História de um arquivamento
Boas notícias para Paulo Portas: está decidido o arquivamento do caso de
Justiça que ensombrou o ex-ministro da Defesa nos últimos anos. O negócio dos
submergíveis comprados aos alemães e as "luvas" de que havia indícios
não irão a julgamento. Num momento em que o PS se debate com o facto -
histórico - de ter um dos seus ex-primeiros-ministros em prisão preventiva, a
direita pode respirar de alívio
Sónia Sapage
(texto publicado na VISÃO 1137, de 18 de dezembro)
10:25 Terça
feira, 23 de Dezembro de 2014
Foram precisos
mais de 460 mil carateres, espalhados por 336 páginas de tamanho A4, para
encerrar o Caso dos Submarinos, sem sequer o levar a julgamento ou deduzir
acusações. A VISÃO apurou que o inquérito, a correr no Departamento Central de
Investigação e Ação Penal (DCIAP), desde 2006, para investigar as
circunstâncias da compra de dois submergíveis da classe 209 PN a um consórcio
de empresas alemãs, já foi alvo de um despacho de arquivamento, assinado pelos
magistrados Josefina Escolástica e Júlio Braga. No futuro, o inquérito será
submetido a uma auditoria, a pedido do diretor do departamento, Amadeu Guerra.
Os principais
envolvidos - Hélder Bataglia, Luís e Miguel Horta e Costa, Pedro Ferreira Neto
(únicos quatro arguidos), Ana Gomes e uma jornalista (ambas assistentes no
processo) já todos deverão ter conhecimento da decisão. Paulo Portas não. O
ministro que, durante dez anos, esteve no centro do caso mediático, nem sequer
será notificado.
Numa altura em
que o PS vê um dos seus mais importantes ex-governantes a atravessar um
processo judicial histórico, a direita é aliviada do seu fantasma mais real. E
o vice-primeiro-ministro de Pedro Passos Coelho, que publicamente foi tratado
como suspeito, pode dizer, com segurança, que nunca passou de uma mera
testemunha, para a Justiça. Dois pormenores curiosos: Portas só foi ouvido pela
primeira vez em abril de 2014 e a Justiça nunca pediu levantamento do sigilo
bancário ao ministro.
Prescrição eventual
O despacho de
arquivamento já é do conhecimento do procurador-geral adjunto Amadeu Guerra e
faz uma súmula, extensa, dos 18 volumes que compõem o processo principal dos
submarinos, começando no Conselho de Ministros de 31 de janeiro de 1998 em que
se inicia o Processo Relativo à Aquisição de Submarinos, designado por PRAS.
O texto é uma
peça processual complexa que junta resumos das diligências efetuadas nos
últimos oito anos, excertos relevantes de inquirições, diagramas sobre os
negócios, a cronologia completa dos factos, referências a resoluções de
conselhos de ministros, correio eletrónico entre as partes, cláusulas
contratuais sujeitas a alterações, memorandos e até recados para a hierarquia.
No que diz
respeito a conclusões, o despacho sugere que não terá havido intenção clara de
beneficiar o consórcio alemão fabricante dos submarinos. Além disso, conclui
que se tivesse havido corrupção, prevaricação ou outro ato criminoso precedente
relacionado com a assinatura do contrato de aquisição dos submersíveis, esse
facto já estaria prescrito desde junho de 2014.
Ainda assim, o
arquivamento é baseado no facto de nenhum dos crimes de que havia indícios ter
sido dado como provado pela equipa do Ministério Público que "herdou"
o caso há pouco mais de um ano. E herdar um caso destes não é coisa pequena.
Diz-se que, se os 457 Giga Byte, os 902 871 ficheiros e as 39 990 pastas que
ocupa em versão informática fossem impressos, o processo não caberia nos cinco
pisos do DCIAP.
Dificuldades de metodologia
Se as provas
foram difíceis de encontrar, há motivos para isso.
