A culpa com Salgado não morre
solteira
DIRECÇÃO EDITORIAL
09/12/2014 - PÚBLICO
Ricardo Salgado ensaiou uma
narrativa onde todos saem mal na fotografia. Menos ele.
"O leopardo
quando morre deixa a sua pele e um homem quando morre deixa a sua
reputação". Foi assim, citando um provérbio chinês, que Ricardo Salgado
arrancou a sua audição esta terça-feira na comissão de inquérito ao caso BES. Salgado
construiu e montou uma narrativa para defender a sua reputação, e não hesitou
em tentar arrasar a reputação de outros intervenientes no processo, como é o
caso do Banco de Portugal. Para o anterior presidente do BES o colapso da instituição
aconteceu por culpa da crise, da troika, de Carlos Costa, do contabilista, de
Álvaro Sobrinho, do Governo, etc…
A lista dos
culpados é interminável. E nesta lista não consta o nome de Ricardo Salgado. Nem
um acto de gestão menos conseguido, nenhuma decisão errada, nenhum balanço ou
balancete trocado, nenhum passivo ocultado, nenhuma contabilidade criativa,
nenhuma conivência. Ricardo Salgado, segundo Salgado, é vítima de um
contabilista no Luxemburgo que terá manipulado as contas da holding ES International.
Salgado, segundo o próprio, nunca deu instruções “a ninguém para ocultar
passivos do grupo". E o contabilista, diz Salgado, até já “assumiu
totalmente a responsabilidade dos seus actos". O Bloco colocou bem a
questão: Ricardo Salgado que era o Dono Disto Tudo passou a ser a Vítima Disto
Tudo.
Para o
ex-presidente do banco, o “BES não faliu. O BES foi forçado a desaparecer”. E
aqui, segundo a narrativa, entra o Banco de Portugal e o Governo. O Governo de
Passos Coelho que não acudiu ao banco, como François Hollande acudiu à Peugeot.
E o banco nem sequer precisava de ajuda pública; apenas de um crédito da CGD
“em condições normais”. Carlos Costa também não colaborou: "A única coisa
que pedimos ao Banco de Portugal foi tempo e tempo foi algo que não nos foi
dado".
A propósito do
Banco de Portugal, a audição desta terça-feira de Ricardo Salgado vem dar razão
aos que defendiam que os responsáveis pela gestão do banco deveriam ter sido
ouvidos antes dos supervisores. Ao dizer, um sem-número de vezes, que bastaria
que Carlos Costa “fizesse um sinal para que me tivesse retirado", Salgado
vem dar corpo à tese daqueles que defendem que o regulador pouco fez para
afastá-lo da liderança de forma atempada. E Ricardo Salgado vai mais longe,
sugerindo que Carlos Costa estava disposto a aceitá-lo como presidente do
futuro Conselho Estratégico, um órgão social que a certa altura se chegou a
pensar criar no banco para “arrumar” os membros da família Espírito Santo. Perante
estas afirmações é incontornável a necessidade de os deputados terem de chamar
novamente Carlos Costa à comissão para esclarecer a questão da idoneidade (ou
falta dela).
As explicações de
Salgado sobre o colapso do banco em Angola e sobre as actividades menos claras
da Eurofin pouco acrescentaram. O antigo presidente do banco diz que “ninguém
se apropriou de um tostão”, mas a verdade é que continuam muitos tostões por
explicar nesta história. E é necessário explicar tudo, seja nesta comissão,
seja noutras instâncias judiciais.
“O dono disto tudo passa a
responsável disto tudo ou vítima disto tudo”?
CRISTINA FERREIRA
, PAULO PENA e PEDRO CRISÓSTOMO 10/12/2014 - PÚBLICO
Um banco falido, uma família
dividida, repercussões internacionais, dilemas políticos. O dia em que Salgado
e Ricciardi foram ouvidos pelos deputados foi longo. Mais de 16 horas seguidas
de dialecto “financês” e uma questão: por que faliu o BES e o seu grupo?
A comparação foi
usada por Ricardo Salgado. E é sedutora. Tal como Dick Fuld, o CEO do banco de
investimentos norte-americano Lehman Brothers, em 2008, Salgado foi chamado
para se explicar perante os eleitos do povo. Não tinha, ao contrário do
banqueiro norte-americano, nenhuma manifestação à sua espera. Apenas uma enorme
audiência, dentro e fora da sala 6,
a última do corredor das comissões parlamentares.
