segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A relação amor-ódio de Viana com o Prédio Coutinho está à beira do fim


O Prédio Coutinho constui e sempre constituiu um atentado urbanístico. Ele constitui um exemplo de uma certa concepção de "modernidade" afirmativa, arrogante e autista perante o contexto.
 Ele pertence a uma época onde os arquitectos se afirmavam pela ruptura em tabula rasa e pela total indiferença pelo contexto e pela envolvente.
A sua demoloção será um acto de pedagogia dirigido a uma classe arquitecta que se considerava uma elite avant-gardística que primava pela total indiferença pelas consequências humanas de tais experiências. As periferias de cidades Europeias como Paris, ilustram bem as consequências sociais e humanas das ideias urbanísticas do CIAM e as suas 'cidades dormitórios'.
OVOODOCORVO


 Arquitectura escolha ou fatalidade. Autor: Krier Leon / Autor secundário: António Sérgio Rosa de Carvalho
Publicação: Lisboa : Estar, 1999 Descrição: 207 p. ; 24 c


A relação amor-ódio de Viana com o Prédio Coutinho está à beira do fim

Passaram quase duas décadas desde que o Programa Polis chegou a Viana do Castelo para requalificar a cidade. No eixo dessa iniciativa está a demolição do Prédio Coutinho, um edifício de 13 andares, que o Polis considerou não se enquadrar na paisagem. Ao longo do processo de expropriações, grande parte dos 300 moradores foi saindo. Entre recursos e contra-recursos, passaram 18 anos. Agora, os últimos 14 moradores têm de abandonar o edifício até ao dia 31 de Janeiro. Mas continuam irredutíveis: prometem não sair, “nem à força”.

ANDRÉ VIEIRA (texto), PAULO PIMENTA (fotografia) e SIBILA LIND (vídeo) 28 de Janeiro de 2018, 6:36

No início da década de 70 do século passado, Agostinho Correia vivia no bairro do Jardim, em Viana do Castelo. Comerciante, estava estabelecido perto da Avenida Luís de Camões, para onde se deslocava todos os dias. A caminho passava pela Praça Frei Gonçalo Velho, onde durante anos esteve o mercado municipal, entretanto demolido. 

Estava naquela altura, entre 1973 e 1975, a ser construído no mesmo lugar um edifício de 13 andares que se destacava pela envergadura e por contrastar com o resto da paisagem urbana da zona histórica desta cidade do Alto Minho, feita de prédios baixos à base de granito. “Símbolo do progresso”, para uns; para outros, um “mamarracho”. Agostinho apoiava a primeira ideia.

Após vários meses a “namorar” o prédio, decidiu conhecê-lo por dentro. Ficou “deslumbrado” com a panorâmica que tinha do alto das varandas viradas para o rio Lima. À procura de casa nova, optou por uma das fracções daquele edifício em betão armado de “construção impecável”. Escolheu um quinto andar. E nunca mais quis sair dali. 

Aquele edifício tem o mesmo nome do bairro que habitava antes: Jardim. Mas hoje será mais fácil de identificar pela designação com que ficou conhecido para o resto do país. É o Prédio Coutinho – apelido do empresário responsável pela sua construção –, que 18 anos depois de anunciada a sua demolição, após a criação, em 2000, da sociedade VianaPolis, para promover a requalificação do centro histórico, continua de pé.

Passaram mais de 40 anos desde que o Prédio Coutinho (PC) se impôs na silhueta da cidade, mas agora parece ter definitivamente os dias contados.

Ao abrigo do Plano de Requalificação da VianaPolis, decidiu-se que do ponto de vista estético o prédio não se enquadrava na paisagem urbana. E, se tudo correr como previsto, o mercado da cidade voltará ao seu lugar original. Se o PC ocupou o lugar do mercado, que foi transferido para poucos metros de distância do original e mais tarde também demolido, entendeu-se depois que voltaria a ter de dar lugar ao mercado. A construção deste equipamento foi considerada de utilidade pública. Ou seja, inverte-se o processo. Agora, será a demolição do prédio a dar lugar ao mercado. 

