O ano em que Reino Unido pode
começar a soltar amarras da UE
ANA FONSECA
PEREIRA 26/12/2014 - PÚBLICO
David Cameron fez pontaria à imigração e irritou parceiros europeus, sem
conseguir estancar fuga de votos para o UKIP. Muito do que vier a acontecer na
relação de Londres com Bruxelas será decidido pelas próximas legislativas, de
desfecho incerto, e pelo discurso dos partidos até lá.
Pode estar o
Reino Unido prestes a atingir – como terá sugerido a chanceler alemã, Angela
Merkel – um “ponto de não retorno” nas suas relações com a União Europeia? A
crer no ano que passou, nunca a tão falada Brexit pareceu uma hipótese tão
realista, empurrada para o topo da actualidade por um tema que ainda há poucos
anos teria envergonhado a cool Britannia e que está hoje na boca de todos os
políticos: imigração. O anunciado referendo à permanência na UE está prometido
para 2017, mas serão sobretudo as legislativas de Maio a ditar o caminho que
Londres vai seguir e, para adensar a angústia europeia, o desfecho não poderia
ser mais incerto.
Há vários meses
que a política britânica se faz num ritmo acelerado de pré-campanha, instigado
por sondagens que indicam que nem os conservadores nem os trabalhistas deverão
conseguir maioria para governar sozinhos, e pela cavalgada eleitoral do Partido
da Independência (UKIP) – nenhuma outra palavra sintetiza tão bem a ascensão de
uma formação que, quatro anos depois de ter conseguido 3% dos votos nas
legislativas, venceu as europeias e conseguiu impor a sua agenda – antieuropeia
e anti-imigração – no debate político.
E se dúvidas
houvesse de que as relações com a UE vão dominar a refrega dos próximos meses,
o primeiro-ministro, David Cameron, tratou de as desfazer no discurso que
proferiu no final de Novembro. Nele deixou claro que se os conservadores
vencerem as legislativas vão bater-se em Bruxelas por reformas que permitam ao
Reino Unido travar a imigração oriunda de outros países da UE, criando
discriminações no acesso aos apoios sociais. No dia anterior, o gabinete de
estatísticas britânico revelou que o saldo migratório (diferença entre entradas
e saídas) no país atingiu as 260 mil pessoas, um valor acima do verificado
quando Cameron chegou ao poder, com as entradas de cidadãos europeus a
representarem a maior subida.
Sob pressão para
responder à inquietação dos eleitores (as sondagens indicam que a imigração é a
principal preocupação dos britânicos, mesmo que admitam que não é aquilo que
mais afecta as suas famílias), Cameron deu um passo que lhe estreita a margem
de manobra caso seja reeleito: “Se as nossas preocupações caírem em saco roto e
não conseguirmos melhorar a nossa relação com a UE, então não excluo nenhuma
possibilidade”, afirmou, ficando a milímetros de anunciar que se baterá pelo
“não” no prometido referendo se os parceiros europeus recusarem acomodar as
reformas pedidas por Londres.
“Cameron é um
líder fraco, cativo dos eurocépticos do seu próprio partido”, escreveu Philip
Stephens, comentador político e director adjunto do Financial Times, afirmando
que o “pânico o levou a uma corrida desenfreada com o UKIP sobre a UE e a
imigração” quando o seu plano inicial era transformar as legislativas “num
concurso com o Labour sobre competência económica” – uma competição em que os
tories levam vantagem, apoiados pelo crescimento da economia e pela descrença
dos eleitores nos planos trabalhistas.
O discurso
acalmou a ala eurocéptica dos conservadores, que há meses pedia a Cameron uma
tomada de posição que mostrasse aos eleitores que o partido está apostado em
recuperar o controlo das fronteiras (um velho lema do UKIP). E na Europa,
apenas a Polónia se insurgiu publicamente contra as propostas de Cameron para
bloquear o acesso dos cidadãos europeus aos apoios sociais durante os primeiros
quatro anos de estadia no Reino Unido ou extraditar os que não conseguirem
emprego ao fim de seis meses, avisando Londres que se estava a aproximar de uma
“linha vermelha”.
Os trabalhos de
Cameron
Mas os trabalhos
que o primeiro-ministro enfrenta, caso seja reeleito, são muito maiores do que
dão a entender as críticas brandas que ouviu dos trabalhistas ou dos
liberais-democratas – ambos com planos para restringir o acesso dos imigrantes
europeus aos apoios sociais, ainda que por períodos mais curtos –, ou do que
sugerem a disponibilidade manifestada por Berlim e a Comissão Europeia para
ouvir “tranquilamente” as propostas britânicas.
