Lisboa. Antes do
despejo, vem o “bullying imobiliário”
23 jan, 2018 -
08:12 • Inês Rocha
Pressão do
turismo gera "praga de despejos". Quem insiste em ficar, sofre várias
formas de pressão dos senhorios. Resultado: pânico, depressão e baixas médicas.
A Câmara de Lisboa pede revisão da lei das rendas.
O direito à
habitação não mora em Lisboa?
Carolina (nome
fictício), 58 anos, vive na Mouraria desde que nasceu. Nos últimos meses,
depois de o senhorio lhe dizer que tem que deixar a casa onde vive há mais de
20 anos, teve ataques de pânico, entrou em depressão, teve que pedir baixa na
empresa onde trabalha.
António Melo, 71
anos, cresceu em Alfama. Em 2017, recebeu uma carta da empresa que comprou o
prédio onde vive há 10 anos: o seu contrato de arrendamento não seria renovado.
Tinha que sair até 31 de Maio de 2017. Ainda antes, começaram as obras
profundas no prédio.
António não
consegue arranjar uma alternativa compatível com a reforma que recebe. Na
Câmara de Lisboa, já toda a gente o conhece. “Tenho andado nas reuniões a
chateá-los”, diz à Renascença. A vereadora da Habitação, Paula Marques,
garantiu-lhe que “trataria do seu assunto”. Tem esperança que uma das 100 casas
que câmara vai atribuir a habitantes em situação comprovada de perda de
habitação seja para si.
Carla da Cunha,
38 anos, foi despejada da casa onde vivia há cinco anos, com o marido e duas
filhas, no Pátio do Carrasco, em Alfama. Diz ter sofrido “bullying
imobiliário”. Em Setembro do ano passado, recebeu uma carta: o seu contrato não
seria renovado. Depois disso, o senhorio passou os contratos da água e luz para
o seu nome. Carla diz ter ficado à porta “feita sentinela”, para não lhe
cortarem a luz.
Todos questionam
a lei que permite aos senhorios despejar facilmente os inquilinos, assim que o
contrato de arrendamento termine. Ainda que o inquilino pague tudo a tempo e
horas.
O Novo Regime do
Arrendamento Urbano, adoptado em 2012, criou o Balcão Nacional de Arrendamento,
também conhecido como a “Via Verde” do despejo. A lei foi desenhada por
Assunção Cristas, então ministra do Governo de Pedro Passos Coelho, mas a base
das medidas foi uma exigência da troika. Objectivo: desentupir os tribunais
deste tipo de processos.
Os inquilinos com
quem a Renascença falou responsabilizam o rápido crescimento do turismo, a
falta de regulação do mercado de arrendamento e a “lei de Assunção Cristas”
pelo problema que hoje vivem, lamentando que não seja revogada pelo actual
Governo. Falam num verdadeiro “bullying imobiliário”: cortes de água e luz,
ameaças de visitas da polícia e obras invasivas.
No Pátio do
Carrasco, em Alfama, vivem agora apenas cinco pessoas. Todas idosas
No Pátio do
Carrasco, em Alfama, vivem agora apenas cinco pessoas. Todas idosas
Perante as
críticas, a vereadora da Habitação da Câmara de Lisboa diz que “as medidas dos
municípios não chegam. Paula Marques pede uma alteração da lei do arrendamento
urbano, a possibilidade de os municípios definirem quotas em alojamento local e
contratos com maior duração para que os inquilinos possam viver com mais
estabilidade.
Uma "praga
de despejos"
Rita Silva,
porta-voz da associação Habita, que apoia famílias com problemas no acesso à
habitação, diz que “não há uma noção mínima” de quantos existem, mas fala de
uma “praga” de despejos em Lisboa. “Não há números totais”, afirma.
Os números
conhecidos, do Banco Nacional de Arrendamento (BNA), apontam para 1.636
despejos em 2017, um número que baixou face a 2016, quando foram contabilizados
1.931 títulos de desocupação.