Num acórdão de 13 de Dezembro de 2017, o Tribunal Constitucional (TC) indeferiu os recursos movidos pelos moradores que contestaram as expropriações levadas a cabo por esta sociedade. Meses antes do acórdão do TC já circulava a notificação de que os residentes que ainda resistem teriam de abandonar o prédio até final de Janeiro. O prazo está a terminar e 14 habitantes, quase todos reformados, que ainda lá estão não arredam pé das oito fracções ainda habitadas. Aos 85 anos, Agostinho Correia é um deles. Como todos os outros com quem falámos, diz que a sua decisão é irredutível: “Só saio daqui morto.”


Quando abriu portas no início da segunda metade dos anos 1970 viviam 300 pessoas no edifício
Um prédio robusto sem vida no interior
Durante o dia, quem passa pelo prédio não se apercebe de que a larga maioria das 105 fracções estão vazias. A maioria dos 300 moradores iniciais já saiu. Quem espreitar para o hall de uma das duas entradas, poente e nascente, não encontra nada que seja muito diferente de outro prédio qualquer. Existem decorações, vasos com plantas que não deixaram de ser regadas, chão e paredes em mármore cujo brilho indica não terem deixado de ser visitados pelos serviços de limpeza.

Por outro lado, na parede, há um quadro que tem afixado o horário da porteira com data de 1997. No hall, existe ainda uma secretária para a porteira, mas não está lá ninguém. Difícil de encontrar são moradores a entrar ou a sair.

Enquanto aguardamos, na paragem em frente ao prédio estão três mulheres que esperam pelo autocarro. Perguntamos o que acham do prédio. Uma diz que o acha bonito, outra não lhe acha “piada” e para a terceira “tanto faz”. Como acontece desde que o edifício foi construído, também neste pequeno grupo as opiniões tomam direcções opostas.

Entretanto, chega Armando Carvalho, 74 anos, residente no edifício desde Setembro de 1976. Abre-nos a porta do prédio e a de casa, no segundo andar, onde vive com a esposa de 73 anos. Faz-nos uma visita guiada pelo T3 com cerca de 180 metros quadrados, que lhe custou 1050 contos, na moeda antiga (cerca de 5 mil euros). “Era muito dinheiro naquele tempo”, recorda.

300
Número de moradores à data do anúncio da demolição, em 2000
Mostra-nos as remodelações que fez nalgumas divisões da casa. Até 1999, gastou “50 mil contos” (250 mil euros), em obras. “Está tudo a cair, não está?”, pergunta com ironia. Não está, confirmamos. A partir de 2000 não arriscou investir mais em obras de remodelação, depois de no mandato de Defensor Moura ter sido apresentado pela Câmara Municipal de Viana do Castelo (CMVC) o Programa Polis de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental, que prevê a demolição do edifício.

Armando passou a gastar dinheiro na defesa da sua permanência no prédio onde comprou casa. “Nestes 18 anos, gastei mais de 6 mil contos (30 mil euros) em advogados”, conta. Gastou-os porque não aceita sair de um prédio que foi “construído legalmente” e “aprovado pela câmara”, apenas “porque alguém acha que o prédio é feio”. “É escandaloso estar a gastar este dinheiro para defender uma propriedade que é minha”, acrescenta.

Ora destrói-se mercado, ora constrói-se mercado
Armando Carvalho não aceita esta justificação estética como válida. Muito menos a Declaração de Utilidade Pública (DUP) publicada a 16 de Agosto de 2005 em Diário da República, que dá conta do carácter de urgência da expropriação do prédio para que o mesmo seja demolido para ser construído um novo mercado. Primeiro porque Viana “já tinha um mercado novo” e depois porque desconfia de que o que lá vai ser construído se aproximará mais de “um centro comercial”.

“Então tinham ali o mercado e demoliram-no e agora dizem que precisam disto porque não há mercado? Porquê? Então as pessoas não têm direitos?”, questiona.

Durante estes anos foi esperando pelo resultado dos recursos que foram dando entrada nos tribunais para contestar as expropriações. No final do ano passado, a decisão que saiu do TC não lhe foi favorável. O seu advogado já o avisou de que o prazo para sair do edifício termina no dia 31 de Janeiro. Armando confessa que não dorme bem há 18 anos. “Não é justo que nos tratem desta forma.”

