Com as vendas em
queda, quiosques de jornais de Lisboa lutam pela sobrevivência
POR SAMUEL ALEMÃO
• 14 NOVEMBRO, 2017
Isabel Alves
chega à banca, situada na zona da Baixa, deixa os olhos vogarem pelo mar de
capas de revista, hesita, folheia uma de forma quase imperceptível e decide
levá-la, após ser interpelada pelo dono do quiosque. “Posso ajudar?”. A
relutante cliente acaba por pedir uma revista de moda. Linguista e estudante de
canto, com 24 anos, admite a O Corvo ser uma consumidora parcimoniosa de
imprensa. “Costumo comprar revistas de lifestyle, moda, a Time Out ou a revista
Ler. Todos os meses, compro uma e, como tenho vários interesses, opto sempre
por alguma. As notícias vejo na net. Além disso, uma revista até pode durar
mais tempo”, diz, ao recolher o troco. Nunca teve o hábito de comprar jornais,
admite. Afinal, está tudo online. Justificação dada por muita gente. Tal não
impede, porém, a Câmara de Lisboa de se preparar para atribuir mais 17 destes
equipamentos.
O dono do tal quiosque da Baixa, repleto de
jornais e revista, nacionais e estrangeiros, mas também de tabaco, pastilhas
elásticas e postais turísticos, acena com a cabeça ao ouvir Isabel Alves. “É a
evolução do mundo, não há nada a fazer. Antigamente, tínhamos clientes certos,
para aí uns cinquenta. Agora, talvez tenhamos cinco. Entre eles, havia diversas
empresas, agora nenhuma”, conta o comerciante, que prefere manter o anonimato.
A atender clientela naquele ponto central da cidade desde 1997, acompanhou o
declínio da imprensa, intensificado desde o início desta década, com o
crescimento quase irrestrito da informação disponibilizada online – sem que as
empresas de media tenham, porém, encontrado forma de se viabilizarem. “Este
negócio só faz sentido se se vender muito. Só para lhe dar um exemplo, antes
recebia 80 exemplares de A Bola e hoje são quatro ou cinco e o Público eram 90
e agora são oito ou nove. Tenho muito revista aqui exposta, mas tal como vem
também vai”, relata. Um relato ouvido um pouco por todo o lado.
A conhecida crise
da imprensa tem-se intensificado, e dela se fala a cada revelação dos últimos
números das vendas de jornais – de acordo com os dados publicados, a 30 de
outubro, pela Associação Portuguesa para o Controlo da Tiragem, os cinco
principais títulos generalistas registaram, nos primeiros oito meses do ano,
uma quebra de 9,4% em relação ao período homólogo de 2016. “A era do digital
acaba por dar uma quebra grande no papel. Segundo me dizem os que estão há
algum tempo, isto há seis ou sete anos vendia três vezes mais”, diz Fábio
Andrade, 24 anos, atrás do balcão do quiosque situado no Largo do Chiado, mesmo
de frente para a saída do metropolitano, uma das zonas mais movimentadas da
capital. “Estamos numa zona onde há pessoas de classes elevadas e, portanto,
ainda se vendem alguns jornais como o Público ou o Diário de Notícia. Mas a
maior parte das pessoas que aqui vem compra revistas de fofoquices e
cor-de-rosa. Depois, talvez a Visão ou a Sábado”, diz. O tabaco e as pastilhas
elásticas são valores seguros.
E isso é fácil de constatar, ficando um pouco
junto das principais bancas do centro da capital, como aconteceu com O Corvo. A
maior parte das pessoas ou procuram esses dois bens – “Tem daquelas de
morango?” ou “Tem filtros?” são perguntas recorrentes – ou, no caso dos
turistas, garrafas de água, postais, mapas ou qualquer outro item de
merchandising alusivo a Lisboa. Algo que nem deveria acontecer, já que o
regulamento redigido pela Câmara Municipal de Lisboa para os quiosques deste
género – nascido de um protocolo assinado no início dos anos 80 pela autarquia
e a Associação de Ardinas de Lisboa – apenas permite a “venda de jornais,
revistas e lotaria”. “A única maneira de insto continuar é a Câmara de Lisboa
deixar vender outras coisas, se não dá. Vários quiosques da Baixa fecharam
porque, como isto está, não conseguiam sustentar a família”, diz um vendedor
daquela zona, acrescentando que “70% da clientela é estrangeira e eles também
não vêm comprar jornais, mas sim outras coisas”.