Salgado entrou no
Parlamento por um acesso reservado e na sala usou a porta secundária, que
costuma ser de uso restrito para os deputados. Desde as 8h, uma hora antes da
audição, já a azáfama se instalara no Parlamento. Não só com os mais de 50
jornalistas, repórteres fotográficos e de imagem que lotaram as inéditas três
filas de cadeiras no fundo da sala, minutos depois dessa hora madrugadora. Mas
a própria segurança do Parlamento dava sinais pouco comuns de movimento. Quando
Salgado circula nos corredores, ninguém (excepto os deputados), pode circular.
Tudo isto
concorre para dar a esta audição uma aura de acontecimento histórico. O poder
económico submete-se ao escrutínio do poder político, ainda que os factos digam
respeito ao passado, e o poder seja, hoje, mais simbólico que real.
Sabendo disto,
Salgado deixou uma frase: “Para mim, ‘dono disto tudo’ é o povo português e os
senhores deputados são os representantes do povo.” A expressão, que terá
começado por ser uma alcunha simpática, posta por zelosos admiradores, acabou
por perseguir Salgado. E por ser glosada de várias formas: “responsável disto
tudo”, “vítima disto tudo”. Isto tudo, o país.
Mas foi preciso
esperar oito horas para que a expressão surgisse, pela voz da deputada Mariana
Mortágua, do BE. Salgado estava preparado para o embate. “Essa classificação de
‘dono disto tudo’ é irrisória.”
O ex-presidente
do BES, funções que exerceu durante mais de 22 anos, começou por avisar que
estava ali para dar a sua versão dos factos. “Durante semanas e meses a fio, a
minha família e eu próprio fomos julgados sumariamente na opinião pública. Tudo
histórias totalmente falsas, mas que acabaram por ocultar a verdade dos
factos?” Ainda assim, o ex-banqueiro diz, que se “remeteu ao silêncio” e esteve
nos últimos meses “a trabalhar para defender a dignidade e a honra” da família
e de si próprio. Uma das frases que trazia escrita, na sua intervenção inicial
de mais de uma hora, para sublinhar a ideia, cita “um provérbio chinês”: “O
leopardo quando morre deixa a sua pele e um homem quando morre deixa a sua
reputação.”
A sua
“interpretação” do que aconteceu ao GES e ao BES mostra as bases da sua defesa:
a falência do GES e do BES foi ditada pela crise financeira internacional;
houve uma intenção clara por parte das autoridades [Banco de Portugal (BdP) e
Governo] de “liquidar o BES”.
Por explicar,
ficaram outras questões, como o passivo de 6000 milhões da ESI, apurado em
Novembro de 2013 (numa inspecção do BdP) que Salgado dizia ignorar apesar de
ser administrador daquela holding. Cecilia Meireles, do CDS, registou: “Esta é
a parte que não consigo de todo entender: como é que a holding de topo não era
auditada, não tinha revisor oficial de contas, e porque é que ninguém se
questionou sobre a ESI...”
O BdP foi um dos
grandes alvos da audição. “Ouvi com surpresa as intervenções do senhor
governador a dizer que tomou várias iniciativas para que deixasse a governação
do BES”, afirmou Salgado. O ex-banqueiro garante: “O senhor governador nunca me
disse [em Junho de 2014] que eu devia sair, mas que toda a família teria de
deixar as estruturas do BES. Se o senhor governador me tivesse dito para eu
sair, saía na hora. Mas na hora.” Sobre a declaração de Carlos Costa, nesta
mesma comissão, sobre um “braço-de-ferro” entre o BdP e Salgado respondeu: “Se
houve um braço-de-ferro com o governador do Banco de Portugal eu não senti.” O
deputado Miguel Tiago, do PCP, que o interpelava, reagiu: “Tal é a força do
Governador.”
Governador refuta
Carlos Costa
estava longe da sala 6, mas não deixou de reagir ao que lá se disse. Logo que
acabou a audição de Salgado, às 19h14, o governador enviou uma carta à comissão
para “refutar veementemente” algumas das afirmações que lhe eram dirigidas.
Salgado salientou também que no final de 2012 foi por sua “livre iniciativa ao
BdP” falar da questão da idoneidade [na sequência da regularização por três
vezes da sua declaração fiscal e da alegada comissão de 14 milhões de euros que
recebeu do cliente José Guilherme], e que nunca mais o tema voltou a ser
referido. Carlos Abreu Amorim, do PSD, foi o primeiro a intervir. E logo para
acusar Salgado de “desonestidade intelectual”. A frase daria o tom para uma
escalada, mas Salgado usou toda a sua fleuma, elogiando antes o “brilhantismo”
do deputado. O duelo prosseguiria na segunda ronda, quando Amorim acusou o
ex-banqueiro de “compor uma narrativa alindada”. Salgado refutou: “Se tivesse
sido levantada a questão da minha idoneidade, eu tinha imediatamente pedido a
demissão.”
Uma das
“narrativas” de Salgado que Carlos Costa contesta é esta: “Quando em fins de
Junho perguntei ao senhor governador se podia indicar o Amílcar [Morais Pires,
ex-CFO do BES]” para o substituir na liderança do BES, Salgado conta que Carlos
Costa respondeu “que precisava de dois dias para pensar”: “Depois telefonou-me
a dizer que ‘será quem o senhor presidente entender’”. Um dado contrariado
pelas cartas e emails ontem divulgados por Carlos Costa, nos quais o governador
insiste na necessidade de consenso entre accionistas quanto aos novos gestores
e avisa que não aceitará Morais Pires por mera pressão de Salgado, sem avaliar
a idoneidade do nome por este proposto para lhe suceder.
Uma figura (quase
sempre) em silêncio na sala: Francisco Proença de Carvalho, advogado do ex-presidente
do BES, filho de Daniel Proença de Carvalho. Sentado do lado direito de Ricardo
Salgado, é ele quem carrega no botão do microfone a cada vez que o seu cliente
responde aos deputados. Por vezes, troca impressões com Salgado quando o micro
está desligado e há um deputado a colocar uma questão.
Como nesta
ocasião, em que Salgado responde a Miguel Tiago: “Eu saio no dia 13 [de Julho].
No dia 12 enviei uma carta ao BdP a dar conta de financiadores interessados. O
BdP não esteve na disposição de receber os investidores interessados. Remeteu o
assunto para a nova comissão executiva. Eles não resolveram o assunto. Adiaram
para o fim do mês. E no dia 30, o BdP dá 48 horas para o aumento de capital.
Julgo que essa carta do BdP é uma forma de se desresponsabilizar. 48 horas para
fazer o aumento de capital? Só se fosse um milagre. O que parece é que tudo
estava orientado para o mesmo.” Depois de conferenciar com o seu advogado,
Salgado pediria desculpas pela última afirmação.
Mas para que não
restassem dúvidas, Abreu Amorim repetiu a tese de Passos Coelho, rejeitando
culpas da regulação e do Governo na falência do BES. “O BES faliu por má
gestão, por uma gestão pouco séria e pouco sã. Finou-se por culpa própria.”
Antes, em
resposta a Pedro Nuno Santos, do PS, Salgado deixara uma certeza: “Não houve
desvios de capital para fora do banco.” Em sua defesa, repetiu a ideia: “Posso
garantir aos senhores deputados que nunca dei indicações a ninguém para ocultar
passivos do Grupo (...) Ninguém se apropriou de um tostão, nem na
administração, nem na família.”
Os deputados
andaram todos à volta do tema Eurofin, a sociedade suíça considerado o “buraco
negro” do GES e do BES para esconder prejuízos, com Salgado a justificar que
“esta empresa era independente” do grupo português [apesar de ter servido para
Salgado esconder durante vários anos a participação que o GES detinha no grupo
Queiroz Pereira]. A Eurofin apareceu nas semanas anteriores à falência do BES
numa operação que envolveu 800 milhões de euros do banco português. Os
deputados esqueceram-se, no entanto, de perguntar ao ex-banqueiro que destino
foi dado ao suposto saco azul do GES usado para pagar, via Eurofin, cerca de
300 milhões de euros de despesas não documentadas. Em declarações ao PÚBLICO
[4/12/2014], Alexandre Cadoso inquirido sobre se “nunca se questionou para que
servia esse suposto saco azul do GES/BES”, respondeu: “Sim. Mas de novo terão
de ser eles a explicar” só “eles [GES e BES] tinham a fotografia completa” do
que se passava.
Outro dos temas
em foco foi o “saque no BES Angola”, precisamente o título de um trabalho do
Expresso que Salgado aconselhou os deputados a ler. Em poucas palavras: o BES
concedia créditos (3 mil milhões de euros) ao BESA, que muito liberalmente os
distribuía em empréstimos sem qualquer garantia. Salgado admitiu o erro: “O
departamento de riscos angolano foi pervertido. Per-ver-ti-do. Aquilo não
funcionou.” Um culpado? “Álvaro Sobrinho.” Houve um erro de julgamento na
indicação da pessoa que foi para Presidente da Comissão Executiva do BESA
[Álvaro Sobrinho]”, disse Salgado, sugerindo que foi atacado pelos jornais (Sol
e i) que são detidos pelo empresário angolano.
Salgado foi ainda
instado a comentar, por Mariana Mortágua, o pagamento aos cinco membros do
núcleo do GES, de 5 milhões de euros retirados da comissão cobrada pela Escom
no negócio da venda por um consórcio alemão de dois submarinos ao Estado
português. Salgado admitiu aos deputados que recebeu “um pouco mais” do que um
milhão. Muito embora tenha negado, por três vezes, que tenham sido pagas
comissões “a nível político” nesse negócio.
Sobre a
transcrição da gravação da reunião do Conselho Superior em que o tema Escom foi
abordado, que revela um comentário do banqueiro a declarar “estamos rodeados de
aldrabões”, observou: “Eu posso garantir que não sabia que estava a ser
gravado.”
Mais tarde,
Ricciardi desmenti-lo-ia, com sarcasmo. A guerra entre os dois primos esteve
sempre em pano de fundo. Salgado recusou, durante muitas horas, falar de
Ricciardi. Não contem comigo para atacar ninguém da minha família.” Mas quase
dez horas depois de ter entrado na sala 6, subitamente, reagiu, depois de ser
confrontando com as denúncias do primo ao Banco de Portugal: “O Dr. Ricciardi
teve um comportamento, no mínimo, muito curioso. Certamente, se fez alguma
denúncia ao BdP, deve ter tido alguma contrapartida por isso.”
Salgado considera
“um erro” o processo de resolução do BES, aplicado pelo Banco de Portugal a 3
de Agosto, e acredita que “a avaliação ainda está por fazer”. Há, no entanto,
uma leitura que não deixa de fazer, tendo em conta “os valores perdidos” com a
intervenção pública. O nível de capitalização do BES “foi completamente
dizimado” e, se o banco for vendido por um valor inferior ao da intervenção, é
preciso ter em conta esse diferencial. E também ao nível do crédito do BES,
Salgado considera que a situação do Novo Banco, que apelidou de “marca branca”,
“vai criar uma crise maior” ao nível do emprego e das empresas.
A trama
adensa-se? Para Salgado sim: “O Lehman Brothers faliu. O BES não faliu. O BES
foi forçado a desaparecer.”
Carlos Costa refuta
“veementemente” a versão de Ricardo Salgado
HUGO DANIEL SOUSA
09/12/2014 - PÚBLICO
Governador do Banco de Portugal
nega ter aceitado nome de Morais Pires para suceder a Salgado. E revela carta
de Abril em que se refere as mudanças na liderança do BES.
Uma das grandes
revelações de Ricardo Salgado na comissão de inquérito ao BES foi a de que
sugeriu, em Junho, Amílcar Morais Pires como seu sucessor e que o governador do
Banco de Portugal, depois de ter pedido dois dias para pensar, respondeu que o
sucessor “será quem o senhor presidente entender”.
Horas depois
desta revelação de Salgado, Carlos Costa emitiu um comunicado em que desmente o
ex-presidente do BES. “Aproveito ainda a oportunidade desta carta para refutar
veementemente diversas afirmações feitas pelo Dr. Ricardo Salgado durante a
audição na CPI a respeito da alegada aceitação do Dr. Morais Pires para futuro
presidente da comissão executiva do Banco Espírito Santo”, lê-se numa carta
enviada a Fernando Negrão, presidente da comissão parlamentar de inquérito.
Aproveitando a
abertura de Ricardo Salgado, que na comissão de inquérito autorizou a revelação
da correspondência entre o BES e o Banco de Portugal, Carlos Costa revela uma
carta que escreveu a 7 de Abril.
Nessa missiva, o
governador diz a Ricardo Salgado: “V. Exa. comunicou-me que, na sequência da
reunião de 31 de Março último, estava a considerar a criação de um novo órgão
no BES, de natureza estratégica e com uma adequada representação accionista,
que não duplicasse as funções dos órgãos sociais, designadamente dos que
desempenham funções de administração e de fiscalização. Tal como transmitido a
V. Exa., o Banco de Portugal entende que os titulares dos órgãos que resultem
da futura solução de governo devem resultar de um amplo e sólido consenso
accionista e não envolver riscos em termos de avaliação de idoneidade.”
Neste texto,
Carlos Costa verá um pedido expresso para que Salgado abandonasse a liderança
do BES. Já o ex-banqueiro tem uma visão diferente, como fez questão de dizer na
comissão de inquérito: “Ouvi surpreendido as declarações do Governador do BdP
segundo o qual teve um braço-de-ferro comigo. Nunca me foi sugerido que estava
em avaliação a minha idoneidade. Bastaria um sinal [do Banco de Portugal] para
eu abandonar a liderança do banco."
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