terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Lisboa. Antes do despejo, vem o “bullying imobiliário”


Lisboa. Antes do despejo, vem o “bullying imobiliário”
As reportagens sucedem-se ilustrando uma situação que a Política Local e a CML não podem continuar a ignorar . Não é só com medidas como oferecer alternativa através do Património da Câmara e continuar a “assobiar para o lado” no que respeita o regular e disciplinar o Alojamento Local.
Amsterdão impõe novas e radicais restricões à AIRBNB, BOOKING e similares.
O periodo de ocupação máxima ao ano de 60 dias vai passar para 30 dias ao ano, a partir de 1 de Janeiro de 2019.
Com a afirmação, “Quem impõe as regras aqui somos nós, os Vereadores da Autoridade Municipal e não as Empresas” o Vereador Laurens Ivens, anunciou a medida que pretende reduzir a actividade, no periodo máximo de 30 dias ao ano, exclusivamente ao aluguer de quartos por proprietários que resídam nas habitações e contrariar os gigantescos negócios desenvolvidos por investidores que compram prédios inteiros para esse fim, ou residentes não habituais que compram propriedades que não habitam, e que colocam no Alojamento Local.


Lisboa. Antes do despejo, vem o “bullying imobiliário”
23 jan, 2018 - 08:12 • Inês Rocha

Pressão do turismo gera "praga de despejos". Quem insiste em ficar, sofre várias formas de pressão dos senhorios. Resultado: pânico, depressão e baixas médicas. A Câmara de Lisboa pede revisão da lei das rendas.

O direito à habitação não mora em Lisboa?
Carolina (nome fictício), 58 anos, vive na Mouraria desde que nasceu. Nos últimos meses, depois de o senhorio lhe dizer que tem que deixar a casa onde vive há mais de 20 anos, teve ataques de pânico, entrou em depressão, teve que pedir baixa na empresa onde trabalha.

António Melo, 71 anos, cresceu em Alfama. Em 2017, recebeu uma carta da empresa que comprou o prédio onde vive há 10 anos: o seu contrato de arrendamento não seria renovado. Tinha que sair até 31 de Maio de 2017. Ainda antes, começaram as obras profundas no prédio.

António não consegue arranjar uma alternativa compatível com a reforma que recebe. Na Câmara de Lisboa, já toda a gente o conhece. “Tenho andado nas reuniões a chateá-los”, diz à Renascença. A vereadora da Habitação, Paula Marques, garantiu-lhe que “trataria do seu assunto”. Tem esperança que uma das 100 casas que câmara vai atribuir a habitantes em situação comprovada de perda de habitação seja para si.

Carla da Cunha, 38 anos, foi despejada da casa onde vivia há cinco anos, com o marido e duas filhas, no Pátio do Carrasco, em Alfama. Diz ter sofrido “bullying imobiliário”. Em Setembro do ano passado, recebeu uma carta: o seu contrato não seria renovado. Depois disso, o senhorio passou os contratos da água e luz para o seu nome. Carla diz ter ficado à porta “feita sentinela”, para não lhe cortarem a luz.

Todos questionam a lei que permite aos senhorios despejar facilmente os inquilinos, assim que o contrato de arrendamento termine. Ainda que o inquilino pague tudo a tempo e horas.

O Novo Regime do Arrendamento Urbano, adoptado em 2012, criou o Balcão Nacional de Arrendamento, também conhecido como a “Via Verde” do despejo. A lei foi desenhada por Assunção Cristas, então ministra do Governo de Pedro Passos Coelho, mas a base das medidas foi uma exigência da troika. Objectivo: desentupir os tribunais deste tipo de processos.

Os inquilinos com quem a Renascença falou responsabilizam o rápido crescimento do turismo, a falta de regulação do mercado de arrendamento e a “lei de Assunção Cristas” pelo problema que hoje vivem, lamentando que não seja revogada pelo actual Governo. Falam num verdadeiro “bullying imobiliário”: cortes de água e luz, ameaças de visitas da polícia e obras invasivas.