Fosse para
pressionar os parceiros, fosse para salvaguardar a necessidade de um eventual
ajustamento na promessa feita aos eleitores, Cameron admitiu que só será
possível criar mecanismos para limitar a imigração intracomunitária se os
tratados europeus forem revistos. Camino Mortera-Martinez, especialista em
imigração do Centro para Reforma Europeia (CER), concorda com o
primeiro-ministro britânico, concluindo que a generalidade dos entraves
propostos por Londres vai contra os princípios da livre circulação e da
igualdade de tratamento dos cidadãos europeus tal como estão definidos nos
tratados e nas directivas em vigor.
Mas o apetite dos
líderes europeus para reabrir uma discussão encerrada com a ratificação, em
2009, do Tratado de Lisboa não poderia ser menor. “Isto, porque a primeira
letra de tratado significa trouble (problema) com um “T” maiúsculo”, escreveu
Marc Mardell. O apresentador e antigo editor de assuntos europeus da BBC
acrescenta que, mesmo que Londres fosse capaz de convencer as outras capitais,
seria virtualmente impossível conseguir concluir a revisão a tempo de um
referendo em 2017.
E a sugestão,
filtrada para a imprensa, de que Downing Street estava a ponderar introduzir
quotas à entrada de trabalhadores comunitários minou a boa vontade de países
que, apesar das sucessivas derivas eurocépticas de Cameron, repetiam estar
dispostos a negociar para manter o Reino Unido na UE – a revista Der Spiegel
escreveu no início de Novembro que Merkel terá deixado claro a Cameron que
preferia que o país saísse da UE a aceitar limites ao princípio da livre
circulação, absolutamente “sagrado” para Berlim. Já depois do discurso, o novo
presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, disse que o Governo
britânico tem de “parar de estigmatizar os outros países da UE “só porque isso
rende votos”.
“Não estamos a
fazer propostas muito construtivas sobre o futuro da Europa. Por isso não somos
de grande utilidade para ninguém neste momento”, lamentou-se Mark Leonard,
director do European Council on Foreign Relations, em declarações ao jornal
Guardian em Outubro, depois de o UKIP, fazendo tábua rasa das cedências de
Cameron aos eurocépticos, ter conseguido eleger o seu primeiro deputado (a que
se seguiria um segundo em novas eleições intercalares, já em Novembro).
Populismo imune
aos factos
Ao franquear as
portas de Westminster, a formação de Nigel Farage provou ser capaz de
ultrapassar as barreiras de um sistema eleitoral que favorece os grandes
partidos, o que torna mais incerto o desfecho das próximas legislativas. Mostrou
também ter a receita para atrair um eleitorado descrente nos partidos
tradicionais e que se mostra disposto a aceitar a saída da UE se isso
significar travar a entrada de imigrantes vindos do Sul ou do Leste da Europa.
De pouco tem
valido os estudos que mostram que, ao contrário do que afirma Farage, o Reino
Unido não está a ficar “superlotado” – o último relatório da OCDE sublinha que
os fluxos migratórios continuam abaixo dos verificados antes da crise
internacional e, apesar de a mobilidade dentro da UE estar em valores recorde,
o território britânico recebeu apenas 7% dos europeus que saíram do seu país
para trabalhar. Outros demonstram que o país só tem a ganhar com esta nova vaga
de imigração: uma análise do University College de Londres concluiu que
trabalhadores europeus contribuíram muito mais com os seus impostos do que têm
recebido em ajuda social do Estado, num saldo positivo de 20 mil milhões de
libras entre 2000 e 2011; e uma estimativa da Comissão Europeia para 2060
indica que o Reino Unido será, graças à imigração, um dos poucos países da UE a
contrariar a tendência de decréscimo populacional numa Europa onde, por essa
altura, haverá dois trabalhadores em idade activa por cada reformado (contra os
actuais quatro).
O que se passa no
país, que na viragem do século foi acérrimo defensor do alargamento da UE a
Leste e usou o multiculturalismo como antídoto para a reputação herdada de
Thatcher, está longe de ser caso único. Na Europa rica do Norte, tábua de
salvação para centenas de milhares de europeus do Sul fugidos à crise ou íman
para os trabalhadores do Leste recém-chegados ao espaço único, o sentimento
anti-imigração propaga-se. Na Suécia, a extrema-direita forçou a queda do
recém-eleito governo social-democrata e promete fazer das legislativas
antecipadas (as primeiras no país desde 1958) um “referendo à imigração”. Em
França, depois da vitória nas europeias, a líder da Frente Nacional, Marine Le
Pen, promete chegar à segunda volta das presidenciais de 2017. E nas últimas
semanas, a Alemanha provou que também não está imune às derivas populistas, com
uma sucessão de manifestações contra a “islamização” do país – o partido
Alternativa para a Alemanha (AfD) foi um dos promotores e continua a afirmar-se
na cena política defendendo restrições à imigração e a saída do euro dos países
em dificuldade.
