sábado, 13 de dezembro de 2014

Ricardo Salgado tem razão, por José Manuel Fernandes

"Ricardo Salgado tem pois razão. Alguém como ele, gente como a da sua família, sabe que quando se liga para um membro do governo, esse membro do governo atende o telefona, escuta atencioso e, sobretudo, ajuda. Mas ligou ao Moedas. Depois à Maria Luís. Por fim ao Pedro. E nenhum deles estendeu a mão que salvasse o grupo. Essas coisas não acontecem em Portugal, nunca aconteceram. E se agora aconteceram foi porque alguém o quis destruir."
(...)"A razão de Ricardo Salgado é a razão da sua surpresa, da sua estupefacção. O mundo sempre fora um lugar previsível. Um banqueiro sabia o poder que tinha, e tinha muito. Com pequenas participações, mandava nas maiores empresas do país – só o Pedro Queirós Pereira, para mais com velhas ligações à família, não tinha deixado que isso também acontecesse na Semapa. Mas na PT ou na EDP durante muitos anos todos conheciam as regras do jogo. Também não era difícil lidar com a imprensa. Convidavam-se uns directores e editores para uma férias na Suíça ou um cruzeiro do iate, sem agenda para além de “conhecer melhor o grupo”, e as notícias fluíam, por regra simpáticas, às vezes laudatórias. Se fossem antipáticas, também se conheciam as regras – o grupo cortava a publicidade. Depois, se necessário, cortava também a PT. Ou mesmo a EDP. A bem dizer, ninguém cortava a publicidade: apenas se faziam outras opções. Campanhas de imprensa, ataques nos jornais? Ricardo Salgado não sabia, nunca soube, o que isso era."
José Manuel Fernandes 


Ricardo Salgado tem razão
José Manuel Fernandes 
12/12/2014 / OBSERVADOR

No mundo e no país de Ricardo Salgado, aquele em que conserva toda a razão, o Banco de Portugal ter-lhe-ia dado todo o tempo do mundo, e o governo todas as garantias de que necessitasse. Como sempre.

Não se riam: Ricardo Salgado tem mesmo razão. E tem razão porque aquilo que lhe aconteceu, que aconteceu ao BES e que aconteceu ao grupo familiar não podia ter acontecido. Simplesmente não podia. Nunca aconteceu em quase 150 anos, como pode ter acontecido agora. É tão estranho a sua família ter caído como é estranho a Terra rodar em volta do Sol: então nós não vemos, todos os dias, o Sol a rodar à volta da Terra? Alguém acredita em Galileu? Ricardo Salgado não, apenas acredita nos seus olhos.

Sim, Ricardo Salgado tem razão. Tem razão como Luís XVI teve razão em 1789: não se acaba assim como uma velha ordem. Melhor: não se acaba com a velha ordem, ponto. E foi esse fim da velha ordem que Ricardo Salgado não aceita que tenha chegado. Em Portugal os governos sempre respeitaram e aparicaram a família – a venerada família dos Espírito Santo. Fizeram-no no antigo regime, quando o avô de Ricardo visitava amiúde Salazar, como o fizeram nos novos tempos democráticos. É certo que houve um sobressalto, com a revolução, a nacionalização e o exílio, mas mesmo nessa altura, protesta Ricardo Salgado, não lhe mudaram o nome ao banco. Agora até isso fizeram. Impensável. Impossível. Irreal.

Ricardo Salgado tem pois razão. Alguém como ele, gente como a da sua família, sabe que quando se liga para um membro do governo, esse membro do governo atende o telefona, escuta atencioso e, sobretudo, ajuda. Mas ligou ao Moedas. Depois à Maria Luís. Por fim ao Pedro. E nenhum deles estendeu a mão que salvasse o grupo. Essas coisas não acontecem em Portugal, nunca aconteceram. E se agora aconteceram foi porque alguém o quis destruir.

Ricardo Salgado só pode por isso ter razão quando protesta. Afinal ele também compra o Financial Times. Também ele leu naquele jornal, a 19 de Novembro, que, quando a troika chegou, houve quem defendesse, num pequeno almoço de economistas com os responsáveis do FMI, BCE e UE, que uma das melhores coisas que os nossos credores podiam fazer pelo país era desmantelar o grupo Espírito Santo. Inveja, só podia ser, esse mal de que Camões já falava. Por isso ele ficou tão contente quando a troika saiu e o grupo ainda por cá ficou. Mais uma vez, sobrevivera. E se depois não sobreviveu, foi mesmo porque, como leu no mesmo jornal, mas agora a 4 de Dezembro, o velha ordem perdeu o controle do país. Ora isso são coisas que não acontecem – a velha ordem nunca perde o controle de Portugal.