Mas nem os que
vêm de fora são uma fonte certa de rendimento. “Os estrangeiros também não têm
dinheiro. Vêm comprar o mais barato e perguntar-nos onde fica o supermercado
mais próximo”. Quem o diz é o casal Rosa Bonifácio, 57 anos, e Vítor Bonifácio,
74, que para si reclamam o título do “primeiro quiosque de jornais da Baixa”,
situado no enfiamento da Rua da Assunção com a Rua Augusta. Estão ali desde
1987 e também assinalam como as coisa mudaram, entretanto. “Não há mercado,
porque isto também está muito diferente, já não há moradores. Esta zona da
cidade está cada vez mais vocacionada para o turismo”, diz Vítor, antigo
professor de educação física, que se juntou à mulher desde que se reformou.
Mesmo os principais títulos da imprensa internacional expostos já conheceram
melhores dias, nota.
Como se explica
tal coisa? A internet terá, com certeza, uma grande dose de responsabilidade,
sugere-lhe O Corvo. Alguma, mas não tanto quanto se pensa, sugere Vítor. “Acho
que essa queda na imprensa ainda não se pode atribuir como algo que sucede em
detrimento da net”, afirma, notando que ele mesmo, todas as manhãs, quando
acorda, por volta da seis horas, vê os títulos do Público online e depois vem
para abrir a banca com a mulher. Haverá algo de mais complexo, uma questão
cultural, insinua. Rosa completa: “As pessoas desinteressaram-se da leitura.
Querem é saber das redes sociais e dos telemóveis”. A comerciante, que lamenta
que o seu jornal de eleição, o Diário de Notícia, “já não saia como antes” –
mesmo o Correio da Manhã, habitual líder de mercado, “já vendeu mais”, sugere o
casal -, queixa-se que, cada vez menos, compensa estar fechado naquele cubículo
“de sol a sol”. Além disso, as margens de lucro têm vindo a ser cortadas pelas
distribuidoras. Por cada jornal ou revista, apenas lhes cabe 13% do preço de
capa.
Se as coisas estão tão mal, talvez o melhor
seja mesmo assumir que as receitas em queda podem ser recuperadas através da
comercialização de outros produtos. Tal como pedia o tal vendedor da Baixa. “Os
regulamentos que impõem a venda de apenas imprensa e jogo são do tempo do Krus
Abecassis [presidente da CML entre 1979 e 1989]. Eram regras de um tempo
diferente, o mundo mudou imenso nos últimos 40 anos”, diz o mesmo comerciante,
pedindo à câmara uma tomada de posição firme, em vez de abrir concurso para
bancas de venda exclusiva de algo que, afinal se encontra em forte declínio.
“Eles sabem perfeitamente o que se passa. Deviam fazer algo como fizeram com os
mercados, que deram uma grande volta. E isso passa por vender outros produtos”,
defende. Algo com que Rosa Bonifácio não concorda. “Cada coisa é para o que foi
feita”, diz.
O Corvo questionou a Câmara de Lisboa, a 31 de
outubro, sobre a pertinência da concessão de mais quiosques de venda exclusiva
de jornais, revistas e lotaria. “Quantas bancas deste género existem na cidade?
Destas, quantas estão por ocupar? Continua a CML a receber muitas candidaturas
ou pedidos de informação sobre a atribuição deste tipo de bancas? Considera a
CML a possibilidade de reduzir a presença de tais equipamentos no espaço
público?”, foram as perguntas endereçadas à autarquia, mas cujas respostas não
chegaram até ao momento da publicação deste artigo.
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