As autoridades
das Bahamas, por exemplo, não permitiram seguir o rasto do dinheiro entregue
pela Ferrostaal e depositado em contas da ESCOM, através do Felltree
Investiment Fund. Parte dessas comissões terá regressado a Portugal no âmbito
dos vários Regimes Excecionais de Regularização Tributária, o que impede a sua
investigação. Acresce que a justiça alemã sempre recusou os pedidos de
cooperação enviados pela portuguesa.
Além disso, os
contratos de aquisição sofreram várias alterações clausulares, algumas ao nível
da equação de cálculo dos preços, tornando-se blindados. E vários documentos
que podiam esclarecer dúvidas nunca chegaram às mãos dos investigadores, como
as cartas-convite enviadas tanto a alemães como a franceses.
Em termos de
metodologia, a equipa do Ministério Público contava, apenas, com o auxílio de
uma perita para lidar com operações complexas - como, por exemplo, os oito
contratos de financiamento (swaps) dos submarinos. Não houve meios para
contratar um especialista em compras públicas, que pudesse esclarecer certas
opções do Governo, quanto mais para formar uma equipa multidisciplinar que
pudesse dar apoio técnico a este caso, considerado de altíssima complexidade
jurídica, operacional, técnica, logística e financeira.
Isto para não
referir que muitas buscas foram feitas por "arrastão", sem serem
direcionadas, o que significa que toda a informação encontrada nas casas ou nos
escritórios alvos das ditas era trazida para o inquérito e colocada nos seus
apensos, sem ser filtrada.
Os magistrados
que assinam o despacho dão conta de todas estas contingências com que se
depararam desde que o processo lhes chegou às mãos, depois de ter passado pela
tutela de vários investigadores, entre eles Carla Dias, Auristela Pereira e
João Ramos.
Dúvidas que ficam
Oito anos depois
do início das investigações e uma década passada sobre o negócio há, porém,
dúvidas que ficam por esclarecer.
Uma delas é
relativa ao que se passou na Alemanha. Os investigadores estranham que a
justiça alemã se tenha recusado a colaborar, não fornecendo os elementos que
foram pedidos em várias ocasiões, nomeadamente informações bancárias sobre
indivíduos ou empresas que intervieram no processo negocial.
Também não se
apurou se o cônsul honorário de Portugal em Munique, Jürgen Adolff (condenado
na Alemanha por ter sido "contratado" pela Ferrostaal para promover
encontros com decisores políticos portugueses a troco de uma comissão) ficou
com o dinheiro das "luvas" para si ou se o terá dividido com alguém.
A sentença que
condenou Adolff, na Alemanha, dá como provada uma "conversa a quatro
olhos, a sós" entre o referido cônsul e Paulo Portas. Sobre o assunto, o
vice-primeiro-ministro português disse, no Parlamento, que se tinha deslocado a
uma conferência anual de segurança em Munique quando "esse senhor era
cônsul honorário".
E acrescentou:
"Tinha, felizmente, um chefe de gabinete que me avisou de que o cônsul em
causa era uma pessoa algo maçadora, que eu tinha de preparar o discurso para o
dia seguinte e que, por isso, polidamente, não aceitasse ir jantar, e foi o que
fiz. Vi esse senhor no aeroporto e no carro a caminho do hotel, com o meu chefe
de gabinete; não sei absolutamente mais nada."
Dinheiro sem rasto
Outra questão tem
a ver com o rasto do dinheiro, que se perdeu. Os cerca de 27 milhões de euros
que a Ferrostaal assumiu ter pago, relativos a contratos com a ESCOM Limited
perderam-se numa miríade de fundos e offshores e contratos leoninos. O
Ministério Público não foi capaz de apurar o destino das comissões. Só
recentemente, o jornal i revelou gravações de reuniões nas quais Ricardo
Salgado assumia ter recebido parte das comissões, no caso dos submarinos. "Deram-nos
cinco a nós e eles [administradores da ESCOM] guardaram quinze. (... ) Os tipos
[da ESCOM] garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém em
determinado dia", disse Ricardo Salgado.
O modo como os
submarinos do consórcio alemão foram subindo de classificação nas preferências
da Marinha e do Ministério - primeiro estavam em último lugar, depois em segundo
- até serem escolhidos, também não ficou claro para os magistrados que assinam
o despacho. Apesar disso, vingou a ideia de que não terá havido favorecimento.
