Professores doutores de Coimbra
JOÃO MIGUEL
TAVARES 09/12/2014 - PÚBLICO
É possível, em troca de um
estipêndio que se imagina generoso, defuntear o senso comum e enterrar o seu
cadáver debaixo de exuberantes pareceres jurídicos de professores doutores de
Coimbra.
Em Março de 2009,
quando Vital Moreira foi escolhido para encabeçar a lista do PS às eleições
europeias, Almeida Santos justificou a excelência da escolha com uma frase que
se tornou célebre: “Um professor doutor de Coimbra, meu Deus!” Dir-se-ia que um
conhecimento mínimo da História de Portugal aconselharia certa prudência em
relação aos “professores doutores de Coimbra, meu Deus”, mas a verdade é que
eles continuam a atravessar-se no nosso caminho, desta vez a propósito do caso
BES.
Após a audição do
governador do Banco de Portugal na comissão de inquérito, e de uma polémica com
o professor de Direito Pedro Maia, o Banco de Portugal fez o favor de divulgar
na Internet três pareceres de professores de Coimbra relacionados com a questão
da retirada de idoneidade a administradores de instituições bancárias. Dois
desses pareceres, de Pedro Maia e João Calvão da Silva, foram produzidos em
Novembro de 2013 por encomenda de Ricardo Salgado, após ter sido noticiado que
o então presidente do BES recebera vários milhões de euros (8,5 milhões, a
início, 14 milhões, no final) do empresário José Guilherme. O terceiro parecer
é anterior a esses dois, data de Julho de 2013, e foi assinado por José Carlos
Vieira de Andrade a propósito de outro caso, que a documentação disponível não
especifica (a identificação foi rasurada pelo Banco de Portugal), mas que pode
ser facilmente extrapolado para justificar a não retirada da idoneidade a
Ricardo Salgado em 2013.
Escreveu Vieira
de Andrade: “Para indiciar a falta de idoneidade, a lei não se basta com a mera
existência de vestígios (ainda que estes possam ser fortes, traduzidos, até,
numa acusação ou numa pronúncia) da prática desses crimes, sendo exigida a
condenação do sujeito.” Escreveu Pedro Maia, já sobre Salgado: “A transferência
efectuada respeita a uma relação do foro pessoal e nada tem que ver com o
desempenho de cargos sociais por parte de Ricardo Salgado”, não se vislumbrando
“de que forma a aceitação de uma liberalidade” pudesse ter reflexos numa
“gestão sã e prudente do banco”. Escreveu João Calvão de Silva: “Como a
liberalidade foi conselho dado a título pessoal, não se vê por que razão
censurar a sua aceitação.” Mais: “Os simples conselhos não responsabilizam quem
os dá. É o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade –
comum unidade –, com espírito de entreajuda e solidariedade. De outro modo,
ninguém estaria disponível para dar um conselho a quem quer que fosse.”
****
Desde a
divulgação destes pareceres, ainda não dei por Calvão da Silva ter vindo a
público justificar esta sua comovente visão de “entreajuda e solidariedade”, o
que é uma pena, dado estarmos no Natal. Mas devo dizer que é preciso ter uma
lata do tamanho do Pólo Norte para enviar uma carta de protesto ao Parlamento,
como fez Pedro Maia, em nome “da verdade” e em defesa do “bom-nome profissional
e académico”, alertando para a descontextualização do seu parecer, já que
quando ele foi proferido ainda não eram conhecidos os desastres nas contas do
BES. Está correcto, e admite-se o azar. Mas, ainda assim, há obras que não
envelhecem – e tanto hoje como há um ano, estes trabalhos de Pedro Maia e
Calvão da Silva são admiráveis exemplos de como é possível, em troca de um
estipêndio que se imagina generoso, defuntear o senso comum e enterrar o seu
cadáver debaixo de exuberantes pareceres jurídicos de professores doutores de
Coimbra. Um grande “meu Deus!” para eles – de espanto e de indignação.
Sem comentários:
Enviar um comentário