Apesar de tudo, acredita que ainda não será desta que vai sair. Deixando as crenças de parte, garante que não abandonará a casa: “Daqui não me vão tirar.”

O mesmo dizem Armando Cunha e Fernanda Rocha, casados, ambos com 75 anos. Compraram o apartamento ainda em fase de construção, viviam nessa altura em Paris, onde trabalharam mais de 40 anos para comprar o T3 com cerca de 140 metros quadrados. Em 2000, já reformados, regressaram definitivamente a Portugal. “Pensávamos numa reforma tranquila e, afinal, dizem-nos que vão demolir isto”, lamentam.

Armando Cunha ficou a saber que existiam planos para a demolição do edifício pela televisão, pouco tempo antes de voltar. Já tinha ouvido “rumores” durante as férias, mas até ao momento não passava disso. “Sempre recebi os jornais portugueses, mas a minha mulher escondia-os”, recorda. Quando soube, entrou em depressão. “Já teve duas, uma lá e outra cá”, revela Fernanda.

Armando e Fernanda
Está há 17 anos medicado. “Fiquei sem saber o que fazer.” E conta que não foi o único: “Muita gente ficou transtornada.” Durante todos estes anos esta foi uma “preocupação constante”, parte da rotina diária de Armando e Fernanda e de “todos os moradores na mesma situação”.

“Não me parece que estejam a ser justos com pessoas que deveriam estar agora a desfrutar da idade da reforma. Nem a VianaPolis está a tratar bem as pessoas. Trataram-nos sempre como cães”, considera Armando, que afirma nunca terem sido oferecidas, durante o processo de expropriação, condições que se aproximassem às que considera justas. Sublinha, contudo, que mesmo que o fizessem não encontra qualquer justificação para o desenrolar do processo de expropriações e para a decisão da demolição.

A VianaPolis terá abordado o casal para propor inicialmente uma indemnização de 128 mil euros. “Um valor ridículo”, diz-nos Armando, enquanto nos mostra a vista para o rio Lima da varanda do 2.º andar. Mais tarde, diz ter havido outra avaliação no valor de 224 mil euros. Mas o ex-emigrante continua a achar que este valor não dá “nem para as solas”.

Também lhes foi proposto mudarem-se para um dos dois prédios construídos pela VianaPolis para realojar os moradores expropriados que o aceitassem. Um dos prédios foi construído próximo do navio Gil Eanes e o outro nas traseiras do PC, onde estava o mercado que substituiu o original. Para se construir o prédio novo, demoliu-se o mercado, que passou provisoriamente para outro ponto da cidade. Armando considera não ser sequer “equiparável” a troca.

Quanto à estética do edifício e o seu enquadramento na malha urbana da cidade, não vê nenhum problema. “Para mim, é bonito.” Em Paris, onde viveu, diz ser comum existirem prédios que “fogem” à “arquitectura local” e não é por isso que são demolidos.

Um prédio de “burgueses”?
“Não é humano. Trabalhamos para economizar um pé-de-meia para viver de uma forma mais confortável. Chegaram a dizer que os moradores do prédio eram burgueses”, conta e desfaz essa ideia: “Trabalhei 41 anos na construção civil e a minha mulher nas limpezas. Trabalhámos de sol a sol para amealhar o dinheiro que temos.” De qualquer forma, acrescenta que, mesmo que fosse burguês, continuava “a não se justificar” serem “despejados” do prédio.

No dia 31 de Janeiro, o casal garante que também não sai de casa.

Para o filho de Agostinho Correia, que tem o mesmo nome e também habitou o prédio enquanto viveu na casa dos pais, a ideia de que o prédio Coutinho seria “um prédio de burgueses” foi veiculada para criar aversão por quem lá habitava. Porém, diz que, quando foi desencadeado o processo de demolição, passaram a morar lá todo o tipo de pessoas, desde “metalúrgicos que trabalhavam nos estaleiros navais, médicos, advogados, professores ou funcionários públicos”. O PC seria então “um espelho da sociedade vianense”.