No Pátio do Carrasco, em Alfama, vivem agora apenas cinco pessoas. Todas idosas
No Pátio do Carrasco, em Alfama, vivem agora apenas cinco pessoas. Todas idosas
Perante as críticas, a vereadora da Habitação da Câmara de Lisboa diz que “as medidas dos municípios não chegam. Paula Marques pede uma alteração da lei do arrendamento urbano, a possibilidade de os municípios definirem quotas em alojamento local e contratos com maior duração para que os inquilinos possam viver com mais estabilidade.

Uma "praga de despejos"

Rita Silva, porta-voz da associação Habita, que apoia famílias com problemas no acesso à habitação, diz que “não há uma noção mínima” de quantos existem, mas fala de uma “praga” de despejos em Lisboa. “Não há números totais”, afirma.

Os números conhecidos, do Banco Nacional de Arrendamento (BNA), apontam para 1.636 despejos em 2017, um número que baixou face a 2016, quando foram contabilizados 1.931 títulos de desocupação.

Mas, diz a activista, há muitos casos que não entram nestes números. “Pessoas que abandonam as casas porque os senhorios fizeram pressão e as pessoas nem conseguiram lutar, nada disso está registado no BNA. Também não há números das pessoas que têm perdido a casa para o banco.”

O número de despejos deverá ser pelo menos três vezes maior do que o indicado pelo BNA porque há cada vez mais processos a correr directamente nos tribunais, disse, em Outubro, ao “Diário de Notícias”, o presidente da Associação Nacional de Proprietários, António Frias Marques.

Rita Silva explica que as rendas actualmente protegidas, as anteriores a 1990, já são poucas. “Há cinco anos, eram apenas 200 mil contratos em todo o país. Hoje são muitos menos.”

Além das pessoas que morreram, muitas outras não estavam a par da lei e viram os contratos alterados. “Muitos senhorios chegaram ao pé delas, disseram-lhes para assinar outro contrato, prometendo não aumentar a renda. Passado pouco tempo, podem não renovar o contrato ou aumentar a renda desmesuradamente”, explica. “Isso aconteceu a muita gente”, garante.

Mesmo aquelas que estão protegidas, muitas vezes sofrem de “bullying”, denuncia. “Há pessoas idosas que, estando protegidas, às vezes ficam sozinhas num prédio”. “Ficam à mercê de cortes de água ou de luz, obras, barulho... coisas que vão tornando a vida cada vez mais difícil ali”, explica.

O T0 onde mora há 20 anos agora custa 825 euros

Carolina (nome fictício), de 58 anos, acha importante denunciar a situação que vive, mas prefere não se identificar. Tem medo de represálias do senhorio e dos vizinhos, que temem “levar por tabela” se “falar demais”.

O clima de medo instalou-se no prédio desde que o novo senhorio o adquiriu, com o objectivo de fazer negócio com o alojamento local. O andar onde Carolina mora, desde 1996, levou obras. Neste período, a inquilina teve que arranjar um sítio provisório para morar, mas nunca parou de pagar renda.

O apartamento ficou com melhor aspecto, reconhece. “Deitaram as paredes abaixo, construíram uma casa de banho" – como o prédio é antigo, os apartamentos não tinham casa de banho. Puseram um fogão novo, tiraram o que lá estava. “O meu não era tão bom, mas era o que eu podia ter.” As obras tornaram o apartamento mais cómodo, mas não foram feitas para dar conforto à inquilina que sempre lá morou.

No início de 2017, Carolina recebeu uma carta do senhorio. “Um balde de água fria”. A carta dizia que teria que abandonar o apartamento no fim do contrato de arrendamento. Sem alternativas adequadas à sua carteira, Carolina não saiu. Continuou a pagar a renda do costume todos os meses: 244 euros.

Meses mais tarde, chegou outra carta, desta vez com um aumento: se queria continuar como inquilina, Carolina tinha que passar a pagar uma renda de 825 euros, mais do triplo, por um T0 com cerca de 50 metros quadrados. “Provavelmente era o que o senhorio esperava ganhar com o alojamento local”, explica a inquilina.

