O início de nada
SÃO JOSÉ ALMEIDA
/ 27-12-2014 / PÚBLICO
Para António Barreto, 2014 há-de ser recordado como um ano de
"charneira". Não foi o início de nada, mas deixou ainda mais
evidentes os sinais de disrupção do sistema, com destaque para os processos
judiciais, para os problemas em serviços públicos como a Justiça e a Educação e
para as crises da economia e da política.
2014 não é o
início de nada, porque não mostrou sinais de mudança, não trouxe ideias novas e
acentuou sinais de crise da política, da crise da justiça, do aumento de
corrupção, de diminuição de recursos económicos, de transferência do capital
para o estrangeiro. Mostrou a desagregação, o disfuncionamento, a disrupção de
alguns serviços públicos, como seja a educação”, é com tranquilidade na voz,
mas em tom categórico que, a pedido do PÚBLICO, o sociólogo António Barreto
sintetiza as suas reflexões sobre ano em Portugal.
E frisa:
"Este ano vai ficar na história, daqui a 15 anos os historiadores olharão
para ele como um ano de charneira por causa dos casos judiciais. Estamos num
processo mais longo, que se desenrolará ao longo de cinco ou sete anos, que tem
muita importância e gravidade, no sentido de gravitas."
Este momento de
"charneira" surge numa época em que o país está em sintonia com a
Europa. Vive "um processo que começou há 10 ou 15 anos",
interrompendo o ciclo iniciado "na Segunda Guerra e que durou até à
viragem do século". Barreto precisa que "a segunda metade do século
XX foi um período de aprofundamento da democracia, de progresso no universo das
mulheres, dos jovens, etc., os últimos 40 ou mesmo 50 anos foram de progresso
do nível de vida e da igualdade de direitos".
“Não
conheci, em tempos de paz, na história democrática, como isto. Há o caso
italiano das Mãos Limpas, em que houve dois ou três ministros presos [...]. [Há]
em Portugal uma dimensão de corrupção que põe em causa o sistema”
Ora, no actual
século assistimos a "uma inversão desse processo", de que faz parte
"o predomínio de governos de direita", assim como o facto de "o
mundo do trabalho estar a perder poder e voz, os partidos de esquerda perderem
voto e influência, a parte inferior da classe média perder poder",
sustenta. A Europa vive um período em que "o movimento de alargamento da
democracia parou", defende, frisando que, "mesmo antes de 2008, já há
uma transferência de rendimentos de classes médias para os mais ricos, dos
países mais pobres para os mais ricos, através dos juros das dívidas públicas e
dos programas de austeridade, do trabalho para os detentores da produção, do
mundo produtivo para o mundo financeiro". E afirma: "Algumas das
causas democráticas estão a perder, como a da centralidade do trabalho para a
economia. Até no mundo da cultura e das artes há perda e é um mundo que está
sem capacidade."
Degenerescência
do sistema
O sociólogo, que
viveu ele também uma mudança de vida este ano, ao deixar a presidência da
Fundação Francisco Manuel dos Santos, alerta que o ano de "2014 em
Portugal tem de ser visto neste quadro". Um país a viver um momento de
mudança que "é um processo duro e difícil", que este ano viu serem
revelados "os grandes casos que são manifestações da degenerescência do
sistema político". A saber: o caso dos submarinos, o caso José Sócrates, o
caso Duarte Lima, o caso Face Oculta, o caso dos vistos gold, o caso Monte
Branco e a derrocada do Grupo Espírito Santo. Como se a crise e a austeridade,
o empobrecimento e a degradação política expusessem a corrupção.
José
Sócrates detido: um caso inédito na história da democracia portuguesa
É assim "uma
época em que as pessoas não se reconhecem no sistema, as elites políticas não
estão à altura de dar resposta", em que, "além da degenerescência do
sistema político, também há degenerescência do Estado de Direito", defende
Barreto. E em jeito de balanço, retrata: "Temos um ex-primeiro-ministro
[José Sócrates] preso preventivamente com a opinião pública contra ele, um
antigo ministro [Isaltino Morais] na segunda fase de prisão, um antigo
secretário de Estado a cumprir pena [Oliveira e Costa], outro antigo ministro
[Armando Vara] à espera de cumprir pena, um antigo secretário de Estado [José
Penedos,] também à espera de cumprir pena, um antigo líder de um grupo
parlamentar [Domingos Duarte Lima] à espera de cumprir pena, altos funcionários
do Estado investigados e em prisão preventiva [no caso dos vistos gold]".
E, perante o seu
próprio resumo, remata: "Não conheci, em tempos de paz, na história
democrática, como isto. Há o caso italiano das Mãos Limpas, em que houve dois
ou três ministros presos, mas em Itália os partidos ficaram de pantanas e o
Partido Comunista e o Partido Democrata Cristão desapareceram." Advertindo
que há "em Portugal uma dimensão de corrupção que põe em causa o
sistema". Para mais quando "já tivemos antes os fenómenos do BPP, do
BPN e o BCP, três histórias da elite financeira que agora acabam com o caso
Espírito Santo - e nesta não é só a família que está em causa, há muito mais
por trás disso, vamos ter novas prisões nas próximas semanas", afirma o
sociólogo.
