"Só vejo aldrabões à nossa
volta"
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 20/12/2014 - PÚBLICO
O processo dos submarinos pode não permitir a criminalização dos
responsáveis, mas não pode deixar de exigir que pelo menos se puna quem
permitiu os desmandos que estão patentes na frase dos Espírito Santo.
A frase foi dita
por Ricardo Salgado numa reunião “familiar” para distribuir os despojos do
negócio dos submarinos. A audição das gravações dessa reunião, que a TVI tornou
possível, apesar da ameaça de processos, permitiu-nos ouvir os representantes
dos diferentes clãs da família Espírito Santo a fazerem essa distribuição ao
vivo. Salgado fala com uma voz pausada e de autoridade, os outros fazem
perguntas concretas sobre a parte que lhes coube. Com a maior das calmas, sem
sequer qualquer visível entusiasmo pelo que cada um ia receber — um milhão de
euros, que deixariam qualquer mortal feliz —, percebe-se como era habitual
lidarem com milhões e milhões, os que eram deles e os que não eram.
Só queriam
explicações sobre por que é que não era mais, sabendo que outros tinham ficado
pelo caminho, nos intermediários de baixo e no “alguém” que não é nomeado. A
voz da ganância perguntava: “como é que aqueles três tipos receberam 15
milhões” e eles só cinco? Quando as perguntas começaram a querer ir mais longe,
Salgado manda que não "[remexessem] mais no assunto”.
E saindo dali, da
sala sumptuosa de madeiras vagamente cheirando a fragâncias naturais, o que é
da natureza das boas madeiras, do couro nobre das cadeiras, dos cristais dos
copos de água e dos quadros naturalistas nas paredes, dedicaram-se à esforçada
tarefa de manter o seu milhão bem longe dos impostos fora de Portugal, e só o
“importaram” quando o Governo permitiu o chamado "Regime Excepcional de
Regularização Tributária" (RERT). O dinheiro, algum dinheiro, voltou, e
foi um segundo excelente negócio, visto que pela fuga ao fisco pagaram menos
impostos do que todos nós pagamos. Menos? Muito menos. Este regime do RERT foi
um excepcional presente governamental para os Espírito Santo e para todos os
que estiveram envolvidos nestes negócios.
De onde veio o
dinheiro? Do bolso dos portugueses, os tais que estavam a “viver acima das suas
posses” e que o pagaram quando compraram os submarinos mais caros devido ao
rastro de corrupção que eles deixaram atrás. Sabem quando estas frases foram
ditas? Há um ano, em Novembro de 2013, estavam os portugueses no seu quinto ano
de empobrecimento.
A frase, pausada
e grave de Ricardo Salgado merece ser ouvida na sua integralidade, visto que
ela representa para todos nós uma vergonha colectiva pela impunidade dos nomeados
– o autor da frase, os recebedores dos milhões, os “tipos” que ficaram com os
15 milhõe, e o “alguém” – nesta semana em que o processo dos submarinos foi
arquivado:
“E vocês têm todo
o direito de perguntar: mas como é que aqueles três tipos receberam 15 milhões?
A informação que temos é que há uma parte que não é para eles. Não sei se é ou
não é. Como hoje em dia só vejo aldrabões à nossa volta... Os tipos garantem que
há uma parte que teve de ser entregue a alguém em determinado dia.”
Sim, os distintos
membros do conselho superior do GES, tinham todo o “direito de perguntar” como
é que “aqueles três tipos” receberam o que receberam, como nós temos todo o
direito de perguntar como é que, com o arquivamento da investigação judicial,
todos ficaram impunes dos seus crimes, porque estes “prescreveram”. Mas, mesmo
que não seja possível perseguir na Justiça esses crimes, que estão escritos a
néon nos céus de Portugal na frase de Ricardo Salgado, será que não é possível
outro tipo de sanções?
Não é preciso ir
mais longe do que ler o despacho de arquivamento do Ministério Público, para
que se compreenda que em termos de responsabilidade, em particular de
responsabilidade política, as investigações apontaram para ilegalidades, mesmo
que precisem que a “prática de ilegalidade não tem, necessariamente, de
configurar a prática de crime”. Muito bem, deixemos de falar em crime, passemos
a falar de responsabilidades, porque, se o crime já não pode ser perseguido,
pelo menos podemos exigir que um governo e políticos decentes exijam uma sanção
pelas responsabilidades, por aquilo que custou muitos milhões aos portugueses.