Sociedade vianense que o pai diz ter ficado dividida relativamente ao prédio, mas apenas numa fase inicial. Depois, terá deixado de ser uma questão. “A maioria aceitava-o.” Apesar dessa “celeuma” inicial, diz que foi com o Programa Polis que os problemas tiveram início. Conta que quando se começa a falar de uma possível demolição do prédio enviaram uma carta à câmara para serem esclarecidos. E lembra que a autarquia respondeu dizendo tratar-se apenas de “uma mera intenção”. Mais tarde, veio a revelar-se que a demolição do prédio seria mesmo para avançar.

“A Polis apareceu para modernizar a cidade, mas está a dar cabo dela. E brinca com um prédio desta categoria”, desabafa.

A demolição deverá arrancar até ao final do primeiro trimestre de 2018
A casa de Agostinho também passou por duas avaliações. Não se recorda do valor da primeira, mas diz que na segunda, mais recentemente, avaliaram-na em 235 mil euros. Valor com o qual também não concorda.

Houve quem tivesse cedido, conta. Não censura quem o fez. “Estavam com medo de que o prédio fosse abaixo”, diz. Ir viver para os prédios construídos pela VianaPolis nunca equacionou: “Valorizaram as casas como sendo mais caras. Quem daqui saísse ainda tinha de pagar a diferença, quando estas casas valem o dobro. É um absurdo.” Quem saiu saiu em troca de “uma côdea”. “Não vou de cavalo para burro”, insiste.

Um longo processo
Os moradores queixam-se agora dos transtornos que foram surgindo no decorrer de todo este processo. “A minha mulher é doente, sofre de esquizofrenia. Desde que saiu a decisão do TC, piorou. Está fora de si. Chora e diz que não se quer ir embora. Fica desconfiada quando lhe pedem para assinar coisas. Há dias, desapareceu. Encontraram-na perto do campo da Senhora da Agonia. Talvez fosse para Afife, que é a terra de onde é natural. Psicologicamente, é o refúgio dela. Tive de ir polícia à procurá-la”, conta Agostinho Correia.

Por seu lado, o filho recorda as noites em que “às tantas da madrugada” os vizinhos batiam à porta uns dos outros à procura de respostas e preocupados com o rumo que o processo de demolição pudesse tomar.

Agostinho insiste que só sai de casa “à força”. “A casa é o nosso conforto. Vivi aqui metade da minha vida. Não há palavras para explicar, esta é a minha casa, não há dinheiro nenhum que a pague.” Não esconde a emoção. Para o filho, a utilidade pública da demolição não faz sentido: “Não há utilidade pública nenhuma. Se fosse para construir uma estrada, uma escola ou um hospital, faria sentido. Mas não é o caso.”

“Necessidade de um mercado é um embuste”
Ronald Silley, 75 anos, filho de pai inglês e mãe portuguesa, residente no Canadá, mas proprietário de uma das fracções do PC há 40 anos, subscreve a ideia de não existir utilidade pública na construção do mercado.

De férias em Portugal, o P2 falou com ele e com a esposa, Holly Kemp, na casa que há largos anos é alojamento de descanso para o casal e para os três filhos, que também vivem fora do país. Ronald reitera os argumentos que já defendeu num artigo de opinião no PÚBLICO. “A Declaração de Utilidade Pública fala da necessidade de se construir um mercado, mas o mercado foi abaixo para se criar essa necessidade”, afirma, acrescentando que esta tese é um “embuste”. E alerta ainda que, a acontecer, este seria “o primeiro caso de demolição a ocorrer por razões estéticas”. Para corroborar esta situação, cita o livro Rethinking European Spatial Policy as a Hologram (Ashgate Publishing, 2006), que refere o carácter inédito desta demolição, que acontecerá porque “o prédio é alto demais e grande demais”.

“Acho triste que se deite abaixo património que devia ser preservado. É o testemunho de uma época. Damos uma volta por Viana e o prédio não incomoda quem visita o centro histórico”, defende.

