domingo, 21 de dezembro de 2014

A greve que põe a nu a fraqueza dos sindicatos Aconteça o que acontecer, o final deste braço-deferro tem por isso um vencedor antecipado: o Governo.


A greve que põe a nu a fraqueza dos sindicatos
Aconteça o que acontecer, o final deste braço-deferro tem por isso um vencedor antecipado: o Governo

 Manuel Carvalho / 21-12-2014 / PÚBLICO

A TAP não é apenas uma companhia aérea ou, numa apreciação mais liminar, uma mera empresa de transportes. A TAP é um clube que suscita nos seus sócios (os contribuintes) um género de emoções que se costumam ver mais no futebol do que na esfera dos negócios públicos.

A TAP fazia chorar os emigrantes, nos anos de 1960, quando viam as cores da bandeira nas caudas dos aviões. O Portugal que se lê no seu logótipo vale mais do que o que se inscreve no da EDP ou da Galp. Por isso resistiu a todas as tentativas de venda a privados da última década e meia. Quando uma companhia assim é alvo de uma operação de privatização que põe em causa a noção de propriedade afectiva que os seus associados têm dela, nunca é de esperar nada de saudável, de construtivo ou de inteligente. Mais do que a natureza do jogo, o que acaba por se discutir é o árbitro, o treinador ou os médios-ala. É o que está a acontecer por estes dias.
Chegámos ao ponto em que todos têm razão e ninguém tem razão alguma. Nas conversas exaltadas do clubismo, é tão fácil dizer disparates sobre um penalty como sobre uma greve ou uma requisição civil. Afinal, nas coisas da vida, das empresas e da governação, é por vezes possível (embora seja raro em Portugal) considerar que num conflito de interesses, como o que agita a TAP, não há uma vítima e um culpado nítidos. Os sindicatos e o Governo enquadram-se bem nos dois lados do delito. Os sindicatos têm motivos para protestar contra a privatização, como fizeram os congéneres de outras companhias aéreas europeias sem dramas nem invocações catastrofistas. E o Governo tem razão ao dizer que a privatização faz parte do seu programa de Governo ou que a marcação da greve para um período crítico como o Natal é um abuso e um atentado ao interesse nacional (ou, pelo menos, ao interesse de muitos nacionais).
Ninguém no Governo ou na legião de adeptos da privatização consegue justificar sem zonas cinzentas que a venda de 66% do capital da TAP é indispensável, como ninguém da franja dos que se opõem ao negócio reuniu argumentos inquestionáveis para defender a permanência da companhia na esfera do Estado. Bem, há a troika e a exigência de privatização que, uma vez mais, serviu de casca de banana à intervenção de António Costa, mas essa pressão externa podia ser facilmente superada, caso o Governo o quisesse. Em tudo o resto, não há receitas milagrosas, só dúvidas. Há riscos para o posicionamento geoestratégico de Portugal na ponte com o Brasil e com África? O caderno de encargos da privatização pode salvaguardar o interesse público? Há o perigo de a TAP passar a ser um mero escudeiro de uma companhia de segunda categoria ou de um arrivista vindo da América Latina? A TAP precisa de ser recapitalizada para crescer? Essa necessidade podia ser suprida com dinheiro do Estado, se o houver e se essa aplicação fosse tida como prioritária?
Tantas dúvidas em presença davam mais força aos sindicatos que ao Governo na batalha pela opinião pública. A greve justificada em defesa da preservação da companhia na esfera pública e convocada em nome do interesse nacional tinha boas condições para prevalecer sobre a lógica financeira. Os portugueses estão fartos de perder propriedade pública. A obsessão privatizadora do Governo começa a irritar até o mais embevecido liberal. Mas, ao marcar a paralisação da companhia para o Natal, os sindicatos deitaram tudo a perder. O quanto pior melhor teve o mérito de zangar o senso comum. Como seria de esperar, o ruído de fundo que agora se escuta resume-se mais a uma guerra fulanizada entre sindicatos e o Governo do que à privatização propriamente dita. Um pouco mais de lucidez e um pouco menos de arrogância teriam feito compreender aos sindicatos que as datas das batalhas contam.
Fora do Natal, jamais o Governo teria argumentos para avançar com uma requisição civil, que, além de procurar travar uma greve, serve para mostrar aos sindicatos e ao país impaciência e autoridade. Mais do que a defesa da TAP, o Governo jogou com a triste sina de milhares de emigrantes que vão ficar com as suas férias de Natal estragadas. A invocação do interesse público, da soberania ou da solidariedade com os nossos compatriotas que querem estar ao lado das suas famílias nas festas felizes foi um maravilhoso presente que os sindicatos colocaram no sapatinho do Governo. Ao marcarem a greve numa época em que o sentimentalismo tem efeitos especiais, os sindicatos deram ao Governo a possibilidade de fugir à questão essencial, a privatização, para poder assestar todas as energias a denegrir a imagem corporativa de uma classe de trabalhadores insensíveis ao destino solitário de milhares de emigrantes.
Aconteça o que acontecer, o final deste braço-de-ferro tem por isso um vencedor antecipado: o Governo. E um perdedor evidente: a TAP e os seus trabalhadores. Tudo poderia ser diferente se os sindicalistas tivessem sido capazes de perceber que o sucesso desta luta dependia da sua percepção como uma causa colectiva. Explicando que a TAP é uma companhia que conseguiu à custa dos seus gestores e dos seus trabalhadores uma estratégia de sucesso que a consolidou no Brasil e em África. Que é uma empresa bem gerida, que funciona, que dá bons resultados operacionais, que cresceu drasticamente em número de rotas e de passageiros transportados. Que é possível e desejável manter empresas assim na esfera do Estado. Que este é um mau momento para privatizar. Que havia outros caminhos para a fazer crescer e, ao mesmo tempo, para lhe conservar a sua vocação estratégica, uma questão essencial para um país que, hoje mais do que nunca, precisa de olhar menos para uma Europa decrépita e mais para uma América Latina ou uma África cheias de novas oportunidades.
Venha a greve em Dezembro ou em Janeiro, a luta pela TAP tornouse num mero problema laboral, um problema “deles”, sindicatos, não do país. De forma inteligente, um Governo incomodado com a discussão que interessa, a de saber se é boa ideia vender dois terços do capital da TAP, explorou sem tréguas as feridas abertas por uma greve embirrenta e raivosa. Nos últimos dias, é rara a hora em que não se vê o secretário de Estado dos Transportes ou o ministro da Economia nas televisões a apontar o dedo aos “vilões” da TAP, censurando a sua greve lógica e natural no plano das relações laborais na Europa tanto pelo que defendem, como pela data que escolheram para o fazer.


A estupidez do sindicalismo arrogante terá custos. Ao ponto a que o conflito chegou, face aos argumentos em cima da mesa, até um abaixo-assinado de figuras públicas como o que o cineasta António Pedro Vasconcelos subscreveu, deixa de parecer um acto em defesa da TAP para se confundir com uma nova frente de combate ao Governo. Quando, um dia, à revelia do caderno de encargos, um empresário como José Efromovich ou uma banal Air Europa decidirem que os voos para o Recife ou para Luanda passam a ser feitos via Madrid, não será só para a fúria privatizadora do Governo que os olhos se voltarão. O dedo acusador há-de igualmente estar apontado à cegueira dos sindicatos.

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