Com o mapa da
corrupção sinalizado, conclui: "A crise é assim também do nosso
capitalismo que não está à altura. Há dinheiro árabe, angolano e chinês. Não é
por ser dinheiro estrangeiro a ocupar Portugal, o dinheiro não tem cheiro nem
nacionalidade, mas são dinheiros frescos, que compram e não investem. Isto
demonstra que o sistema económico português é frágil e que a elite económica é
fragilíssima. Há uma crise política, há uma crise na justiça/ corrupção, há uma
crise capitalista. Além de que 2014 é o ano da transferência de poderes e de
inversão do peso dos direitos e do trabalho."
“O ano de
2014 mostrou a desagregação, o disfuncionamento, a disrupção de alguns serviços
públicos, como seja a Educação”
Sublinha ainda
que 2014 foi "um ano crucial e de crise, que não teve sinais de solução,
teve sinais de decadência e incapacidade", que mostram "a falta de
resolução das questões políticas económicas e sociais, falta de capacidade das
elites políticas, sociais e económicas". É o ano em que "houve antes
disrupção na política e na justiça". Considerando ainda que "o ano
educativo é terrível", sublinhando que "o sistema educativo põe em
contacto directo o Estado e os cidadãos e foi onde houve mais disfunção e
disrupção."
Sobre se
"2015 será pior?", Barreto apenas diz: "Vamos ver. Até agora as
elites políticas e económicas não deram sinais de mudança, só deram sinais de
querer ganhar eleições." Sendo um ano eleitoral, Barreto considera que
"pode ser um ano de marcar passo". Lembrando que em 2013 "toda a
elite do país não conseguiu travar o processo e fazer um acordo", o
sociólogo advoga que deviam ter decorrido eleições, pois "o que estamos a
viver há um ano e o que vamos viver até Outubro será para acrescentar
degradação".
Barreto antecipa
que "a recuperação económica não vai acontecer, o desemprego diminuiu
pouco, o investimento está baixo", será "um ano no melhor dos casos
igual a 2014 e "com muita insuficiência de investimento". Mas admite
que está "curioso sobre como os partidos se vão portar, se a direita faz
coligação, se esquerda reforça a sua identidade e faz uma grande
coligação". Até porque, garante, "estão em cima da mesa duas grandes
alianças e há quem esteja à espreita, Marinho e Pinto é um fenómeno importante,
já houve um intruso com o PRD, mas apesar de tudo Ramalho Eanes era
Presidente".
Barreto é
peremptório ao defender que "só um novo poder político pode levar a cabo
uma reforma
Numa precisão que
antecipa pessimismo, Barreto sustenta que "as elites políticas dão sinal
de não saber responder". Por um lado, "a direita diz que o
neoliberalismo vai resolver", do outro lado, "a esquerda diz que vai
resolver, porque é esquerda" e o "bloco central é rejeitado". E
antecipa: "Vamos ver se esta esquerda e esta direita reagem. É o que vamos
assistir em 2015. Não creio que vamos ter boas notícias da TAP, da educação que
está terrível, da saúde, há um grande contencioso não está em vias de encontrar
solução". Para reafirmar a ideia de que "nos próximos quatro ou cinco
anos a economia portuguesa vai perder força, mesmo as empresas ainda sediadas
em Portugal vão desinteressar-se e os centros de investimento também".
Um novo poder
Barreto é
peremptório ao defender que "só um novo poder político pode levar a cabo
uma reforma". E explica que "se houvesse sinais de formação de um
novo poder político, com bases ao centro, e esse poder político se propusesse
reformar a Constituição, o sistema eleitoral e sistema judicial", o país
encontraria um caminho. Mas, o sociólogo afirma que o actual sistema político
"só pode pensar em reformar coisinhas na Constituição ou na lei
eleitoral".
“A crise é,
assim, também do nosso capitalismo, que não está à altura. Há dinheiro árabe,
angolano e chinês. […] O dinheiro não tem cheiro nem nacionalidade, mas são
dinheiros frescos, que compram e não investem”
Quanto a 2014,
foi tempo perdido. "A austeridade trouxe uma direita com poder político
real, que podia mesmo reforçar-se com a legitimidade da troika", mas que
levou a "um resultado em que mais importante que o aumento da desigualdade
e da pobreza, o mais sério é a incapacidade da direita de formar um novo poder
político". Uma capacidade que não sabe se a esquerda tem, isto porque
"António Costa poderá tentar conversar com o BE, o PCP e o Livre, mas isso
não resulta", pois "o PCP não faz parte do futuro do sistema político
português, o PCP é um grande protagonista da resistência, não o é da
democracia".
Barreto clarifica
que fala em "novo poder e não novo regime, porque as pessoas perguntam
logo se o novo regime é democrático ou não, monárquico ou republicano". Mas
explica que a esse novo poder político "competiria recuperar o sistema
político e o sistema constitucional, sem pôr em causa, antes preservando e
protegendo a democracia, que é, na essência, a liberdade dos cidadãos".
E lembra que
"a missão de um sistema constitucional é isso mesmo, preservar a liberdade
dos cidadãos e a democracia". A esse novo poder, defende, caberia "um
longuíssimo trabalho de organizar o poder do Estado, os poderes periféricos de
Estado, o corpus da Justiça, já que, remata: "O sistema judicial vive em
auto gestão, tem que se rever o actual modo em que as decisões estão apenas nas
mãos dos senhores juízes e dos senhores magistrados."
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