A razão de Ricardo Salgado é a razão da sua surpresa, da sua estupefacção. O mundo sempre fora um lugar previsível. Um banqueiro sabia o poder que tinha, e tinha muito. Com pequenas participações, mandava nas maiores empresas do país – só o Pedro Queirós Pereira, para mais com velhas ligações à família, não tinha deixado que isso também acontecesse na Semapa. Mas na PT ou na EDP durante muitos anos todos conheciam as regras do jogo. Também não era difícil lidar com a imprensa. Convidavam-se uns directores e editores para uma férias na Suíça ou um cruzeiro do iate, sem agenda para além de “conhecer melhor o grupo”, e as notícias fluíam, por regra simpáticas, às vezes laudatórias. Se fossem antipáticas, também se conheciam as regras – o grupo cortava a publicidade. Depois, se necessário, cortava também a PT. Ou mesmo a EDP. A bem dizer, ninguém cortava a publicidade: apenas se faziam outras opções. Campanhas de imprensa, ataques nos jornais? Ricardo Salgado não sabia, nunca soube, o que isso era.

E claro que Ricardo Salgado tem razão quando fala do Banco de Portugal. Piscar o olho para indicar que já não se tem confiança no banqueiro? Ninguém pisca o olho ao banqueiro. E se piscam, ele não repara. Nem sabe bem o que é um piscar de olho. Não dá por nada, não sabe de nada, não se preocupa com nada. Nem sequer encomenda pareceres sobre idoneidade a professores doutores de Coimbra. Se o Banco de Portugal não confia nele, se não lhe dá o tempo que ele pede para resolver os seus problemas, se envia cartas atrás de cartas, é porque o Banco de Portugal está a ver mal o problema. Ou então também faz parte da conspiração.

A razão também alimenta a ideia de Ricardo Salgado de que o seu grupo é, sempre foi, um “centro de racionalidade”, um centro indispensável ao desenvolvimento do país, um precioso “centro de decisão nacional” (mas com contas no Luxemburgo e na Suíça, não vá o diabo tecê-las). É certo que, à frente do “centro de racionalidade” estaria um contabilista duvidoso, e que boa parte das empresas que consumiam os recursos do seu banco não eram nem bem geridas nem tinham especial qualidade, mas o que conta aqui, o que sempre contou, o argumento que todos os governos sempre atenderam, é que eram empresas portuguesas geridas por portugueses (mesmo quando alguns dos gestores, membros da família, não fossem lá grandes gestores, mas isso só ele sabia).

Ricardo Salgado também teve razão quando argumentou que a queda do seu banco e do seu grupo colocaria “riscos sistémicos”. Então não se está mesmo a ver? O sistema da sua família ruiu como um castelo de cartas. Perdeu-se o respeito, até se perdeu o respeitinho. A Justiça teve o despautério de o deter e interrogar. Congelaram as contas a todos, um drama inimaginável: com contas congeladas, como podiam as suas irmãs receber o dinheiro dos bolos que vendem e vendiam?

Até nesta questão, a da família, Ricardo Salgado tem razão. Como todos sabem, a história de Caim e Abel é uma ficção. Uma ficção antiga, biblíca, mas mesmo assim uma ficção. As famílias sempre se deram bem. As famílias sabem que, quando se dividem, entram em colapso. As famílias não toleram ovelhas negras. O que se passou nas reuniões do conselho superior do grupo devia ter sido apenas um percalço. As dificuldades na sucessão um contratempo. Agora uma família dividida a lavar a roupa suja em público, no Parlamento, para as televisões, isso nunca aconteceu. Em Cascais essas coisas não acontecem. Nem se imaginam quando se tem olhos imaculadamente azuis.


Verdade, verdade, é que Ricardo Salgado tem razão porque continua a recusar-se a perceber que o mundo mudou e que Portugal também mudou. Mudou o mundo em 2008, com a crise do Lehman Brothers: a vida dos banqueiros nunca mais foi a mesma. Mudou Portugal com a troika e com o Pedro que não lhe deu a mão: a vida dos velhos senhores também deixou de ser intocável. No mundo e no país de Ricardo Salgado, aquele em que ele conserva toda a razão, o Banco de Portugal ter-lhe-ia dado todo o tempo do mundo, e o governo todas as garantias de que necessitasse. Uma mão haveria de limpar a outra, como tantas vezes sucedeu. Ricardo Salgado sabe que sempre foi assim e não aceita que tenha deixado de ser. Por isso ele mantém a sua razão. Não é é a nossa razão.

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