Teatro para evitar que mais uma
loja centenária da Baixa se transforme num hotel
SARA OTTO COELHO
/ 13/12/2014 / OBSERVADOR
Há 100 anos que o número 223 da
Rua da Prata é ocupado por uma drogaria. O Teatro das Compras atuou lá para
evitar que a loja onde se faziam perfumes dê lugar a mais um hotel. Petição já
circula.
O Teatro das
Compras, que há seis anos leva encenações às lojas tradicionais no âmbito das
Festas de Lisboa, regressou excecionalmente este sábado à drogaria S. Pereira
Leão, na Baixa lisboeta. O objetivo é o de impedir que as portas da drogaria
centenária se fechem a 31 de janeiro para ali nascer um hotel.
Perfumes avulso,
sabonetes, ambientadores, cremes, detergentes, toucas, maquilhagem. Muitas
promoções para escoar um stock que, no dia 31 de janeiro de 2015, pode não ter
local para ser vendido. Em tarde chuvosa, entre as 16h00 e as 17h00 só uma
turista espanhola entrou no número 223 da Rua da Prata, à procura de uma pasta
de dentes. Ali bem perto, no número 181, o amplo espaço da loja Tiger era
pequeno para a multidão que procurava a prenda de Natal ideal.
“Contra a crise,
a drogaria S. Pereira Leão arranja sempre solução!“, disse uma das atrizes do
Teatro das Compras, a meio da performance onde se imitava o passado da drogaria
centenária. Durante 20 minutos, os poucos presentes puderam reviver através do
teatro as memórias das verdadeiras funcionárias da S. Pereira Leão que ali
trabalham há quase 50 anos. Tempos em que as “madames” se sentavam na drogaria
e mandavam buscar o pó de arroz, o creme e o batom. Vestidas à moda antiga, as
atrizes recordavam a Baixa dos armazéns Grandella, dos muitos fatos nas montras.
“Agora mudou tudo, é só hotéis”, comentavam.
Fora da
encenação, as três funcionárias e os três sócios aguardam por uma solução que
teima em não chegar. Há seis meses, os sócios receberam uma carta que dava
conta do novo projeto do proprietário do edifício: ceder o prédio a um novo
hotel. Ali já só funciona a drogaria, uma vez que o prédio necessita de obras
urgentes. Mas só deverão chegar depois desta fechar as portas, para que o hotel
se possa ali instalar. Depois das obras, é certo que a renda irá subir.
“Os herdeiros têm
deixado isto estar aberto, ao nosso cuidado, embora não esteja a dar muito
lucro porque o negócio está todo mau. Mas as minhas colegas ainda precisam de
mais alguns anos para a reforma e eles têm deixado isto aberto”, contou ao
Observador Fernanda Silva, funcionária gerente da drogaria, cujos proprietários
são os filhos dos primeiros donos, já falecidos. Das três funcionárias, só
Fernanda Silva vai para a reforma. Olhando para a conjuntura, as outras duas
trabalhadoras sabem o que as espera. Não têm ainda idade para a reforma, mas
dizem que ninguém lhes vai dar trabalho.
A primeira
dificuldade chegou há um ano, com “uma atualização de renda de 300 para 800
euros”, feito pelo senhorio juntamente com um contrato de cinco anos. “Só que
cerca de meio ano depois disse-nos que tínhamos de sair a 31 de janeiro de 2015
porque ia fazer aqui um hotel”, disse. De acordo com Fernanda Silva, a sócia
gerente anda a tentar negociar, através de advogados. “Para nos dar mais tempo,
pelo menos para vender as coisas”, disse. Quando lhes foi dado o prazo, os
sócios quiseram ver se a decisão era reversível. Agora o prazo está a
aproximar-se e, mesmo com promoções, as pessoas “com a crise que está só levam
o que precisam”.
Não sabemos se dá
para ir para outro sítio, porque isto dava para manter. Mas para arranjar um
espaço novo pedem-nos para cima de 2.000 euros [por mês]. Assim é difícil
manter um negócio destes”, contou.
O espaço
centenário já foi a Antiga Casa Alvarez. Em 1964, nascia ali a S. Pereira Leão
pela mão de três sócios. O negócio, onde se faziam perfumes, aromas e
essências, comemorou este ano meio século. É também há 50 anos que Fernanda
Silva trabalha ali, juntamente com mais duas funcionárias que reúnem toda a
sabedoria sobre os produtos que vendem.
Contactado pelo
Observador, o proprietário disse não querer falar, uma vez que o assunto está a
ser conduzido pelos advogados. Questionado sobre a possibilidade de a drogaria
poder continuar no mesmo local, o proprietário do edifício disse apenas nunca
ter chegado “a pensar nisso”, acrescentando que os sócios não tentaram
continuar ali.
Petição para “uma
cidade das pessoas”
No Portugal da
crise, da nova lei das rendas e do ‘boom’ turístico, a história tem-se repetido.
A charcutaria Nova Açoreana, com 120 anos de história, fechou em 2011. No
número 116 da Rua da Prata nasceu no seu lugar um hotel. Os Armazéns Ramos
também fecharam no ano passado. No seu lugar, mais um hotel. A Ourivesaria
Aliança, na Rua Garrett, é agora uma loja da marca catalã Tous. “Estão a
desmantelar e a descaracterizar a Baixa”, acusa Fernanda Silva.