Mas, diz a
activista, há muitos casos que não entram nestes números. “Pessoas que
abandonam as casas porque os senhorios fizeram pressão e as pessoas nem
conseguiram lutar, nada disso está registado no BNA. Também não há números das
pessoas que têm perdido a casa para o banco.”
O número de
despejos deverá ser pelo menos três vezes maior do que o indicado pelo BNA
porque há cada vez mais processos a correr directamente nos tribunais, disse,
em Outubro, ao “Diário de Notícias”, o presidente da Associação Nacional de
Proprietários, António Frias Marques.
Rita Silva
explica que as rendas actualmente protegidas, as anteriores a 1990, já são
poucas. “Há cinco anos, eram apenas 200 mil contratos em todo o país. Hoje são
muitos menos.”
Além das pessoas
que morreram, muitas outras não estavam a par da lei e viram os contratos
alterados. “Muitos senhorios chegaram ao pé delas, disseram-lhes para assinar
outro contrato, prometendo não aumentar a renda. Passado pouco tempo, podem não
renovar o contrato ou aumentar a renda desmesuradamente”, explica. “Isso
aconteceu a muita gente”, garante.
Mesmo aquelas que
estão protegidas, muitas vezes sofrem de “bullying”, denuncia. “Há pessoas
idosas que, estando protegidas, às vezes ficam sozinhas num prédio”. “Ficam à
mercê de cortes de água ou de luz, obras, barulho... coisas que vão tornando a
vida cada vez mais difícil ali”, explica.
O T0 onde mora há
20 anos agora custa 825 euros
Carolina (nome
fictício), de 58 anos, acha importante denunciar a situação que vive, mas
prefere não se identificar. Tem medo de represálias do senhorio e dos vizinhos,
que temem “levar por tabela” se “falar demais”.
O clima de medo
instalou-se no prédio desde que o novo senhorio o adquiriu, com o objectivo de
fazer negócio com o alojamento local. O andar onde Carolina mora, desde 1996,
levou obras. Neste período, a inquilina teve que arranjar um sítio provisório
para morar, mas nunca parou de pagar renda.
O apartamento
ficou com melhor aspecto, reconhece. “Deitaram as paredes abaixo, construíram
uma casa de banho" – como o prédio é antigo, os apartamentos não tinham
casa de banho. Puseram um fogão novo, tiraram o que lá estava. “O meu não era
tão bom, mas era o que eu podia ter.” As obras tornaram o apartamento mais
cómodo, mas não foram feitas para dar conforto à inquilina que sempre lá morou.
No início de
2017, Carolina recebeu uma carta do senhorio. “Um balde de água fria”. A carta
dizia que teria que abandonar o apartamento no fim do contrato de arrendamento.
Sem alternativas adequadas à sua carteira, Carolina não saiu. Continuou a pagar
a renda do costume todos os meses: 244 euros.
Meses mais tarde,
chegou outra carta, desta vez com um aumento: se queria continuar como
inquilina, Carolina tinha que passar a pagar uma renda de 825 euros, mais do
triplo, por um T0 com cerca de 50 metros quadrados. “Provavelmente era o que o
senhorio esperava ganhar com o alojamento local”, explica a inquilina.
Carolina
continuou a receber cartas, desta vez com dívidas para pagar. Procurou ajuda,
disseram-lhe que era “bullying” do senhorio, que não cumpriu prazos e viu o
contrato ser renovado automaticamente. Ainda assim, diz que a pressão a deitou
abaixo. “Fiquei muito assustada”, conta. “Tive que me tratar da síndrome de
pânico. Ainda hoje tenho um medicamento para tomar todos os dias. É muito
duro.”
A mulher de 58
anos garante que nunca teve uma dívida. “Quando recebo o ordenado, a primeira
coisa que penso é que tenho que pagar a renda. Pago a renda logo depois de
receber. Porque eu tenho que fazer as minhas contas.”