Finalmente, a
questão do Valor Acrescentado Nacional (VAN), no que diz respeito às contrapartidas,
especialmente as destinadas aos Estaleiros de Viana, também se mantém nublosa
para o Ministério Público. Muitas pontas soltas, mas, aparentemente, nada que
permitisse uma acusação sólida.
Regresso às origens
Nesta altura, é
preciso recordar que o primeiro processo conhecido por Caso dos Submarinos teve
origem numa certidão retirada do Portucale, um inquérito sobre a viabilização
de um empreendimento turístico da empresa Portucale, na Herdade da Vargem
Fresca, que obrigou ao abate ilegal de milhares de sobreiros.
Uma das escutas
realizadas no âmbito dessa investigação envolvia Abel Pinheiro e Paulo Portas,
ambos do CDS, a conversarem sobre "acordos" com o "Luís das
Amoreiras", que a polícia acreditava ser Luís Horta e Costa, então
administrador da ESCOM, a empresa do Grupo Espírito Santo que deu consultoria
ao consórcio alemão.
Esse pormenor da
conversa - ao qual acresce o facto de, no final de dezembro de 2004, ter dado
entrada nos cofres do CDS €1 060 250 em numerário - acabou por ser fundamental
para a abertura do Caso dos Submarinos, em 2006. Os investigadores desconfiaram
que a proveniência do dinheiro do CDS/PP pudesse ser esse negócio e acreditaram
ter identificado contas bancárias, no estrangeiro, que teriam sido usadas para
esconder as "luvas" pagas pelos alemães a portugueses, através da
ESCOM.
Mais tarde,
deu-se também a abertura de outra investigação às contrapartidas da compra dos
submergíveis. Nesta última, e depois de buscas a vários escritórios de
advogados, três alemães e sete portugueses foram acusados de burla qualificada
e falsificação de documentos. Acabaram julgados e absolvidos, já este ano.
Manteve-se o
inquérito à compra dos dois submarinos, por quase mil milhões de euros, ao
German Submarine Consorcium. ?E é sobre esse que agora temos a novidade do
arquivamento.
Suspeitos e envolvidos
Paulo Portas era
ministro da Defesa quando foi adjudicada a compra do Tridente e do Arpão. Ainda
assim, só em abril deste ano foi ouvido como testemunha, no âmbito do inquérito
ao negócio, como já se explicou. O Diário de Notícias foi o primeiro a publicar
que Paulo Portas era visto como suspeito pelo Ministério Público.
O jornal referia,
em setembro de 2012, que os investigadores estavam de olho em duas situações:
uma delas relativa ao pagamento de 30 milhões à ESCOM, e a outra relacionada
com uma tranche de 1,7 milhões de euros entregue a Rogério d'Oliveira,
ex--consultor do German Submarine Consortium. "Resultam suspeitas de que
parte do dinheiro pago pelo GSC à ESCOM tenha sido utilizado para pagamentos
indevidos e como contrapartidas a decisores políticos e a grupos políticos
envolvidos nas negociações", lia-se num documento judicial citado pelo DN.
O primeiro Caso
dos Submarinos (56/06.2TELSB) originou um arguido em 2009: o advogado Bernardo
Ayala, que coordenava a equipa de assessores jurídicos do negócio. Durante dois
anos, até o inquérito ser arquivado, Ayala manteve a condição de arguido. Do
arquivamento saiu, porém, uma nova certidão que originou o segundo Caso dos
Submarinos (222/11.9TELSB), na verdade um prolongamento do primeiro. Neste
inquérito, conhecido por 222, outros quatro indivíduos foram constituídos
arguidos por fraude fiscal qualificada, corrupção ativa e branqueamento de
capitais, em 2013: os gestores da ESCOM Hélder Bataglia, Pedro Ferreira Neto e
Luís Horta e Costa, e o empresário freelancer Miguel Horta e Costa.
