Ricardo e o leopardo
JOÃO MIGUEL
TAVARES 11/12/2014 - PÚBLICO
Dizer que o BES não faliu mas que “foi forçado a desaparecer”, como afirmou
Salgado insinuando misteriosas teorias da conspiração, é do domínio da mais
despudorada desvergonha.
Devo a Ricardo
Salgado ter-me ensinado há dois dias um bonito provérbio chinês, que eu
desconhecia: “O leopardo quando morre deixa a sua pele. O homem quando morre
deixa a sua reputação.” A sabedoria chinesa fica bem em qualquer lugar, mas,
pelos vistos, Ricardo Salgado decidiu invocar uma máxima que não estava
interessado em cumprir.
É que, no estrito
campeonato reputacional, aquilo a que eu assisti na comissão de inquérito ao
caso BES foi a um velho leopardo a fazer tudo por tudo para salvar a sua pele,
mesmo que para isso tivesse – como teve – de assassinar a sua reputação
enquanto gestor.
Ricardo Salgado
só tinha dois caminhos possíveis para a sua defesa: ou admitir que era muito
aldrabão, ou admitir que era muito incompetente. Compreensivelmente, optou pela
incompetência. Afinal, o homem que se apresentou na Assembleia da República
parece que nunca pensou, nem quis, ser o Dono Disto Tudo – “Dono Disto Tudo é o
povo português”, afirmou democraticamente. E, segundo a sua notável tese,
Salgado partilhou com o povo português a democrática ignorância acerca daquilo
que se passava no Banco Espírito Santo: ele não sabia de nada (foi o
contabilista), não via nada (Álvaro Sobrinho andou a distribuir milhões por
Luanda porque quebrar o sigilo bancário em Angola dava prisão) e não ouvia nada
(bastaria que Carlos Costa tivesse “feito um sinal” e Ricardo Salgado teria
saído ordeiramente do BES, sem sequer olhar para trás).
Mas, em
simultâneo, o mesmo senhor presidente que durante anos e anos não viu as
crateras que se iam abrindo no Grupo Espírito Santo, numa assumida manifestação
de olímpica azelhice, já se considerava superiormente dotado para salvar o BES
em Agosto, tivessem o Banco de Portugal e o Governo tido a amabilidade de lhe
conferir essa hipótese. É aquilo a que podemos chamar a “estratégia PEC IV”:
uma espécie de história alternativa despojada de qualquer vestígio de
honestidade intelectual, onde se procura ficcionar um alegado futuro
cor-de-rosa começando, em primeiro lugar, por ficcionar um passado que nunca
existiu.
Talvez valha a
pena, por isso, recordar uma notícia que saiu há dois meses no Expresso, sem
ter tido a atenção que merecia: um relatório da Comissão Europeia, citando um
estudo do Banco de Portugal, que estimava que o custo de uma falência
descontrolada do BES poderia atingir os 46 mil milhões de euros, 30% do PIB
português (dois terços desse valor seriam perdas do banco, um terço adviria da
necessidade de accionar o fundo de garantia dos depósitos). Dizer que o BES não
faliu mas que “foi forçado a desaparecer”, como afirmou Salgado insinuando
misteriosas teorias da conspiração, é do domínio da mais despudorada
desvergonha. Desvergonha essa que foi devidamente posta a nu nas arrasadoras
audições de Pedro Queiroz Pereira e de José Maria Ricciardi. Há um provérbio
africano – mais adequado do que o chinês, tendo em conta o papel do BESA em
tudo isto –, entretanto já citado por Bruno Faria Lopes, que diz assim: “A
chuva molha a pele do leopardo, mas não tira as suas manchas.” Salgado esteve
dez horas a diluviar desculpas. Mas as manchas, essas, continuam todas lá.
Uma última nota.
Andei duas semanas a espingardar contra a hipocrisia da invocação da presunção
de inocência em textos de opinião. Desafio os leitores a ler o que foi escrito
sobre Ricardo Salgado a essa luz, para que vejam as diferenças de peso e
medida. Podem começar por “O criminoso foi obviamente o mordomo”, de Francisco
Louçã.
O criminoso foi obviamente o
mordomo
FRANCISCO LOUÇÃ
10/12/2014 - PÚBLICO
No final de uma das telenovelas mais populares, ficámos até ao último
momento na ânsia de saber quem triunfaria, se o Dr. Mundinho se o Coronel
Ramiro Bastos.
Nesta outra
telenovela a que ontem assistimos a trama é muito mais densa. Começando pelos
protagonistas, temos um banqueiro que “se considera um verdadeiro trabalhador”,
apesar de “erros de julgamento” como nos submarinos, que só deram um milhão a
cada ramo da “família” e um mar de arrelias, temos um Presidente Cavaco Silva
atento às recomendações do banqueiro quanto à diplomacia com Angola, temos um
Presidente Dos Santos que emite garantias que valem o ouro da sua palavra,
temos um Durão Barroso que “dava conselhos” mas “por um montante nada
significativo”.
Depois, temos os
prejudicados, os “potenciais investidores” que se acotovelavam na antecâmara do
governador para mostrarem a cor do dinheiro que queriam pôr no BES, e a PT que
“foi uma tristeza”.
Chegamos aos
culpados, um administrador angolano que muito “incomodou” os generais
accionistas, um contabilista de Miami que terá sido o responsável por gerir a
holding e criar o buraco de biliões de euros, que andará por parte incerta, um
primo que andaria na solicitação de “contrapartidas”, um governador do Banco de
Portugal que não facilitou o empréstimo salvífico. Com todos estes
aborrecimentos, “o banco não faliu”, faliram-no. Mesmo assim, com toda a
cabala, Ricardo Salgado, ele próprio, num gesto magnânimo e desprendido,
devolveu Portugal aos seus donos, todos nós, encerrando o episódio com a
grandeza dos aristocratas.
O governador,
irritado, reagiu na hora divulgando as cartas que podia ter entregue à Comissão
Parlamentar há uma semana, como se tivesse preferido guardá-las a manter-se o
verniz. Na verdade, sabedor desde Novembro de 2013 da falsificação das contas,
as cartas que indicam que negociou a saída de Salgado demonstram também o tempo
pusilânime do regulador.
Quer então saber
quem é o Mundinho e quem é o Coronel nesta história? Não interessa. Se houve
crime, e não me citem como sugerindo que houve tal, é só para supormos, se
houve crime, o culpado, como não podia deixar de ser, foi o mordomo.
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