Quanto ao futuro,
Carolina não sabe o que esperar. “Dos governantes já não espero nada”, atira.
Mas não vê uma saída para o seu problema. O senhorio continua a passar lá por
casa e a perguntar quando é que sai. “Não encontro mais barato que 400 euros. E
não aqui. Só longe.”
Ainda assim, sair
do bairro é a última das opções. “Tenho os meus pais aqui, tenho que lhes dar
apoio. Foi aqui que eu cresci. Não sei o que vai ser de mim com esta
transformação. Para onde vou?”
"Quem vai
fazer as marchas? Os turistas?”
Carla da Cunha viveu
durante cinco anos no Pátio do Carrasco, um desses recantos escondidos de
Alfama, com o marido e com as duas filhas. Sabe na ponta da língua as lendas
daquele lugar, que envolvem execuções e um carrasco que não o queria ser.
No pátio que
partilhava com os outros moradores, as suas filhas eram as únicas crianças.
Depois da escola, costumavam brincar ali, interagiam muito com os vizinhos.
Hoje, só moram ali cinco pessoas. Todas idosas.
Carla diz ter
sofrido de “bullying imobiliário”, depois de o seu contrato de arrendamento ter
terminado e de o senhorio não o ter renovado. O novo senhorio – uma empresa que
comprou o andar ao antigo proprietário – alegava querer fazer obras profundas.
“Mas já sabemos no que isto vai dar: alojamento local.”
A carta que
recebeu dizia que tinha que abandonar a casa até ao fim de Setembro de 2017.
Mas Carla disse que só sairia dali com uma ordem de despejo judicial. A ordem
veio, teve que sair. Foi para uma casa temporária da Protecção Civil, em
Marvila, na zona oriental de Lisboa, que conseguiu através da câmara e que diz
agradecer muito.
Os rendimentos da
família não chegam para pagar uma casa em Lisboa, com os preços actuais. O
marido era padeiro, mas a empresa fechou e está desempregado. Além do
rendimento social de inserção, de 480 euros, Carla faz peças de artesanato que
vende na Feira da Ladra. Ambos fazem uns “biscates”. Pagavam 220 euros de
renda.
Carla espera
conseguir uma das casas de renda acessível que a autarquia promete
disponibilizar, para poder voltar a morar no centro de Lisboa. Vê a cidade a
esvaziar-se. “Os próprios turistas gostam de ver gente, não gostam de ver ruas
mudas”, considera. “Lisboa não era assim, Lisboa tinha alma. Antes as vizinhas
gritavam ‘Olha!’, de janela para janela. Agora só se ouve ‘Hi!’”.
“Eu quero ver, se
não houver aqui ninguém, como é que vão ser as marchas. É com os turistas? Na
avenida, os turistas com os arcos ou as pessoas mais idosas dos bairros.
Aquelas que as empresas não conseguem tirar daqui”, diz, revoltada.
"Se pagar
mais de 400 euros de renda, como é o resto?”
António Melo é
presença assídua nas reuniões da Assembleia Municipal de Lisboa. Todos conhecem
“o seu caso”. Mas não desiste de lutar por uma resolução para o problema. Não
vê alternativas.
A casa onde vive
há 10 anos, no coração de Alfama, foi comprada pela Trilhos de Charme, uma
empresa que se dedica ao alojamento local.
António já tem a
abreviatura na ponta da língua: na zona onde mora, já conta “18 AL”. Não sabe
se são todos legais. No seu prédio, está para nascer mais um. O prédio em
frente será outro alojamento local.
As obras são
sempre rápidas, mas também fica “tudo igual”. Já consegue identificá-los pelos
vasos nas varandas: se forem de plástico, são casas para turistas. “Qualquer
dia vêm cá falar uns com os outros.”
