2014. O ano da mudança na justiça
Por Luís Rosa
publicado em 30
Dez 2014 in
(Jornal) i online
A cara da mudança é Carlos Alexandre. O facto de ter origens sociais
humildes dá outra força à justiça e simboliza o sucesso da democracia – suprema
ironia quando as suas decisões agravam a crise do regime
O ano que está
prestes a terminar fica inevitavelmente marcado pela justiça e pela forma como
as magistraturas judiciais e do Ministério Público se reaproximaram da
comunidade em nome da qual aplicam a lei. 2014 ficará na história como o ano em
que o escrutínio democrático dos tribunais ficou mais sintonizado com as
expectativas da população, em detrimento de um seguidismo cego do saber
hermético e formalista dos professores de Lisboa e Coimbra. No ano em que a
troika saiu de Portugal, políticos e banqueiros, os principais responsáveis
pelo terceiro resgate financeiro da democracia e aqueles que os portugueses
viam como inimputáveis, estão a sentir um escrutínio judicial como nunca
aconteceu. Como a Sílvia Caneco recorda nas págs. 22 e 23, este foi o ano da
queda dos poderosos.
O símbolo
paradigmático dessa mudança é o julgamento do caso Face Oculta. Estavam a ser
julgados, depois de uma investigação exemplar do Ministério Público e da
Polícia Judiciária de Aveiro, um ex-vice-presidente do BCP (Armando Vara), um
ex-presidente da REN (José Penedos), um ex-administrador da EDP (Paiva Nunes) e
vários quadros de empresas públicas acusados de terem sido aliciados para uma
rede de poder que beneficiava empresas de um sucateiro de Ovar. Um sinal da
podridão do regime, até pelas fortes ligações políticas de Vara e de Penedos,
que mereceu uma forte censura do Tribunal de Aveiro: todos os arguidos foram
condenados a penas duras e boa parte deles a prisão efectiva.
Mas a cara dessa
mudança profunda é definitivamente o juiz Carlos Alexandre. Por duas razões que
estão interligadas.
A primeira pelas
decisões desassombradas que tomou, no mais escrupuloso respeito pela igualdade
de todos perante a lei, ao ordenar a detenção para interrogatório de Ricardo
Salgado e a prisão preventiva de José Sócrates. O juiz de instrução criminal
fez o que a sua consciência ditou face aos indícios que lhe foram apresentados
pelo Ministério Público, em vez de pensar, como alguns dos seus colegas, na sua
carreira e nas avaliações anuais do Conselho Superior da Magistratura.
A segunda pelas
suas origens sociais. Carlos Alexandre nasceu numa família humilde, como a
esmagadora maioria dos portugueses da sua geração, sem recursos económicos para
financiar estudos universitários. O facto de o juiz de instrução ser filho de
um carteiro e de uma operária fabril, como o próprio magistrado faz questão de
se apresentar, que estudou pela telescola e completou a licenciatura de Direito
enquanto trabalhava, dá outra força à mudança profunda que se está a verificar
na justiça. E simboliza igualmente o sucesso da democracia portuguesa – suprema
ironia quando as suas decisões agravaram de forma significativa a crise de
regime.
Saber se o regime
se aproxima de um ponto de ruptura é o que vamos descobrir em 2015. E aí
levanta-se a questão: será que os portugueses estão preparados para as mudanças
que há muito reclamavam na justiça e no regime?
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