Um número, uma
história
Os long days dos 1.211
Os 1.211 portugueses que se inscreveram na Ordem dos Enfermeiros no Reino
Unido em 2013 representam um número cinco vezes mais alto do que há quatro
anos. Os enfermeiros saem de Portugal já com vaga assegurada e algumas vezes
com o voo e o primeiro mês de alojamento. João Pereira é um deles. Voltar a
Portugal? Só num "cenário utópico". Durante os próximos 10 dias, o Expresso
vai contar a história de um número -
hoje é 1.211.
Raquel
Albuquerque |
8:00 Segunda
feira, 22 de dezembro de 2014 / EXPRESSO
Há dez
enfermeiros portugueses a trabalhar na unidade de cuidados intensivos do
Southampton General Hospital, na costa sul de Inglaterra. João Pereira é um
deles. Há quatro anos seguiu para o Reino Unido, depois de ter desistido de
esperar por uma oportunidade de trabalho como enfermeiro em Portugal.
O mesmo caminho
tem sido percorrido por muitos outros portugueses. Só em 2013, houve 1.211
portugueses a inscreverem-se na Ordem dos Enfermeiros do Reino Unido para
poderem trabalhar no país. Esse número é cinco vezes mais alto do que o que se
registava em 2010. Mais alto ainda é em comparação com 2005, quando se
inscreveram 15.
"Não me
arrependo um segundo da minha decisão", conta João Pereira, 27 anos. "Curiosamente,
quando recebi esta oferta de trabalho, tive duas propostas em Portugal, mas
decidi sair na mesma porque, na minha perspetiva, as condições só iriam piorar
no país." Se ficasse em Portugal, seria com um contrato temporário e o
risco de não ser renovado teve peso na decisão. "Havia várias agências de
recrutamento a fazer ofertas, já tinha feedback de colegas que estavam cá a
trabalhar, então sabia que as condições eram melhores."
As agências de
recrutamento vêm buscar enfermeiros a Portugal e essa é uma das razões para o
aumento desse número, aponta Cláudia Pereira, investigadora do CIES-IUL (Centro
de Investigação e Estudos de Sociologia) e do Observatório da Emigração. "Nos
últimos anos, o Reino Unido tem colocado obstáculos à entrada de enfermeiros de
nacionalidades fora da União Europeia. As agências deixaram de poder contratar
em países como a Índia ou as Filipinas", explica a investigadora, que
analisou a emigração de portugueses para o Reino Unido, estudando em particular
o caso dos enfermeiros. O obstáculo criado pelo Governo britânico à entrada de
cidadãos de outros países "cruza-se com a falta de emprego em
Portugal", resultando no facto de os portugueses serem atualmente, e desde
2012, a
segunda nacionalidade em maior número, a seguir aos espanhóis, entre os
enfermeiros estrangeiros a chegarem aos hospitais britânicos.
"Cerca de
metade dos enfermeiros que pediram equivalência [à Ordem dos Enfermeiros em
Portugal] vão para o Reino Unido", diz Cláudia Pereira, que lembra também
que este é o principal país de destino da emigração dos portugueses.
O que distingue
os enfermeiros de outros portugueses qualificados no Reino Unido é partirem com
um "vaga assegurada e, em muitos casos, com o voo e o alojamento do
primeiro mês pagos". Cláudia Pereira entrevistou vários enfermeiros, antes
e depois de deixarem Portugal e conclui existirem alguns casos de pessoas mais
velhas que optam pela emigração por ter a carreira congelada ou por falta de
opção de mobilidade, e que chegam ao Reino Unido já com a família. Apesar
desses casos, a maioria é composta por jovens adultos em idade ativa, entre os
23 e os 30 anos, solteiros, sem filhos, a entrar no primeiro emprego, numa
"fase do ciclo de vida em que é mais fácil tomar esta decisão".
"Se uma
pessoa estiver disponível ou interessada, poderá chegar além das 2000 libras
por mês"
É nesse perfil
que se encaixa João, reconhecendo várias vantagens em estar no Reino Unido. "O
salário cá é maior, facilmente tiramos o dobro do que faríamos no nosso país e
não temos de recorrer a um segundo emprego para nos sustentar
financeiramente." Faz três a quatro turnos por semana, de 12 horas e meia
cada, aos quais chamam "long days". A carga horária é de 37 horas e
meia por semana. Sem experiência profissional anterior, João começou por
receber 1500 libras (1900 euros), aos quais juntava o pagamento extra das
noites, fins de semana e feriados. Anualmente,
há um incremento no ordenado e a possibilidade de subir de posição, incluindo
para cargos de chefia, "algo que em Portugal seria impossível em alguém
que seja tão jovem."
Ainda que as
rendas, os transportes, o tabaco ou os restaurantes sejam mais caros, João diz
ser "surpreendente" que as compras para a casa ou o vestuário sejam
mais baratos do que em Portugal. Quando chegou ao Reino Unido, começou por
partilhar uma casa com mais três enfermeiros, todos portugueses, recrutados na
mesma altura. Não se conheciam, mas decidiram juntar-se. "Após um dia de
trabalho, era bom chegar a casa, falar a nossa língua e trocar experiências com
pessoas que partilham a nossa perspetiva." Viver sozinho sai mais caro,
"mas as rendas não deixam de ser comportáveis face ao nosso salário -
apenas não sobra tanto no final do mês". Hoje vive com a namorada e diz
que, em geral, a vida "compensa bastante, financeiramente".
"Só voltaria
mesmo num cenário utópico"
O contacto com
portugueses é diário, e não é só no hospital. "Onde quer que vá, parece
que há um português", diz João. Para a investigadora do CIES, esta vaga de
emigração para o Reino Unido, que teve um impulso em 2010, tem características
diferentes dos emigrantes portugueses das décadas de 1980 e 1990. "Nessa
altura, também foram emigrantes qualificados para o Reino Unido. Mas a maior
parte eram portugueses que trabalhavam nas limpezas, restaurantes e
pastelarias. Os portugueses que trabalham com portugueses, com menos
qualificação, tendem a viver mais próximos, mais concentrados." Hoje, os
que partem para o Reino Unido preferem ficar em Londres e vivem
"dispersos, não estão concentrados e optam por ter uma casa perto do
trabalho".
João sente que o
número de portugueses, e especialmente os enfermeiros, tem aumentado
"exponencialmente" nos últimos anos. "Basicamente, eles gostam
dos enfermeiros portugueses, porque já temos um grande conhecimento académico e
prático em relação aos próprios enfermeiros ingleses, cujo curso é
maioritariamente teórico."
E se pensa em
voltar? "Nem por isso. Gosto do meu país, mas como destino de férias,
agora. Só voltaria mesmo num cenário utópico, onde houvesse condições
superiores às que tenho aqui", responde, confessando sentir que foi
desvalorizado em Portugal. "Penso que toda a minha geração tem sido
negligenciada, pois apostam na nossa formação e não temos outra alternativa
senão virar-nos para fora. Outros países, como é o caso do Reino Unido, é que
estão a beneficiar grandemente de mão de obra especializada, como é o nosso
caso.
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