O idealismo é uma coisa muito
perigosa
José Manuel
Fernandes / 29-12-2014 / OBSERVADOR
Estamos a pagar
caro, aqui e na Europa, os idealismos e utopias dos visionários. Por isso é
tempo dos humildes e determinados, até porque em tempo de mudança as velhas
bússolas já não indicam o norte.
Toda vida me
considerei um idealista – mas o passar dos anos tem feito de mim alguém muito
mais céptico. Só espero não acabar cínico, ficando apenas pelo realismo. É que
não têm faltado motivos para desesperar dos “grandes sonhos” e dos “grandes
desígnios”.
Comecemos por
Portugal. Estamos presos numa armadilha que se chama euro. Sem ele teríamos
sido ainda mais periféricos do que somos, com ele ficámos presos a regras que
limitam a nossa autodeterminação. Se o abandonarmos, o mínimo que enfrentaremos
será uma crise que fará parecer coisa de crianças a que acabámos de viver; se
não o abandonarmos, viveremos numa espécie de purgatório sem fim à vista. As
escolhas políticas e económicas são cada vez mais entre o mal maior e mal
menor, sendo que uma parte do país até já acha que a pedinchice é o nosso mais
nobre destino – tudo depende, dizem, de nos juntarmos a uma boa e
reivindicativa coligação de pedintes.
Chegámos aqui por
via de várias ilusões, de vários sonhos, de vários idealismos –, no fundo, de
uma fatal utopia. O primeiro elemento dessa fatal utopia foi a ideia de que uma
moeda forte faria dos portugueses alemães, e desta economia atrasada uma
espécie de tigre ibérico. Não fez, induziu até comportamentos contrários, como
o de nos endividarmos para consumirmos e o de protegermos a economia
não-transaccionável em prejuízo da economia exportadora.
O segundo
elemento foi a crença de que o euro seria o coroar do projecto europeu, o seu
pináculo, e que a economia do euro acabaria por impor as políticas do euro e o
federalismo do euro. Vimos no que isso deu. Vimos como isso se traduziu nas
várias troikas e em tantos azedumes.
O terceiro foi a
crença de que, após séculos de triste pobreza (ou mesmo de abjecta pobreza),
seríamos ricos para sempre (ou pelo menos bem remediados). Tratámos por isso de
consagrar na Constituição todos os direitos do mundo e de sobrecarregar o
Estado com obrigações para com todos os cidadãos, crentes que dinheiro haveria
sempre. Há muito sabemos que o dinheiro ou já falta, ou vai faltar, mas nunca
verdadeiramente aceitámos essa dura realidade. Cinco minutos de qualquer
telejornal chegam para perceber como vivemos em estado de negação.
Se saltarmos de
Portugal para a Europa, as coisas ainda ficam mais negras. Há apenas 15 anos
proclamava-se que hoje seríamos a economia mais competitiva do mundo e
aprovava-se a “Estratégia de Lisboa”. É difícil imaginar mais idealismo
retórico e maior fiasco prático. A realidade fez em fanicos “a visão” dos
líderes de então e hoje é indiscutível que a Europa, mesmo se ultrapassada a
crise, vive tempos de decadência e apagamento. A utopia de que a economia
unificada pelo euro aproximaria os povos levou-nos a impasses que ainda hoje
vivemos, com regras orçamentais a serem impostas para logo serem incumpridas, e
com uma federalização de políticas que vai a par com revoltas cada vez menos
surdas das periferias. A “vanguarda” continua a querer seguir em frente, mesmo
quando os eleitorados dão sinais de resistência ou mesmo de inquietante deriva.
Não basta uma
burocracia bem paga, um longínquo parlamento, seis meses de folia Erasmus e uma
língua franca para fazer desaparecer séculos de história e de recriminações.
Não basta forçar o andamento da bicicleta para se ganhar velocidade se, ao
mesmo tempo, a ladeira for íngreme e os pneus estiverem furados. Não basta
racionalizar as vantagens da integração europeia para fazer desaparecer as
identidades que, afinal, são o cimento das comunidades. Não basta uma
proto-constituição para fazer uma democracia, pois é no espaço das nações, onde
existe um espaço público comum, que estas podem realmente tomar corpo.
Nunca o sonho
europeu, alimentado por tantos meritórios idealismos e disparatadas utopias,
esteve tão perto do pesadelo. Por todo o lado o nacionalismo zangado está
tornar-se o refúgio da desilusão e do desencanto. O populismo ocupou o lugar da
racionalidade e do compromisso.
O problema não é
das lideranças e da falta de supostos “homens de Estado” visionários – o
problema é do legado irrealista que os visionários nos deixaram.
Se saltarmos da
Europa para mundo, vivemos um momento quase perfeito de desilusão idealista.
Durante décadas eles, os idealistas, os puristas, os perfeitos, combateram o
mundo bipolar da Guerra Fria. Quando o Ocidente triunfou nessa disputa em que
mil vozes anteciparam a sua derrota, passaram a condenar o “mundo unipolar”,
onde bastava uma voz erguer-se para as coisas acontecerem. Agora, que a
potência meteu as unhas para dentro, perceberam o vazio – é de resto quase
cândida, na sua sinceridade, a confissão de António Guterres na sua entrevista
ao Público.
Sem uma potência
hegemónica, sem o odiado “grande satã” (ou com este encolhido e temeroso, como
é a América de Obama), de repente a desordem aumentou, a infelicidade e a
insegurança aumentaram, o número de refugiados nunca foi tão grande, os sonhos
nunca foram tão ausentes, as Nações unidas nunca foram tão inúteis. Basta
pensar nessa maior de todas as ilusões que foi a “primavera árabe”.
Recuperemos pois
algum realismo para evitarmos a submissão total ao cinismo – ou, então, a
impotência quase criminosa dos idealismos bem-pensantes, dessa trupe que vai
dos pacifistas aos multilateralistas.
Em Portugal não
há volta a dar: temos de procurar viver com os nossos próprios meios,
adaptarmos o nosso sistema económico e político a uma era que vai ser de menos
expectativas e mais esforço. Pedirmos a outros para resolverem os nossos
problemas (e as nossas dívidas) não é solução, antes pode tornar ainda mais
difícil a outra solução, a europeia, pois essa terá de permitir alguma
renacionalização de políticas.
O caminho das
grandes civilizações não foi sempre glorioso. Houve momentos sombrios e houve
tempos de decadência. Estamos na Europa, talvez no mundo, seguramente em
Portugal, num desses momentos de mudança em que as tendências que vinham de
trás se invertem e é necessário procurar outros caminhos. São tempos perigosos,
pois perdem-se as referências e as fórmulas antigas deixam de funcionar
(reparem, por exemplo, como os “estímulos” à economia são quase inócuos, virtualmente
inúteis, à japonesa).
E são tempos que
recomendam serenidade e prudência. Tempos em que devemos desconfiar (ainda
mais) dos exaltados e ter a humildade de ser, antes do mais, realistas. Não é
(ainda) necessário prometer apenas sangue, suor e lágrimas, mas para evitar
chegar a esse ponto é importante fugir dos amanhãs que cantam e das soluções
fáceis, ter até cuidado com as “grandes visões” e as “grandes expectativas”.
Ter os pés na terra é cada vez mais uma grande virtude.
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