Ronald Silley e Holly Kemp
Ronald considera a demolição do edifício como uma demonstração de “novo-riquismo”. Ainda que, hoje, exista quem ache o edifício muito alto, na altura em que foi construído seria “um sinal de progresso e de que a cidade estava a crescer”. Por outro lado, não lhe parece justo “despojar as pessoas das suas casas por razões estéticas”. Afirma ainda que se criou uma necessidade, a construção de um mercado, para que se conseguisse levar o plano avante. “E despeja-se 300 pessoas por estas razões?”, questiona, classificando todo o processo de “crime económico, cultural e social”.

“Há pessoas no prédio com mais de 80 anos e com problemas de saúde. Vão pô-las na rua? Não há necessidade de se construir um mercado. A razão para a expropriação do PC é a sua própria obliteração”, insiste.

Holly Kemp diz não conseguir conceber que se gaste tanto dinheiro para demolir um edifício “só porque o consideram feio”, sobretudo num país onde existem tantas outras necessidades por suprir.

O marido recorda um exemplo que conhece em Vancôver, onde vive há mais de 40 anos. “Na rua comercial mais cara, Robson Street, existe um prédio que está desalinhado e entra cerca de 3 metros pelo passeio adentro. O prédio tem dois pisos, comércio no rés-do-chão e dois habitacionais. É uma construção medíocre, portanto, em termos financeiros a expropriação não teria grande impacto, mas porque existem duas habitações, por respeito às pessoas que lá vivem, o prédio não é demolido.” Explica que, no Canadá, nestes casos, é passada uma licença de utilização para a vida física do edifício e que enquanto viverem lá pessoas não é demolido. “Só o fariam se fosse necessário construir uma estrada, agora por razões estéticas não”, acrescenta.

Ronald conta que também recebeu uma carta com uma proposta de indemnização, mas que, para si, não correspondia ao valor do apartamento. “Em qualquer país civilizado, esta é uma atitude que denota má-fé. Primeiro, propuseram cerca de 127 mil euros. Na nova avaliação, o tribunal estabeleceu o valor nos 204 mil.”

Lutar contra moinhos
Mas, para Ronald, esta não é uma questão de dinheiro. Viana é o ponto de ligação que os três filhos têm com Portugal, a cidade onde passaram as férias e onde têm amigos de infância, que ainda encontram quando visitam o país. Sem o prédio, esta ligação seria cortada. “É uma questão afectiva.” E uma questão de “justiça”. “Pode dizer-se que sou um bocado D. Quixote. Sei que estou a lutar contra moinhos, mas sentir-me-ia mal se não o fizesse.”

Os primeiros moradores começaram a habitar o prédio em 1975
A solução que propõe é a reversão do processo. Entende que a VianaPolis devia desistir da expropriação do PC, vender as fracções que detém e aplicar esse dinheiro onde ele é “verdadeiramente necessário”. O novo mercado, diz, podia ser construído à beira do rio, junto da marina. Não ficaria distante.

Os moradores que ainda resistem, apesar da recente decisão do TC, ainda acreditam que há esperança e que não será desta que o processo terminará. Esperança antiga é a de que a nidificação de falcões no prédio ajude a atrasar o processo, por questões ambientais. O “bom senso” e o “respeito” pelas pessoas que ainda lá vivem é outro desejo.

O advogado dos moradores desde o início do processo, Francisco Vellozo Ferreira, não quer adiantar pormenores relativamente à estratégia que está agora a ser preparada. Apesar de o processo poder ainda seguir para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, adianta apenas que ainda existem alguns processos pendentes e afirma que enquanto lá estiverem pessoas a morar não se pode demolir o prédio. “Vão fazê-lo com as pessoas lá dentro?”, questiona.

Lamenta os “milhões” do erário público que já se gastaram com o processo das expropriações e sublinha o carácter único de todo “este trajecto”, em que o cumprimento pelo respeito da propriedade privada não está a ter efeito com base em questões estéticas de um edifício que, na sua opinião, “está perfeitamente funcional”.

O processo de demolição do prédio arrasta-se há 18 anos
De “símbolo do progresso” a alvo a abater
No trabalho que apresentou como tese de mestrado em 2007, “Prédio Coutinho Património Cultural”, o jornalista Óscar Mascarenhas traça a cronologia de todo o processo, começando na venda do terreno onde o prédio foi construído.