Os casos do caso
Desde 2006, este
inquérito gerou os casos mais curiosos. No verão de 2010, soube-se que a
procuradora-adjunta Carla Dias, uma das magistradas que tinha o Caso dos
Submarinos à sua responsabilidade, mantinha uma relação amorosa há mais de um
ano com José Felizardo, um perito do processo, presidente da Inteli - Centro de
Inteligência em Inovação.
Logo se escreveu
que os advogados dos arguidos usariam esta informação para atacar a validade
das perícias, mas Cândida de Almeida, diretora do DCIAP, foi rápida a garantir
que o romance não comprometia a investigação. Nessa altura, foram instaurados
inquéritos disciplinares a todos os magistrados titulares do inquérito.
A Inteli, que,
entretanto, abandonou o processo sem cobrar honorários, concluiu pela falsidade
das contrapartidas oferecidas pela Ferrostaal e pela Acecia. E as perícias
acabaram por ser validadas pelo juiz Carlos Alexandre. Porém, Carla Dias, assim
como a procuradora Auristela Pereira, foram substituídas na investigação.
Em agosto de
2012, outro caso ensombrou o inquérito. O novo procurador do processo, João
Ramos, admite o sumiço de vários documentos relativos ao negócio, que deveriam
estar no Ministério da Defesa. "Apesar de todos os esforços e diligências
levadas a cabo pela equipa de investigação, o certo é que grande parte dos
elementos referentes ao concurso público de aquisição dos submarinos não se
encontra arquivada nos respetivos serviços, desconhecendo-se qual o destino
dado à maioria da documentação."
A eurodeputada
Ana Gomes, que, entretanto, se constituiu assistente no inquérito, enviou
também várias queixas à Comissão Europeia, criticando o Ministério Público por
não procurar a documentação que se queixa ter desaparecido. "Quanto tempo
vai demorar o MP a ir procurar - se não os originais, pelo menos as cópias - os
documentos que Paulo Portas digitalizou antes de sair do Ministério?",
questionou a socialista. "Com certeza que esses papéis que o ex-ministro
tratou de levar consigo não estavam relacionados com barquinhos de papel."
O processo longe de casa
A Comissão
Europeia nunca se pronunciou sobre o caso, o que levou Ana Gomes a dizer que
aquela instituição estava a lavar as mãos "de um contrato assinado sob a
responsabilidade política do seu presidente, Durão Barroso, ao tempo em que era
primeiro-ministro de Portugal".
Curiosamente, a
compra de submarinos aos alemães não foi alvo de investigações apenas em
Portugal, mas só cá é que não houve condenações. Na Alemanha, dois ex-gestores
da Ferrostaal - Johann-Friedrich Haun e Hans-Peter Muehlenbeck - foram julgados
e condenados por suborno de funcionários públicos estrangeiros, na venda de
submergíveis a Portugal e à Grécia. Os próprios admitiram ao tribunal terem
pago "luvas" e o ex-cônsul honorário Jürgen Adolff, estaria entre os
beneficiários (1,6 milhões de euros).
Ambos os gestores
alemães, que estiveram cinco meses em prisão preventiva, foram condenados, em 2011, a dois anos de pena
suspensa, assim como ao pagamento de coimas, no total de 54 mil euros. Já a
Ferrostaal, acusada do crime de obtenção de vantagem económica, teve de pagar
140 milhões de euros de multa, em três prestações, até 2014.
Na Grécia, o alvo
dos tribunais foi o ex-ministro da Defesa, Akis Tsochatzpoulos. O governante
socialista, responsável pela compra de quatro submarinos à Ferrostaal, pelo
preço de 2,85 mil milhões de euros, chegou a ser detido, no âmbito deste
processo, mas foi condenado a oito anos de prisão, em 2013, por não ter
declarado bens e por ter falsificado as declarações de IRS entre 2006 e 2009.
Independentemente
destes desenvolvimentos internacionais, em Portugal ninguém chegou a ser
condenado. No caso das contrapartidas, todos os arguidos foram absolvidos pelo
Tribunal Criminal de Lisboa e, no Caso dos Submarinos, sabe-se agora, nem
sequer haverá julgamento. Uma prenda de Natal antecipada para os arguidos. ?E
para Paulo Portas.
O misterioso sexto elemento
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