A miragem
portuguesa de Silicon Valley
Seria de toda a
conveniência que António Costa estivesse atento ao que se disse em Davos sobre
o lado mais obscuro dos prodígios tecnológicos.
VICENTE JORGE
SILVA
28 de Janeiro de
2018, 6:25
António Costa
anunciou esta semana no Fórum de Davos, onde participaram vários líderes
internacionais e cuja vedeta principal foi Donald Trump, a próxima abertura de
um centro de serviços da Google em Portugal, com a criação de mais de 500
empregos qualificados na zona de Oeiras. Entretanto, correram os primeiros
rumores, embora sem confirmação definitiva, de que a Amazon se preparava para
instalar-se no Porto. A imagem de Portugal como um país “digital friendly”,
promovida pela Web Summit, não seria por isso uma miragem e haverá mesmo quem
comece a sonhar com a hipótese de nos tornarmos a sucursal europeia de Silicon
Valley.
A crescente
atractividade turística do país, que o tornou um fenómeno mundial nos últimos
anos, seria um ambiente propício à sua transformação num pequeno paraíso das
novas tecnologias. Além disso, os bons resultados da economia e a conquista de
prestígio internacional com a nomeação de Mário Centeno para presidente do
Eurogrupo estariam a criar uma atmosfera favorável à afirmação de Portugal como
um caso verdadeiramente singular no contexto europeu.
Este é o lado
aparentemente risonho da história, em contraponto ao seu lado tristonho com o
qual nos confrontamos quase todos os dias: ainda esta semana, as imagens
deprimentes da poluição no Tejo — agora não atribuível aos espanhóis mas à
indústria portuguesa fora de controlo ecológico — remeteram-nos outra vez para
um folhetim terceiro-mundista ilustrado pela falta de prevenção, o abandono, o
desamparo, desde os fogos nas florestas e povoações do interior passando pelos
hospitais (com os casos fatais de legionella) ou as escolas (com as pragas de
ratazanas ou as coberturas inflamáveis). E, como exemplo particularmente
gritante, lembre-se o recente incêndio na sede de uma associação recreativa em
Tondela — um sinistro barracão sem as mínimas condições de segurança — onde
morreram dez pessoas, para além dos feridos graves. Quantas mais bombas-relógio
estarão disseminadas por esse país fora à espera de explodir?
Esta face
tristonha e mesmo negra que Portugal continua a oferecer-nos talvez explique,
pelo menos em parte, o deslumbramento com o admirável mundo novo tecnológico de
que ambicionaríamos ser a luminosa sede europeia. E assim voltamos a Davos,
onde António Costa anunciou, com pompa e circunstância, a instalação da Google
em Portugal. Porque foi também ali que, este ano, as chamadas GAFA (Google,
Apple, Facebook, Amazon e congéneres) estiveram sob acusação pelo reiterado
abuso do seu comportamento predador e não regulado, dos efeitos perversos das
redes sociais e dos estratagemas de evasão fiscal. Actuais e antigos dirigentes
das “Big Tech” fizeram o acto de contrição — por vezes com expressões quase
masoquistas —, admitindo até terem construído monstros que escapam ao seu
controlo, mas o problema é que, apesar dos alertas lançados, ninguém parece
saber ainda como lidar com os “danos colaterais” de uma revolução tecnológica
que mudou a face do mundo (pensava-se que para melhor, mas hoje já se receia
que possa ter sido para pior).
Mesmo que o
Ministério da Economia garanta que a instalação da Google em Portugal não
envolve contrapartidas, o pior que poderia acontecer seria rendermo-nos a esse
deslumbramento beato com o tal admirável mundo novo das GAFA. Por muito que
António Costa esteja feliz pelas oportunidades trazidas pela Google, a Amazon
ou outras multinacionais congéneres para a inovação, o progresso tecnológico e
o emprego qualificado em Portugal, seria de toda a conveniência que estivesse
atento ao que se disse em Davos sobre o lado mais obscuro dos prodígios de
Silicon Valley. E evitarmos assim os riscos de uma miragem perigosa.
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