A greve que põe a nu a fraqueza
dos sindicatos
Aconteça o que acontecer, o final
deste braço-deferro tem por isso um vencedor antecipado: o Governo
Manuel Carvalho / 21-12-2014 / PÚBLICO
A TAP não é apenas uma companhia aérea ou, numa
apreciação mais liminar, uma mera empresa de transportes. A TAP é um clube que
suscita nos seus sócios (os contribuintes) um género de emoções que se costumam
ver mais no futebol do que na esfera dos negócios públicos.
A TAP fazia
chorar os emigrantes, nos anos de 1960, quando viam as cores da bandeira nas
caudas dos aviões. O Portugal que se lê no seu logótipo vale mais do que o que
se inscreve no da EDP ou da Galp. Por isso resistiu a todas as tentativas de
venda a privados da última década e meia. Quando uma companhia assim é alvo de
uma operação de privatização que põe em causa a noção de propriedade afectiva
que os seus associados têm dela, nunca é de esperar nada de saudável, de
construtivo ou de inteligente. Mais do que a natureza do jogo, o que acaba por
se discutir é o árbitro, o treinador ou os médios-ala. É o que está a acontecer
por estes dias.
Chegámos ao ponto
em que todos têm razão e ninguém tem razão alguma. Nas conversas exaltadas do
clubismo, é tão fácil dizer disparates sobre um penalty como sobre uma greve ou
uma requisição civil. Afinal, nas coisas da vida, das empresas e da governação,
é por vezes possível (embora seja raro em Portugal) considerar que num conflito
de interesses, como o que agita a TAP, não há uma vítima e um culpado nítidos. Os
sindicatos e o Governo enquadram-se bem nos dois lados do delito. Os sindicatos
têm motivos para protestar contra a privatização, como fizeram os congéneres de
outras companhias aéreas europeias sem dramas nem invocações catastrofistas. E
o Governo tem razão ao dizer que a privatização faz parte do seu programa de
Governo ou que a marcação da greve para um período crítico como o Natal é um
abuso e um atentado ao interesse nacional (ou, pelo menos, ao interesse de
muitos nacionais).
Ninguém no
Governo ou na legião de adeptos da privatização consegue justificar sem zonas
cinzentas que a venda de 66% do capital da TAP é indispensável, como ninguém da
franja dos que se opõem ao negócio reuniu argumentos inquestionáveis para
defender a permanência da companhia na esfera do Estado. Bem, há a troika e a
exigência de privatização que, uma vez mais, serviu de casca de banana à
intervenção de António Costa, mas essa pressão externa podia ser facilmente
superada, caso o Governo o quisesse. Em tudo o resto, não há receitas
milagrosas, só dúvidas. Há riscos para o posicionamento geoestratégico de
Portugal na ponte com o Brasil e com África? O caderno de encargos da
privatização pode salvaguardar o interesse público? Há o perigo de a TAP passar
a ser um mero escudeiro de uma companhia de segunda categoria ou de um
arrivista vindo da América Latina? A TAP precisa de ser recapitalizada para
crescer? Essa necessidade podia ser suprida com dinheiro do Estado, se o houver
e se essa aplicação fosse tida como prioritária?
Tantas dúvidas em
presença davam mais força aos sindicatos que ao Governo na batalha pela opinião
pública. A greve justificada em defesa da preservação da companhia na esfera
pública e convocada em nome do interesse nacional tinha boas condições para
prevalecer sobre a lógica financeira. Os portugueses estão fartos de perder
propriedade pública. A obsessão privatizadora do Governo começa a irritar até o
mais embevecido liberal. Mas, ao marcar a paralisação da companhia para o
Natal, os sindicatos deitaram tudo a perder. O quanto pior melhor teve o mérito
de zangar o senso comum. Como seria de esperar, o ruído de fundo que agora se
escuta resume-se mais a uma guerra fulanizada entre sindicatos e o Governo do
que à privatização propriamente dita. Um pouco mais de lucidez e um pouco menos
de arrogância teriam feito compreender aos sindicatos que as datas das batalhas
contam.
Fora do Natal,
jamais o Governo teria argumentos para avançar com uma requisição civil, que,
além de procurar travar uma greve, serve para mostrar aos sindicatos e ao país
impaciência e autoridade. Mais do que a defesa da TAP, o Governo jogou com a
triste sina de milhares de emigrantes que vão ficar com as suas férias de Natal
estragadas. A invocação do interesse público, da soberania ou da solidariedade
com os nossos compatriotas que querem estar ao lado das suas famílias nas
festas felizes foi um maravilhoso presente que os sindicatos colocaram no
sapatinho do Governo. Ao marcarem a greve numa época em que o sentimentalismo
tem efeitos especiais, os sindicatos deram ao Governo a possibilidade de fugir
à questão essencial, a privatização, para poder assestar todas as energias a
denegrir a imagem corporativa de uma classe de trabalhadores insensíveis ao
destino solitário de milhares de emigrantes.
Aconteça o que
acontecer, o final deste braço-de-ferro tem por isso um vencedor antecipado: o
Governo. E um perdedor evidente: a TAP e os seus trabalhadores. Tudo poderia
ser diferente se os sindicalistas tivessem sido capazes de perceber que o
sucesso desta luta dependia da sua percepção como uma causa colectiva. Explicando
que a TAP é uma companhia que conseguiu à custa dos seus gestores e dos seus
trabalhadores uma estratégia de sucesso que a consolidou no Brasil e em África.
Que é uma empresa bem gerida, que funciona, que dá bons resultados
operacionais, que cresceu drasticamente em número de rotas e de passageiros
transportados. Que é possível e desejável manter empresas assim na esfera do
Estado. Que este é um mau momento para privatizar. Que havia outros caminhos
para a fazer crescer e, ao mesmo tempo, para lhe conservar a sua vocação
estratégica, uma questão essencial para um país que, hoje mais do que nunca,
precisa de olhar menos para uma Europa decrépita e mais para uma América Latina
ou uma África cheias de novas oportunidades.
Venha a greve em
Dezembro ou em Janeiro, a luta pela TAP tornouse num mero problema laboral, um
problema “deles”, sindicatos, não do país. De forma inteligente, um Governo
incomodado com a discussão que interessa, a de saber se é boa ideia vender dois
terços do capital da TAP, explorou sem tréguas as feridas abertas por uma greve
embirrenta e raivosa. Nos últimos dias, é rara a hora em que não se vê o
secretário de Estado dos Transportes ou o ministro da Economia nas televisões a
apontar o dedo aos “vilões” da TAP, censurando a sua greve lógica e natural no
plano das relações laborais na Europa tanto pelo que defendem, como pela data
que escolheram para o fazer.
A estupidez do
sindicalismo arrogante terá custos. Ao ponto a que o conflito chegou, face aos
argumentos em cima da mesa, até um abaixo-assinado de figuras públicas como o
que o cineasta António Pedro Vasconcelos subscreveu, deixa de parecer um acto
em defesa da TAP para se confundir com uma nova frente de combate ao Governo. Quando,
um dia, à revelia do caderno de encargos, um empresário como José Efromovich ou
uma banal Air Europa decidirem que os voos para o Recife ou para Luanda passam
a ser feitos via Madrid, não será só para a fúria privatizadora do Governo que
os olhos se voltarão. O dedo acusador há-de igualmente estar apontado à cegueira
dos sindicatos.
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