António não quer
sair de Alfama, porque Alfama é a sua casa. Além de conhecer os poucos que
ainda cá moram, o seu coração não o deixa afastar-se muito. Tem problemas
cardíacos, há quatro anos foi operado ao coração. Todos os meses tem que fazer
análises e ir a consultas. Tem médica de família aqui e vai sempre ao Hospital
de Santa Marta. “Se for para fora de Lisboa, não é com facilidade que arranjo
uma médica de família.”
Ganha 608 euros
de reforma. Em Alfama, não arranja nada por menos de 400 euros. Quando vai ao
hospital, tem que pagar as consultas. “Se eu gastar tanto na renda, como é o
resto? Vou pedir aos vizinhos?”, pergunta.
Apesar de se
manter na casa de onde, segundo o senhorio, devia ter saído até ao fim de Maio
de 2017, diz que não é fácil viver ali. Desde 2016, ainda antes de o contrato
acabar, que suporta as obras.
“Todos os dias, a
partir das oito da manhã, tenho que vir para o meio da rua. Eu moro no
rés-do-chão, daí para cima as paredes já foram todas destruídas. Chegaram ao
ponto de me cortar a coluna da chaminé. Qualquer coisa que eu faça na cozinha,
fica tudo dentro de casa”, conta.
Prossegue: “Além
do barulho, abriram-me um buraco num dos quartos, para passar uma tubagem.
Quando cheguei a casa, vi aquilo, meti o roupeiro em cima do buraco.”
Ainda assim, não
se deixa abalar. “A minha sorte é que eu suporto bem. Conheço pessoas que estão
no mesmo estado que eu e entram em transe. Mas eu não. Fico assim um bocado
preocupado, mas o que é que se há-de fazer?”
Continua a pagar
a renda todos os meses: 280 euros. Mas sabe que não lhe resta muito mais tempo
naquela casa. “A ordem de despejo dizia que, se eu não contestasse em 15 dias,
iria ser posto no meio da rua. Mas como eu contestei, através da Segurança
Social, pediram um apoio judiciário. Só a partir de hoje é que começam a contar
os tais cinco meses, a partir do dia em que eles nomearam o advogado”, explica.
Ainda assim,
conta com a ajuda da Câmara de Lisboa. “A vereadora Paula Marques disse que ia
resolver o meu caso. O meu e o de outros na mesma situação”, diz.
Câmara: "As
medidas dos municípios não chegam"
A vereadora da
Habitação, Paula Marques, confessa que foram os constantes alertas da população
que a fizeram propor um concurso extraordinário no centro da capital, para
pessoas em situação comprovada de perda de habitação, como António Melo e Carla
da Cunha. A medida foi aprovada na semana passada, por unanimidade.
O concurso,
classificado de “excepcional” pela autarquia, é dirigido a famílias em situação
vulnerável que vivam há mais de 10 anos nas freguesias de Santa Maria Maior,
Santo António, São Vicente e Misericórdia, com maior pressão da procura
turística.
Em entrevista à
Renascença, Paula Marques classifica a aprovação do concurso como “uma
vitória”. Mas sublinha que esta intervenção imediata não exclui a necessidade
de a Assembleia da República responder aos problemas da habitação.
“As medidas dos
municípios não chegam”, considera. Quanto ao que devia mudar na legislação,
Paula Marques identifica duas prioridades: a alteração da lei do arrendamento
urbano e a possibilidade de os municípios definirem quotas em alojamento local.
“Ninguém melhor
do que os municípios conhece a realidade dentro das suas cidades. O que sobra a
uns pode faltar a outros”, diz a vereadora.
No que diz
respeito à lei do arrendamento urbano, Paula Marques pede contratos de longa
duração com arrendamento acessível.
“Esta ideia de
que uma família, seja ela de que condição socioeconómica for, tem a sua vida a
prazo de seis meses ou um ano é inconcebível. A estabilidade dos contratos é
fundamental, sejam os novos – a partir do momento em que se altere a legislação
– como aqueles que estão em vigor, que devem ser alvo de um processo de
transição”, diz.
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