"O pior foi depois. Com dinheiro para um ano
rapidamente nos vimos com dinheiro para seis meses, ou não fosse o meu irmão precisar,
o amigo que precisa, o Natal que precisa, aquele fim-de-semana em Montargil, a
tua irmã grávida outra vez. E quanto ao emprego prometido nas notícias e
televisão nem vê-lo, de volta às filas intermináveis às seis da manhã no Centro
de Emprego e Segurança Social, e trabalho até há, mas para licenciados só pelo
ordenado mínimo e por fora, sem contrato, sem direitos, apenas o direito a
trabalhar de cabeça baixa e sem levantar a grimpa"
Regressámos a Portugal!
Eu também não caminho para novo e, apesar do tempo todo lá
fora, e por causa do tempo todo lá fora, não conhecemos ninguém, já não
conhecemos ninguém, não podemos pedir favores a ninguém, cunhas a ninguém e,
portanto, continuamos na mesma, tu desempregada, e eu como a lesma
Texto de João André Costa • 08/01/2018 - 12:11
Já não podíamos mais. As notícias de Portugal eram mais do
que boas, o emprego aumentara, a economia crescera e o turismo também. E depois
havia sempre a saudade, a saudade a dormir connosco, a partilhar a casa e as
vidas connosco, a saudade que não nos deixa dormir, não deixa pensar, só sentir
saudade da tua mãe, do teu pai, da minha casa, da praia, de Lisboa, da saudade,
um abraço da minha mãe tão apertado, as lágrimas quentes a cair cara abaixo.
Fiz as malas,
despedi-me e tu vieste atrás de mim. “Espero que saibas o que estás a fazer”,
disseste, e eu sabia, de dedo em riste a apontar para as notícias, a apontar
para os números, e tu atrás de mim, como sempre, o homem vai sempre à frente a
desbravar caminho, talvez por se achar importante, maior do que os homens e,
portanto, eterno, inesquecível.
Chegámos a Portugal e
foi uma festa, o sol, o calor, o jantar todos juntos entre amigos e família,
mais parecia que nos casávamos outra vez entre votos de felicidades, beijos e
abraços, sem esquecer o regresso à praia, ao mar, a Lisboa, ao Tejo, como se
tivéssemos partido há dez anos (e partimos), secos de saudade, secos de tudo,
sequiosos, a querer ver tudo no mesmo sítio com os próprios olhos outra e outra
vez, sem esquecer os cafés no café ao pé de casa e as boas-vindas dos vizinhos
e conhecidos nos sorrisos e apertos de mão.
É bom estar de volta
a casa, dizíamos e respirávamos de alívio, sãos e salvos, ainda incrédulos, mas
acordados, de um pesadelo demasiado longe, demasiado longo e sem fim à vista,
até agora. Abrimos os olhos e ainda nos custa a crer, o cheiro do sal, o dançar
das ondas nos ouvidos pela manhã ao despertar, o calor a fazer festinhas na
pele à varanda, o Bugio, uma ginjinha ao fim da tarde, a música a tocar, a vida
feita para se viver.
O pior foi depois.
Com dinheiro para um ano rapidamente nos vimos com dinheiro para seis meses, ou
não fosse o meu irmão precisar, o amigo que precisa, o Natal que precisa,
aquele fim-de-semana em Montargil, a tua irmã grávida outra vez. E quanto ao
emprego prometido nas notícias e televisão nem vê-lo, de volta às filas
intermináveis às seis da manhã no Centro de Emprego e Segurança Social, e
trabalho até há, mas para licenciados só pelo ordenado mínimo e por fora, sem
contrato, sem direitos, apenas o direito a trabalhar de cabeça baixa e sem
levantar a grimpa, que amanhã também é preciso ganhar, a distribuir panfletos,
a vender porta-a-porta, a atender telefones, a servir às mesas, 12 horas por
dia, 14 horas por dia, 16 horas por dia e ainda tenho de pagar o passe mais
duas horas na ponte para cada lado, o saco com comida que os teus pais nos
mandam ao fim-de-semana, pedir dinheiro à minha mãe e o mês nem a meio, pedir
comida à minha irmã e o mês sem chegar ao fim, pedir por favor e pedir
emprestado, e se foi para isto que voltámos para Portugal então se calhar não
vale assim tanto a pena, tu continuas à procura de trabalho mas já és velha
para trabalhar, mau grado os 40 anos, e quando o Costa dizia aos jovens para
voltar convinha ter em conta como os jovens já não são jovens, são
profissionais com vários anos de experiência, e experiência lá fora, noutras
línguas e noutros mundos, com outras aprendizagens e novos desafios, desafios
tão necessários a Portugal como a água da chuva.
Mas não, e eu também
não caminho para novo, e apesar do tempo todo lá fora, e por causa do tempo
todo lá fora, não conhecemos ninguém, já não conhecemos ninguém, não podemos
pedir favores a ninguém, cunhas a ninguém e, portanto, continuamos na mesma, tu
desempregada, e eu como a lesma.
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