Segundo Mascarenhas, o terreno camarário onde funcionava o antigo Mercado Municipal, já obsoleto, destinado à construção de um prédio de seis andares, foi vendido em hasta pública por 7500 contos a 22 de Julho de 1972. Comprou-o Fernando Coutinho, um empresário de sucesso de regresso à sua terra natal, após ter estado emigrado no então Zaire (actual República Democrática do Congo).

Em Janeiro de 1973, o novo proprietário do terreno apresentou à Câmara Municipal de Viana do Castelo (CMVC) um projecto para a construção de um prédio de 13 andares. No mês seguinte, apesar da contestação por parte do director de obras da CMVC que se opunha à volumetria do edifício, tem o parecer favorável por parte da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia, que considerou não existir nenhum inconveniente. Em Março, o projecto é aprovado pela autarquia e pelo Conselho Municipal por unanimidade. Entre os vianenses, numa fase inicial, terá havido alguma contestação. Entre os apoiantes, havia quem o considerasse um “símbolo do progresso”.

Em Junho do mesmo ano, através de uma portaria governamental, nasce a Zona Arqueológica de Viana do Castelo. O terreno do antigo mercado municipal faz parte dessa área. Diz o diploma que todos os projectos para aquela zona necessitam de aprovação da Direcção-Geral dos Assuntos Culturais. Com base nesse documento, a 14 de Março de 1974, a mesma direcção-geral questiona a autarquia sobre o licenciamento da construção do edifício de 13 andares, que afirma ter sido licenciado sem “autorização superior”. Na sequência desse aviso, intima a suspensão das obras. Desconhece-se se a CMVC respondeu a estes ofícios. Mas é certo que o edifício foi sendo erguido.

Já depois da Revolução, a 9 de Janeiro de 1975, já com o prédio terminado, a comissão administrativa que liderou a autarquia após o 25 de Abril afirmou ter sido cometido “o maior atentado à harmonia” da cidade. Em reunião com o ministro da Administração Interna, essa comissão pede “70 mil contos” (350 mil euros) para a demolição do edifício. O pedido não foi concedido.


Número de andares
Mas, 15 anos depois, a questão da volumetria do PC volta a ser discutida. A 23 de Março de 1990, o presidente da CMVC da altura, Carlos Branco de Morais, tenta financiamento comunitário para a demolição dos pisos superiores até ao sexto andar. O dinheiro não veio e o assunto voltou a ser enterrado.

Uma década mais tarde, a 5 de Junho de 2000, com Defensor Moura, eleito pelo PS, como presidente da autarquia, é apresentado o Programa Polis de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental de Viana do Castelo, sob alçada do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território, então liderado por José Sócrates. O Plano Estratégico deste programa previa a demolição do edifício, que seria paga com recurso a fundos comunitários.

A 30 de Janeiro de 2001, foi aprovado pela câmara o Plano de Pormenor do Centro Histórico (PPCHVC) que confirma a demolição do edifício. Diz o mesmo plano que Viana do Castelo tem condições para fazer parte da lista das cidades Património Mundial da UNESCO, sendo o Prédio Coutinho então considerado “um entrave” para que seja atingido esse estatuto. A proposta foi aprovada com 63% dos votos da Assembleia Municipal.

Em 2003, no âmbito do PPCHVC, a VianaPolis, entidade detida pelo Estado (60%) e pela CMVC (40%), criada para conduzir o programa, fechou o mercado municipal que substituiu o original, que funcionava próximo do local onde estava o antigo, demolido para construir o PC. No mesmo local foi construído um dos dois prédios para realojar os moradores que sairiam do PC após as expropriações.

Dois anos mais tarde, a 16 de Agosto de 2005, é publicado em Diário da República a Declaração de Utilidade Pública (DUP) com carácter de urgência para se proceder à expropriação do prédio, que seria demolido para voltar a ser substituído pelo mercado municipal. No mesmo ano, os primeiros moradores começaram a sair.

Em Outubro de 2006, a VianaPolis tomou posse de parte das fracções do prédio. Decisão que foi anulada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

Entre 2005 e 2009, ano em que Defensor Moura terminou o mandato na CMVC, saiu grande parte dos moradores. Dos cerca de 300 iniciais permaneceram, nessa altura, 30 moradores.