Foi Miguel
Honrado, enquanto presidente da EGEAC, que criou o Teatro das Compras. “Para
chamar a atenção para estas lojas tradicionais”, disse, este sábado. Miguel
Honrado esteve presente a título pessoal, para “defender o comércio
tradicional, que é uma das características distintivas da Baixa lisboeta”,
disse ao Observador. “Os hotéis são bem-vindos, mas tem de haver aqui um
equilíbrio entre a memória da Baixa e o seu património, e as coisas novas que
vão aparecendo“. O presidente da empresa municipal que gere a animação cultural
lisboeta entende que “os tempos mudaram” e que a rentabilização “é importante”,
mas defende que os projetos de investimento têm de se relacionar com os
negócios locais mais característicos, que “devem ter direito à sua existência”.
Desde o primeiro
ano que o Teatro das Compras trabalha com a drogaria S. Pereira Leão. O
projeto, liderado pelo italiano Giacomo Scalisi, só faz sentido se restarem
lojas tradicionais onde atuar. Na sua visão “de estrangeiro”, Lisboa é “uma
cidade que não cuida de si própria”, disse.
“Fashion,
gourmet, vintage. Tudo palavras estrangeiras, por acaso. Depois os turistas vêm
visitar o quê? Não se podem fechar estas lojas para fazer lojas vintage. Isto é
o verdadeiro vintage!”, disse Scalisi.
O Teatro das
Compras lançou uma petição online “contra o encerramento da S.Drogaria Pereira
& Leão, ou a sua transformação num pastiche vintage“. A defesa da Drogaria
é um símbolo de um objetivo maior: evitar que Lisboa se torne uma cidade
“desumanizada, onde a história e a vida das pessoas vale tão pouco face ao
lucro do turismo massificado e da especulação imobiliária”. Admitem que a
petição pode não conseguir mais do que divulgação, mas acreditam que o poder
público – especialmente a Câmara Municipal de Lisboa – terá de tomar uma
atitude se os protestos se fizerem ouvir.
“Recusamos uma
Baixa de turistas e gente rica – com 96 hotéis mas sem história, sem o pequeno
comércio local de qualidade, especifico, que sempre a caracterizou”, pode
ler-se na petição.
Manifesto Para uma Cidade das
Pessoas Contra o encerramento da Drogaria S.Pereira & Leão, ou a sua
transformação num pastiche vintage
Para: Joana
Craveiro, Giacomo Scalisi, Catarina Requeijo, João de Brito, Luís Godinho e o
projeto Teatro das Compras
Manifesto Para
uma Cidade das Pessoas
Contra o
encerramento da Drogaria S.Pereira & Leão, ou a sua transformação num
pastiche vintage
Na iminência do
encerramento de mais uma loja centenária na Baixa de Lisboa, fruto da
especulação imobiliária e da gula turística de construir mais um hotel e
aumentando a renda para níveis não comportáveis pelos pequenos comerciantes;
Na iminência de
um despedimento de três funcionárias, que são elas próprias uma memória viva da
Baixa;
Na iminência de
Lisboa deixar de ser uma cidade das pessoas para passar a ser uma cidade de
lucro fácil à conta de terceiros que aqui vêm deixar o seu dinheiro – mas que,
na verdade, não a habitam – a iminência de uma cidade desenraizada, alienada,
sem comunidade residente que a habite diariamente e que com ela interaja
construindo relações humanas de vizinhança e de proximidade;
Na iminência de
tudo isto, vimos dizer aqui hoje que recusamos uma cidade assim – desumanizada,
onde a história e a vida das pessoas vale tão pouco – face ao lucro do turismo
massificado e da especulação imobiliária – em que as frias ordens de fecho e
despedimento surgem sem aviso e sem compaixão, deixando os que as recebem em
choque e numa sensação de paralisia e de impotência face aos grandes poderes.
Recusamos, ainda,
que sejam estes grandes poderes a governar a cidade, expulsando assim os que
nela trabalham há mais de 40 anos, e a fechar lugares com história, que fizeram
da Baixa lisboeta aquilo que ela foi, que queremos que continue a ser: “Um
píncaro, só comparável aos Himalaias!”
Recusamos uma
Baixa de turistas e gente rica – com 96 hotéis mas sem história, sem o pequeno
comércio local de qualidade, especifico, que sempre a caracterizou.
Recusamos que
vandalizem assim as nossas memórias, o nosso património afectivo, e que, de
forma irreversível, destruam um pouco de quem somos, levando por arrasto a vida
das pessoas que aqui trabalham.
Recusamos e
protestamos: A DROGARIA S.PEREIRA & LEÃO NÃO PODE FECHAR! Pois só aqui
encontramos os segredos dos perfumes do patrão Leão; pois só aqui há o pó de
arroz das nossas avós, os cremes das nossas mães; pois só aqui há quem nos
explique como tudo isso se fazia, e nos aconselhe com um saber que é quase
centenário.
A memória
constitui-nos como pessoas, torna-nos humanos. Estamos aqui hoje a lutar pela
memória da cidade.
A Drogaria
Pereira Leão não precisa de ser transformada em loja vintage porque ela é o
vintage, original, real! A Drogaria S. Pereira & Leão não é uma imitação de
nada – é assim!
O projecto Teatro
das Compras começou na Drogaria Pereira Leão, que é a sua loja-símbolo. Em seis
anos de projecto, muitas das lojas onde foram feitos espectáculos
desapareceram, consumidas pela voragem da crise, da especulação, do turismo, da
falta de memória.
Vamos afirmar em
conjunto, hoje outra vez, que não queremos que mais esta loja encerre, que não
queremos o fim de mais este repositório de memórias da Baixa Lisboeta.
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