Rui Rio a preto
e branco
Num ponto, todos
estarão de acordo: Rio, se conservar a prática e o estilo que revelou na Câmara
do Porto, será um político diferente. Não pelo programa, mas pela maneira de
ser.
Manuel Carvalho
17 de Janeiro de
2018, 6:24
O principal erro
que se pode cometer quando se antecipa o mandato de Rui Rio no PSD é encará-lo
como um político convencional. Rui Rio não é um político convencional, ou, pelo
menos, obedece a convenções políticas muito diferentes da maioria dos seus pares.
Essa é a sua força. E também pode ser a sua fraqueza. Não lhe faltam as doses
mínimas de calculismo, a vocação para urdir redes de influência partidária ou
uma conveniente suspensão dos banhos de ética que prometia dar ao partido em
nome da protecção de um cacique de Ovar que lhe arregimentou 17 votos em casas
onde só vivem oito pessoas – e não eram do PSD. Mas, descontando o cheiro
putrefacto que exala após todas as eleições partidárias, Rui Rio não deve ser
visto nem reflectido como mais um líder do PSD no seio de uma longa
continuidade democrática.
Quem seguiu de perto o seu percurso de 12 anos
na Câmara do Porto sabe que se há algo que o motiva é a ideia de que é
diferente e a teimosia em cumprir a ideia de que é diferente. Há nele uma
mistura de convicção genuína na bondade das suas certezas e a crença numa
predestinação para grandes feitos. No homem comum que diz gostar de ser
coexiste uma ambição que, em conjunto, o tornam ao mesmo tempo temível e
frágil, inspirador e banal, visionário e provinciano, solidário e autocrata,
austero e demagogo, afável e feroz. E se Rio pode ser uma coisa e o seu
contrário, o yin e o yang de si próprio, é porque tem a seu favor uma imagem de
honestidade à prova de quaisquer contradições. Por estes dias em que os políticos
enterram a sua presunção de inocência em discussões ridículas sobre prendas de
150 euros, este não é um trunfo de somenos. Rio é dos poucos líderes políticos
que passam com facilidade no teste de credibilidade da revista britânica The
Economist: a maioria comprava-lhe um carro em segunda mão.
Anda meio mundo a
tentar adivinhar quem fará parte das suas equipas, como lidará com o grupo
parlamentar, como unirá ou separará as águas no partido, se será mais passista
ou menos passista, mas, mais do que escolhas políticas, o factor crítico para o
desempenho de Rui Rio é a sua personalidade. O Rui Rio de 2000 nada tem a ver
com o Rui Rio da actualidade. Hoje, o líder do PSD é uma pessoa muito mais
polida pela experiência e muito mais segura de si por força dos seus sucessos.
Já não lhe passaria de certeza pela cabeça “erradicar os arrumadores” do Porto.
Talvez não lhe ocorra exigir pedidos de desculpas a jornalistas por terem
expressado opiniões que lhe desagradaram. Dificilmente criaria um programa de
hostilidade tão declarada aos agentes da cultura como o que desenvolveu no
Porto. Muito provavelmente geriria de forma mais diplomática conflitos como o
que com zelo e prazer manteve com o FC Porto. E provavelmente adoptaria uma
posição negocial mais aberta em contratempos judiciais como os que alimentou
nos terrenos do Parque da Cidade, que custaram dezenas de milhões de euros à
Câmara.
Miguel Veiga era
um personagem renascentista, literário, e por isso oposto à ideia que Rui Rio
projecta de si. Mas esteve sempre ao seu lado. Miguel Veiga dizia que Rui Rio
era melhor quando colocado sob pressão. Nesses momentos, é obstinado até à
irracionalidade. Para muitos, essa atitude era sinal de uma confrangedora
fraqueza e de uma óbvia incapacidade de gerir tensões e conflitos. Para outros,
pelo menos para a maioria dos eleitores do Porto que lhe deram três vitórias
consecutivas, essa intransigência era sintoma de clareza de ideias, de
determinação de carácter e de firmeza de princípios. Não há meios-termos. Rio
tem essa suprema vantagem de separar as águas, de evitar o cinzento, de fugir
ao politicamente correcto. É nesta definição que se alicerça a sua imagem de
político impoluto e insensível aos interesses. Num país descrente dos
políticos, esse activo de Rui Rio pode fazer toda a diferença.
Rio conserva essa
aura de homem impoluto, mas já não veste em permanência essa imagem tipicamente
tripeira do rufião que adora dar o peito às balas. A sua moção de candidatura é
sintoma de uma evolução no sentido da normalidade da política, onde a táctica
não dispensa a manha e a ronha, o pensamento é condicionado pelo calculismo e a
liberdade fica refém do medo de errar. A cada passo, porém, o pé fugia-lhe da
chinela e Rui Rio não conseguia ser outrem que não ele próprio - quando falou
do futuro da segurança social condicionada pelo quadro macroeconómico ou da
estratégia para o dia a seguir às legislativas caso o PSD venha a ser
derrotado. Para a direita ultraliberal, esse deslize é revelador de um líder
mesquinho, preocupado em encontrar uma âncora que o salve de um mais que
provável naufrágio nas próximas eleições; para a esquerda, é sinal de
responsabilidade porque mostra um líder supostamente conformado com a derrota
iminente e rendido à hegemonia do PS. Mais do que um programa, essas
declarações são o manifesto de um homem desconfortável com o calculismo a que
se votou.
Rui Rio
dificilmente cortará programas sociais. Não é crível que esteja disposto a
abdicar de funções públicas em áreas críticas como a Saúde ou a segurança social.
Os grandes detentores do “capital social” que circula no que descreve como “a
corte” terão dificuldades em manter a sua influência. São estas as costelas que
reivindica da esquerda. Mas estará pouco disponível para manter a deificação
que este Governo concede ao Estado ou à Função Pública – se fizer como no Porto
imporá uma drástica reorganização dos serviços e auditorias dolorosas a tudo o
que implique custos. Olhará sempre com desdém para a Cultura, para o
cosmopolitismo ou para as exigências sociais em torno de matérias como a
igualdade de género (embora seja liberal em questões como o aborto). E será tão
ou mais ortodoxo do que Passos Coelho na gestão das finanças públicas. Questões
que, afinal, o aproximam do conservadorismo e dos valores da Direita.
O PSD que ele
define, um partido que vai do centro-direita ao centro-esquerda, pode ser um
saco de gatos onde cabe tudo. Uma amálgama onde a personalidade de Rui Rio vai
emergir. Os eleitores esperançosos numa mão forte para pôr o país na “ordem”
terão no seu estilo uma inspiração. Os que preferem uma democracia mais
consensualizada, onde o diálogo e a discussão livre e aberta fazem parte do
jogo, hão-de olhá-lo como um resquício de um passado iliberal. Num ponto, todos
estarão de acordo: Rio, se conservar a prática e o estilo que revelou na Câmara
do Porto, será um político diferente. Não pelo programa, mas pela maneira de
ser. Com ele, só há preto e branco. Nos dias que correm, não é coisa pouca. Ou
talvez não.
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