Oito anos mais tarde, a 13 de Dezembro do ano passado, o Tribunal Constitucional negou provimento ao recurso da comissão de moradores, anunciado em Fevereiro de 2014, na sequência da decisão do Supremo Tribunal Administrativo, que legitimava as expropriações realizadas pela VianaPolis com o objectivo de demolir o prédio. Até ao final do mês de Janeiro, os 14 moradores que ainda vivem lá vivem terão de abandonar o edifício para que, durante o primeiro trimestre deste ano, o Prédio Coutinho seja demolido, ao fim de 18 anos de processo.

Dados contraditórios
Há moradores que, apesar de não terem vendido a sua fracção, dizem ter a casa que habitam em nome da VianaPolis, ainda que continuem a pagar o condomínio e impostos, como o IMI. E há dados sobre o número de fracções detidas pela VianaPolis que não batem certo. De acordo com a entidade, 100 das 105 fracções já estão na sua posse. Porém, apesar de apenas oito fracções estarem permanentemente ocupadas, os moradores garantem que há ainda 35 fracções com proprietários particulares, apesar de não residirem no prédio. Só os herdeiros de Fernando Coutinho, falecido em 2010, terão 22.

Agostinho Correia é um dos moradores resistentes: "Só saio daqui morto"
Alcino Lemos, antigo porta-voz da Comissão do Moradores, explica que a VianaPolis terá passado para a sua posse as fracções que foi expropriando, tonando-as em activos da entidade. Activos que após o prédio ser demolido “serão apenas pó”. Mas garante que não serão as 100 que diz ter.

Lemos, agora com 78 anos, já não vive no prédio. Saiu com uma indemnização de cerca de 190 mil euros, não porque desistiu de lutar, mas porque foi obrigado a fazê-lo por motivos de saúde. Um dia, após um directo para uma estação de televisão da Galiza, teve um enfarte. “O médico disse-me que se quisesse viver mais uns anos teria de sair do prédio e afastar-me do processo”, recorda.

Afastou-se, mas não completamente. Continua a pensar no PC como sendo a sua casa. Casa que abandonou por força de um processo que diz ter sido desencadeado no mandato de Defensor Moura, autarca eleito pelo PS entre 1994 e 2009, e que residiu no prédio durante um ano e meio, em casa arrendada. Afirma que o ex-autarca tentou comprar lá casa, mas não conseguiu por não existirem apartamentos disponíveis. Há outros moradores que afirmam o mesmo.

Alcino Lemos, vice-presidente da Câmara de Viana do Castelo entre 1980 e 1982, eleito pela AD, e deputado da Assembleia Municipal pelo PSD no final dos anos 1990, época em que começou a ouvir rumores de que o prédio ia ser demolido. Nesta altura, a Quarternaire Portugal, uma consultora voltada para o desenvolvimento, sondava as autarquias que queriam candidatar-se ao “projecto que veio de Bruxelas” para a requalificação das cidades. O que significa que, ainda antes de ser criado o programa Polis, já Viana tinha um plano de requalificação para a cidade.

A autarquia concorreu e, de acordo com Alcino Lemos, Viana foi a cidade com maior índice de aceitação, por força do plano de requalificação em curso, tendo sido contemplada com fundos comunitários no valor de 189,5 milhões de euros.

“Nessa altura, disseram-me para me preparar porque o PC ia ser demolido”, conta. Foi então que iniciou, com outros moradores, a comissão da qual foi porta-voz e com a qual levou a cabo vários protestos públicos.

Fundos europeus não pagam demolição
Defensor Moura disse no início do processo que a demolição do prédio, prevista no PPCHVC, iria ser financiada por fundos europeus. Em 2003, a Comissão de Moradores envia carta ao comissário europeu com o pelouro da Política Regional da altura, Michel Barnier, para esclarecer a questão. Na resposta, este informa os moradores de que tal demolição, a realizar-se, não seria financiada pelos fundos europeus.

