Ricardo Salgado tem razão
José Manuel Fernandes
12/12/2014 / OBSERVADOR
No mundo e no país de Ricardo Salgado, aquele em que conserva toda a razão,
o Banco de Portugal ter-lhe-ia dado todo o tempo do mundo, e o governo todas as
garantias de que necessitasse. Como sempre.
Não se riam:
Ricardo Salgado tem mesmo razão. E tem razão porque aquilo que lhe aconteceu, que
aconteceu ao BES e que aconteceu ao grupo familiar não podia ter acontecido.
Simplesmente não podia. Nunca aconteceu em quase 150 anos, como pode ter
acontecido agora. É tão estranho a sua família ter caído como é estranho a
Terra rodar em volta do Sol: então nós não vemos, todos os dias, o Sol a rodar
à volta da Terra? Alguém acredita em Galileu? Ricardo Salgado não, apenas
acredita nos seus olhos.
Sim, Ricardo
Salgado tem razão. Tem razão como Luís XVI teve razão em 1789: não se acaba
assim como uma velha ordem. Melhor: não se acaba com a velha ordem, ponto. E
foi esse fim da velha ordem que Ricardo Salgado não aceita que tenha chegado.
Em Portugal os governos sempre respeitaram e aparicaram a família – a venerada
família dos Espírito Santo. Fizeram-no no antigo regime, quando o avô de
Ricardo visitava amiúde Salazar, como o fizeram nos novos tempos democráticos.
É certo que houve um sobressalto, com a revolução, a nacionalização e o exílio,
mas mesmo nessa altura, protesta Ricardo Salgado, não lhe mudaram o nome ao
banco. Agora até isso fizeram. Impensável. Impossível. Irreal.
Ricardo Salgado
tem pois razão. Alguém como ele, gente como a da sua família, sabe que quando
se liga para um membro do governo, esse membro do governo atende o telefona,
escuta atencioso e, sobretudo, ajuda. Mas ligou ao Moedas. Depois à Maria Luís.
Por fim ao Pedro. E nenhum deles estendeu a mão que salvasse o grupo. Essas
coisas não acontecem em Portugal, nunca aconteceram. E se agora aconteceram foi
porque alguém o quis destruir.
Ricardo Salgado
só pode por isso ter razão quando protesta. Afinal ele também compra o
Financial Times. Também ele leu naquele jornal, a 19 de Novembro, que, quando a
troika chegou, houve quem defendesse, num pequeno almoço de economistas com os
responsáveis do FMI, BCE e UE, que uma das melhores coisas que os nossos
credores podiam fazer pelo país era desmantelar o grupo Espírito Santo. Inveja,
só podia ser, esse mal de que Camões já falava. Por isso ele ficou tão contente
quando a troika saiu e o grupo ainda por cá ficou. Mais uma vez, sobrevivera. E
se depois não sobreviveu, foi mesmo porque, como leu no mesmo jornal, mas agora
a 4 de Dezembro, o velha ordem perdeu o controle do país. Ora isso são coisas
que não acontecem – a velha ordem nunca perde o controle de Portugal.
A razão de
Ricardo Salgado é a razão da sua surpresa, da sua estupefacção. O mundo sempre
fora um lugar previsível. Um banqueiro sabia o poder que tinha, e tinha muito.
Com pequenas participações, mandava nas maiores empresas do país – só o Pedro
Queirós Pereira, para mais com velhas ligações à família, não tinha deixado que
isso também acontecesse na Semapa. Mas na PT ou na EDP durante muitos anos
todos conheciam as regras do jogo. Também não era difícil lidar com a imprensa.
