O avesso do império
SÃO JOSÉ ALMEIDA
20/12/2014 - PÚBLICO
Quem olha para os “anéis” que os
sucessivos governos portugueses têm vendido, e vê a quem eles pertencem hoje,
verifica a forte presença de grupos empresariais com origem em países não
democráticos.
“Vão-se os anéis,
ficam os dedos.” Este provérbio é muitas vezes usado na defesa das
privatizações de empresas públicas pelos sucessivos governos, desde que elas
foram permitidas pela revisão constitucional de 1989 e se transformaram no
expediente recorrente para equilibrar as contas do Estado, sempre sob a
justificação ideológica de que a sua propriedade e gestão não competem aos
Estado, mas aos privados.
É por este
argumento estafado que pode começar a questionar-se o facto de continuar a ser
esta uma forma habitual de os governos resolverem o problema da liquidez das
contas públicas – mesmo que as privatizações pouco ou nada resolvam, apenas
sirvam para disfarçar os constrangimentos financeiros do Estado. Nos últimos
anos até se chegou a privatizar sem lucro (PÚBLICO, 16/11/2014). Agora, no caso
da TAP, o argumento para a privatização é a incapacidade da gestão pública de
investir capital na renovação da frota. A verdade é que as privatizações se
tornaram um refúgio fácil sobre que poucos se interrogam.
A questão que se
coloca é a de saber qual o expediente que os governos vão encontrar para gerir
as finanças do Estado quando se acabarem os “anéis” para vender – ou seja,
quando o Estado não tiver mais empresas para serem privatizadas. O que vai
então ser alienado para a esfera da gestão privada? Os serviços públicos do
Estado social? As funções de soberania? As estruturas que asseguram a segurança
interna?
Associada a esta
questão está uma outra: por que razão os agentes políticos que têm governado o
Estado português não se questionaram nem se questionam sobre quem são os
“privados” que compram as diversas empresas públicas que têm sido privatizadas?
Esta questão vem a propósito da polémica que se gerou quando se tornou público
que a PT SGPS podia ser comprada pela empresária angolana Isabel dos Santos.
Curiosamente, a
argumentação contra esta compra coloca-se mais no plano da concorrência, isto
é, num domínio puramente mercantil, e alega o facto de Isabel dos Santos já ser
accionista da Nos, outra empresa de comunicações. Mas, além do domínio
mercantil, há também o domínio político.
Neste plano, é
legítimo e até necessário questionar se é possível que empresas estatais de uma
democracia sejam compradas, na totalidade ou em parte, por grupos económicos
cuja origem possa ser associada a sistemas de privilégio em Estados não
democráticos, cujos governos não respeitam os direitos humanos.
E aqui as dúvidas
que se colocam são sobre se Isabel dos Santos, assim como outros empresários
angolanos, beneficiaram ou não de favorecimento do poder político angolano,
consubstanciado no MPLA, na prática o partido único que governa Angola, para se
lançarem no mundo empresarial. Esta questão não se coloca apenas em relação à
PT SGPS e a Isabel dos Santos, como é evidente. Coloca-se também em relação à
entrada em Portugal de empresas chinesas, cuja base de acção e principal trunfo
no mundo dos negócios é precisamente a situação de privilégio estatal concedido
por uma ditadura comunista de partido único, o Partido Comunista da China, que
se substitui ao próprio Estado.
Quem olha para os
“anéis” que os sucessivos governos portugueses têm vendido nos últimos 25 anos,
e vê a quem eles pertencem hoje, verifica a forte presença de grupos
empresariais com origem em países não democráticos. Uma presença cujo peso não
se constata hoje apenas nas empresas privatizadas ou em sectores estratégicos,
se bem que essa presença tenha crescido exponencialmente sob a gestão política
do Governo de Pedro Passos Coelho. Assim vejamos. Os angolanos detêm
participações no BPI, no BIC, no BCP, na Galp, na Soares da Costa, na Coba, na
Viauto, na Nos, na Tobis e na Controlinveste. Os chineses possuem participações
na EDP, na REN, no BESI, na Fidelidade e na Espírito Santo Saúde.
Há ainda uma
outra perspectiva de reflexão sobre este tema que se prende com o facto de
entre aqueles que adquirem firmas nas privatizações portuguesas haver um forte
peso de grupos empresariais com origem em países que em outras épocas
estiveram, em parte ou no seu todo, integrados no que foi o império colonial
português – nomeadamente, Angola, que foi colónia portuguesa até 1975, e a
China, onde os portugueses possuíram feitorias, tendo administrado Macau até
2000. Esta perspectiva foi mesmo abordada pelo jornal espanhol El Confidencial
na peça “Portugal, la nueva colonia de Angola”.
É certo que esta
situação se impõe pela livre concorrência mercantil que impera hoje no mundo
dos negócios vivido à escala da globalização. Mas a sua constatação, que surge
como uma ironia do destino, pode ser olhada, do ponto de vista simbólico, como
uma metáfora do império às avessas.
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