Carolina continuou a receber cartas, desta vez com dívidas para pagar. Procurou ajuda, disseram-lhe que era “bullying” do senhorio, que não cumpriu prazos e viu o contrato ser renovado automaticamente. Ainda assim, diz que a pressão a deitou abaixo. “Fiquei muito assustada”, conta. “Tive que me tratar da síndrome de pânico. Ainda hoje tenho um medicamento para tomar todos os dias. É muito duro.”

A mulher de 58 anos garante que nunca teve uma dívida. “Quando recebo o ordenado, a primeira coisa que penso é que tenho que pagar a renda. Pago a renda logo depois de receber. Porque eu tenho que fazer as minhas contas.”

Quanto ao futuro, Carolina não sabe o que esperar. “Dos governantes já não espero nada”, atira. Mas não vê uma saída para o seu problema. O senhorio continua a passar lá por casa e a perguntar quando é que sai. “Não encontro mais barato que 400 euros. E não aqui. Só longe.”

Ainda assim, sair do bairro é a última das opções. “Tenho os meus pais aqui, tenho que lhes dar apoio. Foi aqui que eu cresci. Não sei o que vai ser de mim com esta transformação. Para onde vou?”

"Quem vai fazer as marchas? Os turistas?”

Carla da Cunha viveu durante cinco anos no Pátio do Carrasco, um desses recantos escondidos de Alfama, com o marido e com as duas filhas. Sabe na ponta da língua as lendas daquele lugar, que envolvem execuções e um carrasco que não o queria ser.

No pátio que partilhava com os outros moradores, as suas filhas eram as únicas crianças. Depois da escola, costumavam brincar ali, interagiam muito com os vizinhos. Hoje, só moram ali cinco pessoas. Todas idosas.

Carla diz ter sofrido de “bullying imobiliário”, depois de o seu contrato de arrendamento ter terminado e de o senhorio não o ter renovado. O novo senhorio – uma empresa que comprou o andar ao antigo proprietário – alegava querer fazer obras profundas. “Mas já sabemos no que isto vai dar: alojamento local.”

A carta que recebeu dizia que tinha que abandonar a casa até ao fim de Setembro de 2017. Mas Carla disse que só sairia dali com uma ordem de despejo judicial. A ordem veio, teve que sair. Foi para uma casa temporária da Protecção Civil, em Marvila, na zona oriental de Lisboa, que conseguiu através da câmara e que diz agradecer muito.

Os rendimentos da família não chegam para pagar uma casa em Lisboa, com os preços actuais. O marido era padeiro, mas a empresa fechou e está desempregado. Além do rendimento social de inserção, de 480 euros, Carla faz peças de artesanato que vende na Feira da Ladra. Ambos fazem uns “biscates”. Pagavam 220 euros de renda.

Carla espera conseguir uma das casas de renda acessível que a autarquia promete disponibilizar, para poder voltar a morar no centro de Lisboa. Vê a cidade a esvaziar-se. “Os próprios turistas gostam de ver gente, não gostam de ver ruas mudas”, considera. “Lisboa não era assim, Lisboa tinha alma. Antes as vizinhas gritavam ‘Olha!’, de janela para janela. Agora só se ouve ‘Hi!’”.

“Eu quero ver, se não houver aqui ninguém, como é que vão ser as marchas. É com os turistas? Na avenida, os turistas com os arcos ou as pessoas mais idosas dos bairros. Aquelas que as empresas não conseguem tirar daqui”, diz, revoltada.

"Se pagar mais de 400 euros de renda, como é o resto?”

António Melo é presença assídua nas reuniões da Assembleia Municipal de Lisboa. Todos conhecem “o seu caso”. Mas não desiste de lutar por uma resolução para o problema. Não vê alternativas.

A casa onde vive há 10 anos, no coração de Alfama, foi comprada pela Trilhos de Charme, uma empresa que se dedica ao alojamento local.

António já tem a abreviatura na ponta da língua: na zona onde mora, já conta “18 AL”. Não sabe se são todos legais. No seu prédio, está para nascer mais um. O prédio em frente será outro alojamento local.