Convidavam-se uns directores e editores para uma férias na Suíça ou um cruzeiro
do iate, sem agenda para além de “conhecer melhor o grupo”, e as notícias
fluíam, por regra simpáticas, às vezes laudatórias. Se fossem antipáticas,
também se conheciam as regras – o grupo cortava a publicidade. Depois, se
necessário, cortava também a PT. Ou mesmo a EDP. A bem dizer, ninguém cortava a
publicidade: apenas se faziam outras opções. Campanhas de imprensa, ataques nos
jornais? Ricardo Salgado não sabia, nunca soube, o que isso era.
E claro que
Ricardo Salgado tem razão quando fala do Banco de Portugal. Piscar o olho para
indicar que já não se tem confiança no banqueiro? Ninguém pisca o olho ao
banqueiro. E se piscam, ele não repara. Nem sabe bem o que é um piscar de olho.
Não dá por nada, não sabe de nada, não se preocupa com nada. Nem sequer
encomenda pareceres sobre idoneidade a professores doutores de Coimbra. Se o
Banco de Portugal não confia nele, se não lhe dá o tempo que ele pede para
resolver os seus problemas, se envia cartas atrás de cartas, é porque o Banco
de Portugal está a ver mal o problema. Ou então também faz parte da
conspiração.
A razão também
alimenta a ideia de Ricardo Salgado de que o seu grupo é, sempre foi, um
“centro de racionalidade”, um centro indispensável ao desenvolvimento do país,
um precioso “centro de decisão nacional” (mas com contas no Luxemburgo e na
Suíça, não vá o diabo tecê-las). É certo que, à frente do “centro de
racionalidade” estaria um contabilista duvidoso, e que boa parte das empresas
que consumiam os recursos do seu banco não eram nem bem geridas nem tinham
especial qualidade, mas o que conta aqui, o que sempre contou, o argumento que
todos os governos sempre atenderam, é que eram empresas portuguesas geridas por
portugueses (mesmo quando alguns dos gestores, membros da família, não fossem
lá grandes gestores, mas isso só ele sabia).
Ricardo Salgado
também teve razão quando argumentou que a queda do seu banco e do seu grupo
colocaria “riscos sistémicos”. Então não se está mesmo a ver? O sistema da sua
família ruiu como um castelo de cartas. Perdeu-se o respeito, até se perdeu o
respeitinho. A Justiça teve o despautério de o deter e interrogar. Congelaram
as contas a todos, um drama inimaginável: com contas congeladas, como podiam as
suas irmãs receber o dinheiro dos bolos que vendem e vendiam?
Até nesta
questão, a da família, Ricardo Salgado tem razão. Como todos sabem, a história
de Caim e Abel é uma ficção. Uma ficção antiga, biblíca, mas mesmo assim uma
ficção. As famílias sempre se deram bem. As famílias sabem que, quando se
dividem, entram em colapso. As famílias não toleram ovelhas negras. O que se
passou nas reuniões do conselho superior do grupo devia ter sido apenas um
percalço. As dificuldades na sucessão um contratempo. Agora uma família
dividida a lavar a roupa suja em público, no Parlamento, para as televisões,
isso nunca aconteceu. Em Cascais essas coisas não acontecem. Nem se imaginam
quando se tem olhos imaculadamente azuis.
Verdade, verdade,
é que Ricardo Salgado tem razão porque continua a recusar-se a perceber que o
mundo mudou e que Portugal também mudou. Mudou o mundo em 2008, com a crise do
Lehman Brothers: a vida dos banqueiros nunca mais foi a mesma. Mudou Portugal
com a troika e com o Pedro que não lhe deu a mão: a vida dos velhos senhores
também deixou de ser intocável. No mundo e no país de Ricardo Salgado, aquele
em que ele conserva toda a razão, o Banco de Portugal ter-lhe-ia dado todo o
tempo do mundo, e o governo todas as garantias de que necessitasse. Uma mão
haveria de limpar a outra, como tantas vezes sucedeu. Ricardo Salgado sabe que
sempre foi assim e não aceita que tenha deixado de ser. Por isso ele mantém a
sua razão. Não é é a nossa razão.
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