Não tivemos acesso a este documento citado por Lemos, mas sim a outro, assinado por Lluis Riera, funcionário dos serviços do Programa Operacional Ambiente, da Comissão Europeia (CE), que nega qualquer financiamento para demolições ou custos de expropriação. O mesmo documento afirma que o que está em causa é “um edifício em bom estado de funcionalidade e construído de acordo com os preceitos legais então vigentes”. E adianta que “critérios estéticos não podem no caso justificar o financiamento prioritário da sua demolição ou expropriação”.

Defensor Moura confessa ao P2 que “a montagem do financiamento do Polis era complexo”. O ex-autarca afirma que, inicialmente, estava previsto que a demolição fosse realizada com fundos comunitários. Porém, “no mandato de Durão Barroso” como primeiro-ministro, o Governo fez uma “queixa” à União Europeia, perguntando se poderia ser financiada por essa via. Defensor Moura confirma que a resposta foi negativa, “não podia”. Já com José Sócrates a liderar o Governo e com Nunes Correia como ministro do Ambiente, houve outra tentativa de financiar a demolição com outro fundo comunitário.

Defensor Moura confirma que morou no prédio durante cerca de um ano e meio, enquanto estava a construir a casa onde habita actualmente, mas garante nunca ter tentado comprar lá um apartamento.

Questionado sobre o paradoxo entre o facto de ter sido arrendatário num prédio que considerou um problema em termos de paisagem urbana, o antigo edil afirma não existir “qualquer incompatibilidade”, afirmando que sempre achou o prédio uma “monstruosidade”. Moura, candidato à presidência da República em 2011, garante que, durante os seus mandatos, em inquérito “cego”, muitos vianenses consideraram o PC como “o que menos gostavam em Viana”.

Recorda Defensor Moura: “Quando fomos apresentar candidatura do programa Polis [em 2000], levava a fotografia do prédio na pasta. Na altura era o professor Nunes Correia (mais tarde ministro do Ambiente) o director do programa. Fizemos a apresentação com o arquitecto Fernando Távora, que era o coordenador da equipa e com o actual ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, que também fazia parte da equipa da Quarternaire (foi administrador da empresa entre 1999 e 2005), e fez parte da equipa que elaborou o Plano Estratégico para o Polis de Viana que propôs a demolição. O júri foi unânime. Disseram todos que o prédio tinha de ir abaixo”.

A factura da demolição
Defensor Moura não se recorda qual o valor total gasto durante todo este processo. “Saí em 2009 da câmara, já não tenho presente os valores”, afirma.

Alcino Lemos, antigo porta-voz da comissão de moradores, foi obrigado a sair do prédio por razões de saúde
O P2 contactou a CMVC e a VianaPolis para, entre outras questões, tentar apurar os valores já gastos e os que ainda vão ser despendidos com o processo em torno da demolição do PC. Durante a última semana falámos com o gabinete de comunicação da autarquia, que nos informou que por força da deslocação do presidente da câmara José Maria Costa a Bruxelas só estaria disponível para falar esta quinta-feira. No entanto, nesse dia, o autarca decidiu não prestar declarações ao P2. Apesar de nos ter sido comunicado que o administrador da VianaPolis Tiago Delgado estaria disponível para falar também nesta quinta-feira, ninguém no escritório da empresa atendeu o telefone ao longo do dia.

O advogado dos moradores, Francisco Vellozo Ferreira, garante que, em média, terão sido gastos 200 mil euros por fracção entre indemnizações em dinheiro ou em permutas, no caso de quem optou por alojamento nos prédios construídos para o efeito.


Partindo deste valor, calcula-se que só em expropriações, tendo em conta as 105 fracções do prédio, serão gastos cerca de 20 milhões de euros. A este valor deverá ser somado o custo da obra de demolição, entretanto adjudicada à empresa DST, de Braga, que ronda os 1,2 milhões, e ainda os 3 milhões de euros anunciados pela autarquia para a construção do novo mercado. Ainda por apurar está o custo da construção dos dois prédios que serviram para alojar os moradores do PC e ainda o custo da VianaPolis, criada para funcionar durante cerca de três anos, mas que só cessará actividade quando terminar o processo demolição do Prédio Coutinho.

Sem comentários: