domingo, 21 de dezembro de 2014

“Vejo hoje pessoas mais confiantes no sector” Daniel Bessa O director-geral da Cotec acompanha há décadas a indústria têxtil e do vestuário portuguesa. Na sua opinião, a transformação do sector é consequência da “obrigação” de mudar imposta “pela luta pela sobrevivência”


“Vejo hoje pessoas mais confiantes no sector”
Daniel Bessa O director-geral da Cotec acompanha há décadas a indústria têxtil e do vestuário portuguesa. Na sua opinião, a transformação do sector é consequência da “obrigação” de mudar imposta “pela luta pela sobrevivência”

Se Portugal tivesse insistido numa indústria têxtil e de vestuário de trabalho intensivo, de baixo valor, muito provavelmente já não teria uma única empresa nem um único emprego têxtil
Aquilo que alguns designam de sucesso, ou de vitória, surge-me sempre como uma obrigação imposta pela luta pela sobrevivência

Entrevista Manuel Carvalho / 21-12-2014 / PÚBLICO

Aindústria têxtil e do vestuário nacional fez o que tinha a fazer para atravessar as crises da reorganização do sector à escala mundial e a crise da economia no final da década passada. Abandonou o modelo de mãode- obra intensiva e de baixo valor incorporado e apostou na qualificação, na ciência e tecnologia e na inovação. Numa entrevista concedida por email, o economista Daniel Bessa, director- geral da Cotec, reconhece que há hoje na indústria têxtil e do vestuário portuguesa uma nova atitude e um discurso mais afirmativo. No terceiro trimestre, as exportações cresceram 9% e este será muito provavelmente o primeiro dos últimos 25 anos em que a têxtil não destruiu emprego. Podemos afirmar que o sector já bateu no fundo e começa a recuperar de forma sustentada? Depois de um período de grande retracção (motivado, primeiro, pela reorganização do sector têxtil e vestuário à escala mundial, com perdas significativas da produção europeia, e, depois, pela crise económica de finais de década passada), a indústria do têxtil e vestuário portuguesa tem vindo a recuperar de forma considerável. O crescimento das exportações é mais uma evidência desse caminho de recuperação — que, como é natural, se tem feito sentir mais nos valores da produção, e das exportações, do que no emprego, a partir do momento em que — e bem — o sector evoluiu num sentido de produção de maior qualidade, de maior valor por unidade produzida, com consequente aumento da produtividade. A redução do número de trabalhadores e do número de empresas e o recuo do peso do sector têxtil no conjunto das exportações nacionais foram drásticos. Porquê? Tinha mesmo de ser assim? Se Portugal tivesse insistido numa indústria do têxtil e vestuário de trabalho intensivo, de baixo valor, muito provavelmente já não teria uma única empresa têxtil nem um único emprego têxtil. Seguimos a via que tínhamos de seguir, a única de facto ao nosso alcance, tendo resultado daí a perda de um elevado número de empresas e de um número muito elevado de postos de trabalho. A alternativa seria muito pior. Podemos de alguma forma dizer que, após esta “depuração” de 25 anos, o sector que resistiu é competitivo globalmente ou a reestruturação ainda não acabou? Acredito que, concluído este processo de reestruturação (ou já numa fase muito avançada), temos hoje uma indústria do têxtil e vestuário muito mais robusta, capaz de competir com êxito no mercado global. Um processo desta natureza nunca se encontra concluído, mas acredito que, nesta fase, o sector se encontra depurado de quase tudo (empresas, emprego, produtos, modelos de negócio) que não tinha condições de sobrevivência nas novas condições de funcionamento do sector, à escala global. O que mudou na estratégia das empresas do têxtil e vestuário portuguesas? Foi a gestão, o produto, a aposta na incorporação de inovação e de ciência? Na estratégia das empresas, mudou tudo. Mudou a gestão. Mudaram os produtos, muito mais intensivos em ciência e em tecnologia, uns, e muito mais intensivos em moda e design, outros. Mudaram as pessoas, sobretudo as que têm por obrigação conduzir as empresas aos mais elevados níveis de responsabilidade. Mudou a atitude: vejo hoje pessoas mais confiantes, mesmo sabendo que se encontram confrontadas com um desafio difícil, e em que podem soçobrar, onde antes via pessoas que se queixavam de tudo e mais alguma coisa, derrotadas ab initio. Estamos perante um caso de sucesso na articulação entre o tecido empresarial e o sistema científico e tecnológico? Há, na moderna indústria do têxtil e vestuário portuguesa, muito de tecnológico; e, sendo assim, muito de relação com o sistema científico e, em termos mais amplos, de criação de conhecimento. Mas há também muito de design e de estilismo. E, no que se refere à incorporação de tecnologia (novos produtos, novos processos, novos materiais, novos equipamentos), é tão importante a relação com os centros do saber como a relação com os fornecedores.
Por último: nunca falo em sucesso, muito menos me sentindo impelido a celebrá-lo (nas empresas, na política, em tudo na vida); aquilo que alguns
designam de sucesso, ou de vitória, surge-me sempre como uma obrigação imposta pela luta pela sobrevivência, à luz da qual não tenho o direito de nenhuma celebração (excepto a consciência do dever cumprido), muito menos o direito a qualquer tipo de “descanso” — na certeza de que, com este, se iniciará o caminho para a derrota, por vezes “ao virar da esquina”. Por que razão a têxtil portuguesa não consegue dominar toda a cadeia de valor, chegando às marcas próprias, como o fez, por exemplo, o calçado? Essa é “uma velha questão”, em que tenho uma opinião cada vez mais própria. Subir na cadeia de valor, em tecnologia, em design, em qualidade, em sofisticação de todos os aspectos da operação, é uma coisa; dominar toda a cadeia de valor, chegando ao consumidor final, por maioria de razão num sector tão complexo como a indústria do têxtil e vestuário de grande consumo, é outra coisa, completamente diferente. Exige competências que não temos, dinheiro que não temos, um sentido do risco e mesmo do longo prazo que receio que não tenhamos.
Acredito que Portugal (leia-se, os empresários e as empresas portuguesas) poderá chegar a ser um “campeão do b2b” [ business
to business, ou seja, um modelo de negócio em que quem produz vende a empresas], mas não acredito que possamos ganhar a guerra do “b2c” [neste modelo, as empresas vendem directamente aos consumidores] — com excepções, que sempre haverá, para confirmarem a regra.
Mesmo no caso do calçado, que se me afigura um negócio de escala mais contida, são muito poucas as empresas que dominam toda a cadeia de valor, chegando ao consumidor final em lojas próprias; e não faltam exemplos de empresas que perderam na distribuição, e no retalho, por vezes nas ruas de maior glamour das grandes capitais europeias, tudo o que tinham conseguido ganhar nas suas unidades de produção industrial, algures em Portugal. Tendo em consideração os três cenários previstos no plano estratégico do sector têxtil para o horizonte de 2020 (ouro, prata e chumbo), em qual mais acredita? Porquê? Gostaria de atingir os números do cenário de ouro (5000 empresas, 100 mil trabalhadores, 6,5 mil milhões de euros de facturação e cinco mil milhões de euros de exportação), mas não acredito na componente de “b2c” em que se encontra suportado.
Apostaria mais, por isso, na intensificação tecnológica ao serviço de um “b2b” cada vez mais qualificado, e cada vez mais sofisticado, e na intensificação em design e em estilismo, mesmo que para servir em regime de
private label [produção das marcas dos compradores].


É isto, e apenas isto, que me separa da intelligentsia que hoje suporta a actuação da indústria do têxtil e vestuário portuguesa, nomeadamente Paulo Vaz [presidente da ATP-Associação do Têxtil e Vestuário de Portugal], com quem tenho tido o gosto de trabalhar, durante mais de vinte anos, e por quem tenho o maior respeito e a maior admiração.

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