade
urbanos.
Tais sintomas poderão evidenciar-se, acaso se
mantenha a actual e fulgurante trajectória, avisam os autores da investigação
patrocinada pelas juntas da Misericiórdia, de Santa Maria Maior e de São
Vicente. O que não tem de ser encarado como uma inevitabilidade, avisa-se.
“Tal, porém, não significa aceitar que sejam as ‘forças do mercado’ e as linhas
políticas anteriores a definir o futuro deste: é necessário que este cenário
possa ser reconduzido para perspectivas social e economicamente mais
sustentáveis”, avisam os autores do trabalho. Caberá agora aos decisores
políticos reflectirem sobre tais considerações.
Texto: Samuel Alemão
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