Uma boa eleição
para perder
Um mal-estar para
os quais nem Bruxelas nem os partidos tradicionais europeus encontram resposta
e que, no caso do Reino Unido, promete envenenar todo o debate até às
legislativas de 7 de Maio e, com isso, tornar mais provável um cenário de saída
da UE.
“Em qualquer
outra altura, [o ministro das Finanças George] Osborne iria apontar a imigração
vinda da UE como uma medida de sucesso: o Reino Unido está a crescer enquanto a
zona euro estagna. Mas Farage entrou em cena e, inexplicavelmente, Cameron
pensa que a melhor forma de contrariar o populismo antieuropeu e anti-imigração
do UKIP é competir com ele”, escreve Philip Stephens noutro artigo para o FT em
que destaca a visível ansiedade dos três principais partidos a meses de uma
votação “da qual estão todos destinados a sair como perdedores”.
Num país onde o
sistema eleitoral favorece a formação de maiorias, a coligação negociada em
2010 entre tories e lib-dem foi apenas a segunda desde a II Guerra Mundial e,
apesar de nenhum partido se mostrar muito interessado na repetição da
experiência, a alternativa deverá ser um governo minoritário e, muito
provavelmente, novas eleições a breve prazo.
O Labour continua
à frente nas sondagens, apesar da teimosa impopularidade do seu líder, Ed
Miliband. Mas apesar de o desenho dos círculos eleitorais favorecer o partido –
que precisa de menos votos do que os tories para eleger mais deputados – as
previsões actuais mais optimistas atribuem-lhe apenas 260 lugares no
Parlamento, a 60 da maioria absoluta.
Os lib-dem seriam
os aliados naturais dos trabalhistas, mas o partido do vice-primeiro-ministro,
Nick Clegg, prepara-se para pagar o preço da participação no Governo e terá
dificuldades em eleger o número necessário de deputados para completar uma
maioria. Miliband pode tentar também uma aliança com o Partido Nacional Escocês
(SNP) que, colhendo os frutos da campanha a favor da independência, poderá ser
o terceiro partido com maior representação parlamentar, mas os dois partidos
vão travar uma luta sem quartel na Escócia, o que torna menos provável um
acordo pós-eleitoral.
Nas suas
previsões para 2015, a
revista Economist aposta numa vitória dos tories – “todas as legislativas dos
tempos modernos foram ganhas pelo partido mais creditado em termos de economia
e liderança” –, mas os cálculos eleitorais de Cameron são ainda mais
complicados do que os de Miliband. Para vencerem, os conservadores precisam de
anular a diferença nas sondagens para o Labour e estancar a fuga de votos para
o UKIP. No entanto, se vencerem sem maioria, uma nova coligação com os lib-dem
pode não lhes bastar para garantir o controlo do Parlamento, o que abre espaço
a uma aliança com Farage, desejada pela ala mais à direita do partido.
A grande
incógnita é saber se o crescimento do partido antieuropeu nas intenções de voto
se traduzirá na eleição de deputados – os 14% que as sondagens lhe atribuem
podem não significar mais do que um punhado de lugares em Westminster, no
entanto com 24% poderia chegar aos 46 eleitos, indicam algumas projecções. Mas
a mera sugestão de que o UKIP poderá sair das eleições como fiel da balança
levará tanto Cameron como Miliband a colocar na mira os eleitores que agora se
inclinam a votar em Farage.
Ao contrário do
primeiro-ministro, o líder trabalhista afasta a hipótese de um referendo à
permanência na UE, mas defende reformas na relação entre Londres e Bruxelas, e
continua a endurecer a sua própria política sobre imigração, consciente de que
o UKIP está também a crescer entre os eleitores tradicionais do Labour. A sua
vitória nas legislativas acalmará Bruxelas, mas se liderar um governo
minoritário ficará tão exposto como os tories aos ataques dos antieuropeus e,
nesse cenário, ou adopta a estratégia de contenção seguida por Cameron (o que o
pode colocar rapidamente em rota de colisão com a UE) ou arrisca um mandato tão
breve como o do executivo social-democrata sueco.
“Não há respostas
fáceis e, em privado, alguns deputados de ambos os partidos começarão a pensar que
esta é uma boa eleição para perder”, escreveu o jornalista do Guardian John
Grace, adiantando que o vencedor irá aparar os “inevitáveis golpes” enquanto o
derrotado capitalizará o descontentamento para vencer as eleições seguintes. “Os
únicos políticos que não pensam assim são Cameron e Miliband, porque o seu
futuro depende do resultado.”
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