Aliás, se há
matéria que, se os portugueses conhecessem em detalhe, ainda endureceriam muito
mais a sua crítica aos desmandos do poder, é a longa saga das compras de
material militar e das chamadas “contrapartidas”, um dos negócios mais
fraudulentos das últimas décadas. Juntem-no, se fazem favor, às PPP, porque são
da mesma natureza: contratos leoninos, com cláusulas ficcionais, que estavam lá
para aumentar o preço a pagar pelo Estado por aquilo que comprava e que ninguém
contava vir a cumprir.
A coisa era tão
escandalosa e o terreno tão pantanoso que mesmo os distintos membros do
conselho superior do GES são aconselhados por Ricardo Salgado a não se meterem
nestes negócios, “porque eles estavam-se a preparar para fazer o mesmo com
carros blindados”. E na sala ouviu-se “e em metralhadoras e fragatas”. Quem
conheça as encomendas previstas de material militar da última década, sabe
muito bem do que eles estavam a falar.
Um antigo
primeiro-ministro socialista está preso a aguardar acusação, vários altos
responsáveis da actual administração pública estão presos, espera-se eternamente
pelo julgamento do caso BPN, um antigo líder parlamentar do PSD está condenado
a uma longa pena de cadeia, esperando recurso, vários processos e investigações
estão em curso, envolvendo dirigentes do PS e PSD, uns antigos, outros ainda
detendo considerável poder actual. Sobre este pressuposto novo clima da
Justiça, a ministra da Justiça disse que “o tempo da impunidade acabou”. Não é
verdade, se formos mais longe e abandonarmos a cómoda e hipócrita afirmação de
Pina Moura de que a “ética republicana é a lei”.
Não, a “ética
republicana”, se é que isso existe, é mais do que a lei – é a condução dos
negócios públicos com sentido de probidade e uma necessária exigência de
responsabilidade de quem manda nos governos e nos partidos. O processo dos submarinos
pode não permitir a criminalização dos responsáveis, mas não pode deixar de
exigir que pelo menos se puna quem permitiu os desmandos que estão patentes na
frase dos Espírito Santo.
Por isso,
voltemos às responsabilidades que o despacho descreve em pormenor, incluindo
várias ilegalidades, em particular envolvendo Paulo Portas enquanto ministro da
Defesa, e sancionadas mais tarde pelo Governo Santana Lopes (“Sanou qualquer
irregularidade que pudesse ter existido do ponto de vista administrativo”). Por
exemplo, lá se afirma que Paulo Portas “excedeu o mandato” que lhe foi
conferido pelo Conselho de Ministros em finais de 2003, ao celebrar um contrato
de compra diferente dos termos definidos na adjudicação, em negociações que
“decorreram de forma opaca”.
Foi detectada “a
violação de princípios e normas de natureza administrativa” que explica a
incúria, negligência e falta de cuidado pelo bem público patentes em todo o
processo (“O Estado encontrava-se numa situação muito frágil”). O despacho é
claro quanto ao facto de não ter encontrado sinais de favorecimento do
consórcio alemão, mas é igualmente claro quanto à geral “opacidade do
processo”, incluindo a misteriosa desaparição de documentos relevantes para
saber o que se passou.
Um crime não se
compara a uma ilegalidade ou a uma negligência. Mas, se Sócrates vier a ser
considerado culpado daquilo que é acusado, os governos que dirigiu serão
envenenados por essa culpa, porque os restantes membros do Governo teriam então
actuado com incúria e negligência perante os crimes que se cometiam ao seu
lado. O PSD não deixará de usar na sua propaganda essa circunstância, no
ambiente de desespero eleitoral que se vive no partido. A isso se somará a
culpa objectiva do PS nos negócios ruinosos das dezenas de PPP que fez, e
outras aventuras despesistas, e essa responsabilidade cairá sobre todos. Mas,
se na coligação permanecer Paulo Portas, e se entretanto depois deste despacho
não sair do Governo, não há frase contra as PPP que não possa ser rebatida com
os submarinos, porque, em ambos os casos, os governantes não defenderam o bem
público a que estavam obrigados.
É um pobre
destino da nossa política esta contínua troca de acusações, mas é inevitável,
enquanto os responsáveis directos pelos acordos leoninos das PPP estiverem em
confronto com a negligência nos acordos de material de guerra que acabaram por
levar à mesa do conselho superior do GES os milhões que nós pagamos para
alimentar cinco bocas dos clãs Espírito Santos, mais três bocas da Escom, mais
uns advogados pagos a preço de ouro e a boca do “alguém” que não se sabe quem
é. São, de facto, todos uns aldrabões.
Sem comentários:
Enviar um comentário