quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Ricardo e o leopardo, por JOÃO MIGUEL TAVARES / O criminoso foi obviamente o mordomo, por FRANCISCO LOUÇÃ


Ricardo e o leopardo
JOÃO MIGUEL TAVARES 11/12/2014 - PÚBLICO

Dizer que o BES não faliu mas que “foi forçado a desaparecer”, como afirmou Salgado insinuando misteriosas teorias da conspiração, é do domínio da mais despudorada desvergonha.

Devo a Ricardo Salgado ter-me ensinado há dois dias um bonito provérbio chinês, que eu desconhecia: “O leopardo quando morre deixa a sua pele. O homem quando morre deixa a sua reputação.” A sabedoria chinesa fica bem em qualquer lugar, mas, pelos vistos, Ricardo Salgado decidiu invocar uma máxima que não estava interessado em cumprir.

É que, no estrito campeonato reputacional, aquilo a que eu assisti na comissão de inquérito ao caso BES foi a um velho leopardo a fazer tudo por tudo para salvar a sua pele, mesmo que para isso tivesse – como teve – de assassinar a sua reputação enquanto gestor.

Ricardo Salgado só tinha dois caminhos possíveis para a sua defesa: ou admitir que era muito aldrabão, ou admitir que era muito incompetente. Compreensivelmente, optou pela incompetência. Afinal, o homem que se apresentou na Assembleia da República parece que nunca pensou, nem quis, ser o Dono Disto Tudo – “Dono Disto Tudo é o povo português”, afirmou democraticamente. E, segundo a sua notável tese, Salgado partilhou com o povo português a democrática ignorância acerca daquilo que se passava no Banco Espírito Santo: ele não sabia de nada (foi o contabilista), não via nada (Álvaro Sobrinho andou a distribuir milhões por Luanda porque quebrar o sigilo bancário em Angola dava prisão) e não ouvia nada (bastaria que Carlos Costa tivesse “feito um sinal” e Ricardo Salgado teria saído ordeiramente do BES, sem sequer olhar para trás).

Mas, em simultâneo, o mesmo senhor presidente que durante anos e anos não viu as crateras que se iam abrindo no Grupo Espírito Santo, numa assumida manifestação de olímpica azelhice, já se considerava superiormente dotado para salvar o BES em Agosto, tivessem o Banco de Portugal e o Governo tido a amabilidade de lhe conferir essa hipótese. É aquilo a que podemos chamar a “estratégia PEC IV”: uma espécie de história alternativa despojada de qualquer vestígio de honestidade intelectual, onde se procura ficcionar um alegado futuro cor-de-rosa começando, em primeiro lugar, por ficcionar um passado que nunca existiu.

Talvez valha a pena, por isso, recordar uma notícia que saiu há dois meses no Expresso, sem ter tido a atenção que merecia: um relatório da Comissão Europeia, citando um estudo do Banco de Portugal, que estimava que o custo de uma falência descontrolada do BES poderia atingir os 46 mil milhões de euros, 30% do PIB português (dois terços desse valor seriam perdas do banco, um terço adviria da necessidade de accionar o fundo de garantia dos depósitos). Dizer que o BES não faliu mas que “foi forçado a desaparecer”, como afirmou Salgado insinuando misteriosas teorias da conspiração, é do domínio da mais despudorada desvergonha. Desvergonha essa que foi devidamente posta a nu nas arrasadoras audições de Pedro Queiroz Pereira e de José Maria Ricciardi. Há um provérbio africano – mais adequado do que o chinês, tendo em conta o papel do BESA em tudo isto –, entretanto já citado por Bruno Faria Lopes, que diz assim: “A chuva molha a pele do leopardo, mas não tira as suas manchas.” Salgado esteve dez horas a diluviar desculpas. Mas as manchas, essas, continuam todas lá.

Uma última nota. Andei duas semanas a espingardar contra a hipocrisia da invocação da presunção de inocência em textos de opinião. Desafio os leitores a ler o que foi escrito sobre Ricardo Salgado a essa luz, para que vejam as diferenças de peso e medida. Podem começar por “O criminoso foi obviamente o mordomo”, de Francisco Louçã.



O criminoso foi obviamente o mordomo
FRANCISCO LOUÇÃ 10/12/2014 - PÚBLICO

No final de uma das telenovelas mais populares, ficámos até ao último momento na ânsia de saber quem triunfaria, se o Dr. Mundinho se o Coronel Ramiro Bastos.

Nesta outra telenovela a que ontem assistimos a trama é muito mais densa. Começando pelos protagonistas, temos um banqueiro que “se considera um verdadeiro trabalhador”, apesar de “erros de julgamento” como nos submarinos, que só deram um milhão a cada ramo da “família” e um mar de arrelias, temos um Presidente Cavaco Silva atento às recomendações do banqueiro quanto à diplomacia com Angola, temos um Presidente Dos Santos que emite garantias que valem o ouro da sua palavra, temos um Durão Barroso que “dava conselhos” mas “por um montante nada significativo”.

Depois, temos os prejudicados, os “potenciais investidores” que se acotovelavam na antecâmara do governador para mostrarem a cor do dinheiro que queriam pôr no BES, e a PT que “foi uma tristeza”.

Chegamos aos culpados, um administrador angolano que muito “incomodou” os generais accionistas, um contabilista de Miami que terá sido o responsável por gerir a holding e criar o buraco de biliões de euros, que andará por parte incerta, um primo que andaria na solicitação de “contrapartidas”, um governador do Banco de Portugal que não facilitou o empréstimo salvífico. Com todos estes aborrecimentos, “o banco não faliu”, faliram-no. Mesmo assim, com toda a cabala, Ricardo Salgado, ele próprio, num gesto magnânimo e desprendido, devolveu Portugal aos seus donos, todos nós, encerrando o episódio com a grandeza dos aristocratas.

O governador, irritado, reagiu na hora divulgando as cartas que podia ter entregue à Comissão Parlamentar há uma semana, como se tivesse preferido guardá-las a manter-se o verniz. Na verdade, sabedor desde Novembro de 2013 da falsificação das contas, as cartas que indicam que negociou a saída de Salgado demonstram também o tempo pusilânime do regulador.


Quer então saber quem é o Mundinho e quem é o Coronel nesta história? Não interessa. Se houve crime, e não me citem como sugerindo que houve tal, é só para supormos, se houve crime, o culpado, como não podia deixar de ser, foi o mordomo.

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