As obras são sempre rápidas, mas também fica “tudo igual”. Já consegue identificá-los pelos vasos nas varandas: se forem de plástico, são casas para turistas. “Qualquer dia vêm cá falar uns com os outros.”

António não quer sair de Alfama, porque Alfama é a sua casa. Além de conhecer os poucos que ainda cá moram, o seu coração não o deixa afastar-se muito. Tem problemas cardíacos, há quatro anos foi operado ao coração. Todos os meses tem que fazer análises e ir a consultas. Tem médica de família aqui e vai sempre ao Hospital de Santa Marta. “Se for para fora de Lisboa, não é com facilidade que arranjo uma médica de família.”

Ganha 608 euros de reforma. Em Alfama, não arranja nada por menos de 400 euros. Quando vai ao hospital, tem que pagar as consultas. “Se eu gastar tanto na renda, como é o resto? Vou pedir aos vizinhos?”, pergunta.

Apesar de se manter na casa de onde, segundo o senhorio, devia ter saído até ao fim de Maio de 2017, diz que não é fácil viver ali. Desde 2016, ainda antes de o contrato acabar, que suporta as obras.

“Todos os dias, a partir das oito da manhã, tenho que vir para o meio da rua. Eu moro no rés-do-chão, daí para cima as paredes já foram todas destruídas. Chegaram ao ponto de me cortar a coluna da chaminé. Qualquer coisa que eu faça na cozinha, fica tudo dentro de casa”, conta.

Prossegue: “Além do barulho, abriram-me um buraco num dos quartos, para passar uma tubagem. Quando cheguei a casa, vi aquilo, meti o roupeiro em cima do buraco.”

Ainda assim, não se deixa abalar. “A minha sorte é que eu suporto bem. Conheço pessoas que estão no mesmo estado que eu e entram em transe. Mas eu não. Fico assim um bocado preocupado, mas o que é que se há-de fazer?”

Continua a pagar a renda todos os meses: 280 euros. Mas sabe que não lhe resta muito mais tempo naquela casa. “A ordem de despejo dizia que, se eu não contestasse em 15 dias, iria ser posto no meio da rua. Mas como eu contestei, através da Segurança Social, pediram um apoio judiciário. Só a partir de hoje é que começam a contar os tais cinco meses, a partir do dia em que eles nomearam o advogado”, explica.

Ainda assim, conta com a ajuda da Câmara de Lisboa. “A vereadora Paula Marques disse que ia resolver o meu caso. O meu e o de outros na mesma situação”, diz.

Câmara: "As medidas dos municípios não chegam"

A vereadora da Habitação, Paula Marques, confessa que foram os constantes alertas da população que a fizeram propor um concurso extraordinário no centro da capital, para pessoas em situação comprovada de perda de habitação, como António Melo e Carla da Cunha. A medida foi aprovada na semana passada, por unanimidade.
O concurso, classificado de “excepcional” pela autarquia, é dirigido a famílias em situação vulnerável que vivam há mais de 10 anos nas freguesias de Santa Maria Maior, Santo António, São Vicente e Misericórdia, com maior pressão da procura turística.

Em entrevista à Renascença, Paula Marques classifica a aprovação do concurso como “uma vitória”. Mas sublinha que esta intervenção imediata não exclui a necessidade de a Assembleia da República responder aos problemas da habitação.

“As medidas dos municípios não chegam”, considera. Quanto ao que devia mudar na legislação, Paula Marques identifica duas prioridades: a alteração da lei do arrendamento urbano e a possibilidade de os municípios definirem quotas em alojamento local.

“Ninguém melhor do que os municípios conhece a realidade dentro das suas cidades. O que sobra a uns pode faltar a outros”, diz a vereadora.

No que diz respeito à lei do arrendamento urbano, Paula Marques pede contratos de longa duração com arrendamento acessível.


“Esta ideia de que uma família, seja ela de que condição socioeconómica for, tem a sua vida a prazo de seis meses ou um ano é inconcebível. A estabilidade dos contratos é fundamental, sejam os novos – a partir do momento em que se altere a legislação – como aqueles que estão em vigor, que devem ser alvo de um processo de transição”, diz.

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