A emigração portuguesa, o Natal e
John Kennedy
PEDRO GÓIS
23/12/2014 - PÚBLICO
Este é um bom momento para reorganizar algumas das ideias que temos sobre a
“nova” emigração portuguesa.
O ethos
migratório nacional que se mostra em alguns valores centrais da cultura
portuguesa, por exemplo o mar, a saudade, a família ou o retorno, ressurgem
nesta época natalícia. O Natal é uma metáfora da renovação de fé e de confiança
no futuro e um momento de lágrimas e abraços nos reencontros familiares um
pouco por todo o país. Desde há muito tempo, o Natal é tempo de “voltar a casa”
para os emigrantes, de ganhar coragem para mais um ano de ausência e de
reconciliação com o país que lhes não cria oportunidades para aqui
permanecerem.
Com o novo e
maciço fluxo migratório, a que Portugal assiste nos últimos anos, o regresso a
casa por altura do Natal é um período mágico para ainda mais famílias. Este é
igualmente um bom momento para reorganizar algumas das ideias que temos sobre a
“nova” emigração portuguesa.
A saber:
i) a “nova” emigração não substituiu a “velha”
emigração, mas somou-se a esta tomando como suas algumas das tradicionais
características da emigração portuguesa (e.g. invisibilidade social nos países
de destino; dificuldades de integração; elevado insucesso escolar dos jovens;
integração maioritária em profissões menos qualificadas; concentração em alguns
destinos tradicionais, etc.);
ii) a “nova”
emigração não é constituída maioritariamente por “jovens” altamente
qualificados. A emigração é um espelho da população do país e, se é certo que
emigram muitos jovens diplomados com elevadas qualificações e alguns menos
jovens com um perfil idêntico, a maioria não corresponde a este perfil. Os
“portugueses no mundo” raramente nos mostram os casos de portugueses pouco ou
nada qualificados, mas a emigração portuguesa é, ainda, muito próxima da
mostrada na “gaiola dourada” e o perfil de uma larga maioria de emigrantes (com
poucas qualificações académicas) não mudou;
iii) o recente
fluxo migratório de portugueses continua a ter como destino muitos dos países
tradicionais da emigração (e.g. França, Luxemburgo, Suíça; EUA, Brasil,
Alemanha, Inglaterra, África do Sul, etc.) e a estes somou outros destinos que
se afirmam como muito significativos (e.g. Reino Unido, Irlanda, Angola,
Moçambique, Emirados Árabes Unidos, etc.) numa dinâmica muito interessante de,
assumindo o trabalho como um bem transaccionável, procurar as oportunidades
onde elas existem;
iv) muitos dos
portugueses que emigram retornam ao país. As estatísticas disponíveis mostram
um número muito significativo de retorno de gerações mais velhas e um retorno
significativo dos emigrantes mais recentes. Isto não significa que a emigração
seja temporária ou que o retorno seja permanente. Depende sobretudo dos
desafios, das oportunidades e das condições de vida que os que retornam
encontram nos locais para onde voltam. Oportunidades ligadas às questões
básicas (e.g. habitação, saúde, trabalho, educação) são as que mais influem no
retorno e na permanência;
v) os factores
que impulsionam a “nova” emigração não são conjunturais mas sim estruturais. As
causas da emigração são complexas mas têm que ver, em primeiro lugar, com a
incapacidade que o país teve (tem) de se preparar para a contemporaneidade e
para a competitividade de um mundo sem proteccionismos nacionais. A educação
básica e secundária é ineficaz face aos desafios de quem não pretende seguir
para o ensino superior. O ensino para o empreendedorismo, para a criatividade
ou para profissões com elevado valor acrescentado é diminuto e nunca foi uma
prioridade. A meritocracia rareia na maioria das profissões e está (quase)
totalmente ausente das profissões ligadas ao Estado. O desequilíbrio de
desenvolvimento entre as regiões do país obriga a uma escolha que se tornou
intergeracional: migrar para o litoral (ou para o continente no caso dos
portugueses insulares) ou emigrar. Não é tanto o “se” é mais o “quando” que se
coloca nas opções de cada um (e de cada uma) dos habitantes de muitas regiões
portuguesas;
vi) o país não se
preparou para receber no seu seio as gerações qualificadas e altamente
qualificadas que ajudou a educar. Aumentaram os doutorados, os licenciados, as
especializações profissionais, mas a indústria e os serviços pouco apostaram na
investigação, no design, na criatividade ou na mudança do modelo de gestão ou
dos padrões produtivos. Os sectores que o fizeram, como o turismo ou o calçado,
recolhem já o retorno desse investimento, mas o país como um todo está muito
aquém do potencial de realização dos recursos existentes. As incubadoras de
empresas espalhadas pelo país são criativas, de excelência, competitivas, mas
os resultados deste esforço é muitas vezes bloqueado pela burocracia, pelo (escasso
e difícil) acesso ao capital de investimento, pelo calvário que constitui o
licenciamento industrial. As universidades/politécnicos não encontraram ainda
interlocutores que potenciem a sua capacidade instalada para o ensino e
investigação. As empresas, sobretudo as de pequena e média dimensão, não
encontraram ainda os parceiros de que precisam para se reinventarem;
vii) quem
trabalha ou contacta com a diáspora portuguesa ou com os profissionais
portugueses expatriados fica, muitas vezes, surpreendido com a falta de ligação
entre estes e o país de origem. Das dezenas de milhares de empresas
“portuguesas” em França, no Luxemburgo, na Suíça ou em Inglaterra, só um ínfimo
número tem parceiros de negócio em Portugal. Dos milhares de profissionais
altamente qualificados portugueses no estrangeiro só uma minoria mantém
contacto com os seus colegas no país. O potencial existente é gigantesco para a
importação/exportação de produtos, bens ou serviços nacionais mas a sua
ativação depende de algo mais do que um artigo num jornal;
viii) todos (e
cada um) dos nossos emigrantes e expatriados são parte de nós que fica por
cumprir no Portugal de todos. Importa que cada um assuma a sua responsabilidade
no repatriar destes recursos.
Estou a pensar no
poder local e na sua responsabilidade com os conterrâneos portugueses que vivem
no exterior, criando oportunidades (e.g. económicas, fiscais, de habitação, de
educação) para o seu regresso.
Estou a pensar no
Estado com a criação de um plano estratégico para as migrações que possa
planificar o futuro e da alocação de recursos financeiros que permitam activar
este investimento. Um plano integrado que veja nas migrações um terreno fértil
para um modelo de governação integrada que supere os constrangimentos de um
problema social complexo.
Estou a pensar
nas empresas que têm de estar abertas e disponíveis para a inovação, para a
criatividade, para a investigação.
Estou a pensar
nas universidades e centros de investigação que têm de acabar com a endogamia
institucional e recrutar os melhores não importa onde eles estejam.
Retorno à origem
para, citando John Kennedy, pedir que a nossa prenda de Natal colectiva seja
não o de não perguntarmos o que o país pode fazer por nós, mas o que (cada um)
de nós pode fazer pelo país. Para os que agora regressam, para os que por cá
estão, votos de um Feliz Natal.
Professor da
Universidade do Porto e investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra
Sem comentários:
Enviar um comentário